01 | Dossiê

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Trem: transporte e tempo

 

O ritmo, não o metro

Paulo Leminski

 

Loop[1]

O mergulho na matéria sonora possibilitado pelo sulco fechado em discos concentrou uma diversidade de experiências. Prenunciado já antes de sua materialização na superfície do acetato – experiências anteriores ao cinema prefiguraram a aventura do loop – esse mergulho pela repetição manifestou mais do que um interesse por desvendar o conhecimento do som: um desejo por seu ritmo, pelo embalo, por um trilhar em territórios espaciais e temporais desconhecidos. Esse artigo pretende costurar encontros significativos, demonstrar alguns pontos de contato entre o uso de novos meios e anseios antigos, percorrendo autores como Schaeffer, Florensky, Valéry, Bandeira e outros. [2]

O fascínio pelo helicóptero é contemporâneo. Bem antes da composição de Stockhausen[3] o cinema norte-americano alçou esse artefato à categoria de vedete, até que Francis Ford Coppola definitivamente se refere a ele como o sucessor da Cavalaria dos filmes de caubói (envolvendo matanças de índios). Em ‘Apocalypse now’ os nativos são vietnamitas coreograficamente destruídos por um ataque de helicópteros ao soar da ‘Cavalgada das Valquírias’ de Wagner, protagonizando o Gesamtkunstwerk áudio-visual ao qual não faltam perigo mortal e o deleite de surfar belas ondas. Foi em ‘Os boinas-verdes’, com John Wayne em 1968, que se viu, pela primeira vez no papel de herói, esta máquina voadora cuja idiossincrasia interessante é a capacidade de parar no ar.

Garante a ‘parada-no-ar’ o movimento circular da hélice de sustentação, um rotor girando horizontalmente, perfazendo loops (panorâmicos) de altíssima velocidade. A mobilidade flexível deste veículo de ataque se deve e se conjuga à ‘parada-no-ar’, permitindo os tão esperados resgates de soldados ou alvejadas mortíferas. É suportada pelo mesmo movimento rotativo daqueles brinquedos de parques de diversões em que o público permanece colado em uma parede centrífuga que, após atingir certa velocidade, retira o chão de sob os pés daqueles que pagam pela sensação.

Situação comparável, por translação, à do público dos panoramas na virada para o século XX. Em seu ensaio ‘A fotografia panorâmica…’, Philippe Dubois descreve a situação do espectador dos panoramas, que, para este autor, têm o papel de precursores do cinema:

Sobre a parede fica esticada a tela do quadro exposto, de tal maneira que, encobrindo a totalidade da circunferência, suas duas extremidades confundem-se num mesmo ponto. (…)
 
… a imagem que se estende durante toda a circunferência do edifício, de tal modo que os extremos podem juntar-se, fechar-se e que as junções desaparecem: representação contínua, que não tem começo nem fim, que não tem borda que assinale o limiar.
 
O espectador assemelha-se a um dervixe que gira (…) embora esteja livre em seus movimentos, a percepção que ele tem do quadro é necessariamente sucessiva: desenrola-se no tempo, o tempo que é necessário para fazer a volta da imagem que o circunda.
 
– a clausura e o infinito: não é um dos menores paradoxos do panorama o de ser ao mesmo tempo uma estrutura fechada e uma imagem sem limite. Se o espectador é seguramente o objeto do dispositivo, se ele é o centro (mestre, então) do mundo visual que desfila diante de si – postura do príncipe onividente – ele se encontra também enclausurado, atado, preso neste mesmo mundo. (…) O panorama cenográfico é uma porta fechada, uma bolha. Um mundo, mas confinado e sem janelas.’ (Dubois 1986)

O confinamento como causa necessária da ilusão (e motivo de interesse para o público) também foi assinalada por Walter Benjamin:

O interesse pelo panorama vem do fato de que nele vê-se a verdadeira cidade, isto é, a cidade na casa. O que se encontra numa casa sem janela é o verdadeiro. O verdadeiro não tem janelas, o verdadeiro não desemboca em nenhum recanto do universo. (Benjamin 1978)

A forma em loop era astuciosamente escamoteada pela eliminação dos traços visíveis das junções:

Esta colocação em anel do espaço – que se faz pela eliminação de todo quadro demarcador – foi feita lateralmente, é claro, mas também verticalmente, já que se desenvolveram formas cada vez mais elaboradas de ligação entre alto (o teto) e baixo (o chão), criando-se dessa maneira um espaço envolvente total. (Dubois 1986)

A finalidade de uma emenda bem-feita manifesta no século XIX o projeto de ‘imersão’ de algumas artes ‘digitais’, ‘multimídias’ ou ‘tecnológicas’ deste século XX/XXI. O século das tecnologias digitais se apodera dessas noções para, cada vez mais, aprisionar o público em um intra-muros, um onanismo metafísico. O sonho da ‘imersão total’ – que depende portanto de um confinamento – é criteriosamente representado no filme ‘Brainstorm’ (1983), de Douglas Trumbull[4], no qual um grupo de cientistas descobre/inventa um gravador capaz de registrar todas as emoções e sensações humanas. Pode ser conferido no clip do filme em que se vê possíveis compradores experimentando, certamente não por acaso, um passeio – em loop! – de montanha russa.[5]

 

 

Em outros trechos do filme o potencial comercial da máquina abre para novas possibilidades: em primeiro lugar, um registro de ‘sua própria pessoa’: o protagonista oferece à namorada um rolo de fita magnética contendo trechos de sua vida: ‘It’s me!’

Em segundo lugar, e mais meta-linguístico, a obra-de-onanismo-total: um dos cientistas (aquele personagem sempre problemático em filmes do gênero) finalmente realiza seu super-loop: fica aprisionado à econômica repetição de seu gozo, gravado na companhia de uma prostituta.

Sillon-fermé

A distância entre o loop e o sillon-fermé schaefferiano não é tanto de ordem conceitual. O que os separa é de fato a especificidade do suporte. O loop realiza na fita magnética uma das aspirações do sillon-fermé: ultrapassa a dimensão máxima dada pela razão entre o diâmetro do disco e a velocidade de leitura do toca-discos. A fita magnética permite voltas mais longas, e consequentemente a feitura de anéis cuja emenda se torna imperceptível. O tempo fica suspenso por conta da supressão de percepção da emenda.

Uma vez assinalando o que era próprio do sillon-fermé devido à própria limitação, gostaria de comentar sobre o que ele teria proporcionado como experiência específica. A impossibilidade de ocultação da emenda – praticamente impossível na matéria plástica do acetato – oferecia à estética uma transparência técnica para o sujeito da experiência. Embora seja complicado opô-lo frontalmente ao sillon-fermé, o loop tem uma vocação mais prestidigitadora. Enquanto oferece sensações ao ouvinte, o sujeito da escuta, torna-o também objeto de uma vivência controlada.

O loop mais paradigmático que consegui encontrar na história da música é tão auto-referente que provoca aquele desejo sempre contido de se atribuir genialidade ao autor. A repetição da palavra ewig, na última Canção da Terra, de Mahler, tem mais destinação como loop que como sillon fermé. Mahler prepara o ouvinte para uma suspensão temporal suprimindo a volta à tônica na cadência dos últimos compassos. A repetição – sugerindo um ad aeternam – da palavra ‘eternamente’, na dominante, é uma solução que não propõe o sentido intramaterial do sillon-fermé, mas realiza o mais perfeito exemplo de loop: o que invoca a eternidade, a suspensão temporal por excelência.

O ‘sulco-fechado’ fisicamente riscado no fechamento circular de sulcos de discos era realizado durante a gravação. Foi o principal dispositivo na criação da musique concrète. A escuta dos materiais circulados no sillon-fermé aponta para uma escuta antes de tudo orientada para o prazer. Prazer este que tanto será o da falta de compromisso com algum programa, ou seja, o prazer infantil de aprender, ou ainda um prazer mais erotizado de novas descobertas e abertura para a curiosidade do ouvido.

Em ‘À la recherche d’une musique concrète’, de 1952, o escritor, compositor e pesquisador (radiofônico) Pierre Schaeffer – inventor da música concreta – discorre sobre a composição de seus ‘estudos de ruído’, dentre os quais o Étude aux chemins de fer, para o qual, aliás, a palavra ‘composição’ se encaixa duplamente.

Antes de se tornar um método, [o sillon fermé] surgiu como um truque, um efeito sonoro. Entretanto no que diz respeito ao efeito, ele pode se tornar causa, e meio de descoberta. (…)
 Esta última depende de uma diferença simbólica: a diferença entre a espiral e o círculo. Acontece que a máquina de gravação do som é uma mecânica que desenha seu próprio símbolo. (Schaeffer 1952)

Ilustração do sillon-fermé (Schaeffer 1952)

 

Decrevendo em seguida a operação de ‘fechamento do sulco’, Schaeffer comenta que o técnico operador da agulha gravadora deve, em dado momento, romper o corte que vem sendo feito par défault na forma espiral, forma esta que é determinante da continuidade temporal da música gravada no disco. A descrição é rica de analogias:

A espiral do “graveur” não representa somente a realização material, mas a afirmação do tempo que passa, que passou, que não voltará mais.’ Se o “graveur” fechar em si seu círculo mágico, duas coisas podem ter acontecido. Ou bem terá ocorrido um acidente (…) no qual o “graveur” terá riscado o disco até a “alma” (pois todo disco tem uma alma metálica, logo atingida quando a fina camada de verniz é atravessada). Ou bem o operador o terá feito de propósito, habilmente suspendendo o “graveur” da superfície: tão logo o sillon ‘morder-se a cauda’ ele terá isolado um “fragmento sonoro” que não tem mais começo nem fim, um fulgor de som isolado de todo e qualquer contexto temporal, um cristal de tempo de arestas vivas, de um tempo que não pertence mais a nenhum tempo.’ (Schaeffer 1952)

Os sulcos que neste estudo retém a sonoridade ferroviária são transposições – para a superfície dos discos – de trilhos fechados em círculo. (Diversos autores que pesquisam os meios de transporte deram para nos lembrar que a palavra ‘metáfora’, significa – tanto em grego clássico quanto moderno – transporte). Um trem de brinquedo armado no tapete da sala, para deleite de quem brinca. Quem brinca é o garoto com o apito de capim do ‘Traité’:

…não satisfeito com fabricar sons, ele os toca [no sentido de ‘jouer’], ele os compara, ele os julga, achando-os mais ou menos bem sucedidos, e suas sequências mais ou menos satisfatórias. Como já havíamos dito sobre o homem de Neanderthal: se esta criança não está fazendo música, então o que faz?’(Schaeffer 1966)
 

Na iminência do desastre ferroviário – ou seja, de romper com a própria noção de música – sucedem para o autor encontros interessantes; um deles, porém, a ser evitado: a referência.

A sequência dramática constrange a imaginação. Assiste-se a acontecimentos: uma partida, uma chegada. Vê-se. A locomotiva se desloca, a ferrovia está deserta ou sendo atravessada por alguém. A máquina se extenua, sopra e se distende – antropomorfismo. Tudo isso é exatamente o contrário da música. (…)
Entretanto consegui isolar um ritmo, e opô-lo a si mesmo com uma “cor” sonora diferente. Escura, clara, escura, clara. Este ritmo pode permanecer imutável por muito tempo. Cria-se assim uma espécie de identidade e sua repetição faz esquecer que se trata de um trem. (…)
Com os trens eu me via longe do ‘domínio musical’, confinado que estava, em princípio, ao ‘domínio dramático’. Se, no entanto eu efetuar uma seleção – cuja existência será atestada pela repetição – obterei um material provável para a composição… (Schaeffer 1952)

Já falei da marca de forte presença acústica, jamais deixando despercebida a emenda que junta fim e início, determinante de um ciclo, uma percepção de repetição. Mas o ritmo de que fala Schaeffer é mantido pelo som proveniente do giro na ferrovia, inscrito dentro da repetição do sillon-fermé. Tanto que, uma vez alterada a velocidade de leitura do sulco, a mudança importante não é a duração, maior, da leitura do sulco:

Reproduzindo um disco em velocidade pouco menor que a metade da original, esta mudança quantitativa obtém também um fenômeno qualitativo. O elemento “ferrovia” ralentado não é mais uma estrada de ferro: torna-se fundição e fornalha. Digo assim para me fazer compreender porque sempre sobra um elemento de ‘significado’ anexado ao fragmento. Mas rapidamente passo a percebê-lo como um grupo rítmico original, cuja profundidade, riqueza de detalhe e cor sombria não me canso de admirar. (Schaeffer 1952)

 

Música ou narrativa?

Chama a atenção a excusa de Schaeffer por ter usado a expressão ‘significado’ para falar do som, uma vez que este ‘sempre sobra, anexado ao fragmento’… ‘Mas rapidamente passo a percebê-lo como um grupo rítmico’, continua aliviado. O que é mais interessante neste ‘À La recherche…’ é a evidência da perplexidade de Schaeffer, que vem confirmar o prazer que ele encontrou em suas descobertas. Perplexidade e prazer não era o que se esperaria de um pesquisador e comunicador, de quem se esperava a proposta de algo mais universal e comunicativo do que o registro do exercício da curiosidade. A ironia do texto no frontispício da obra, agradecendo ao mecenas em estilo séc. XVII, é eloqüente. Em certo momento fica claro como ele ainda não dispunha de projeto definido, e como ele gostaria que, para a música, fosse tão fácil e resolvido, como lhe parecia o mundo das artes plásticas:

Como evitar o choque do parentesco entre a música concreta e a pintura moderna? Há muito tempo que as pessoas não se escandalizam mais diante das telas, da ausência de tema, pois as telas não falam de um tema, assim como tampouco descrevem uma paisagem ou uma natureza morta. As telas mais interessantes são aquelas em que o elemento formal é tão discreto, tão simplificado, que se desprende uma sensação de beleza. Isso conduz a pensar que os trechos mais válidos de música concreta são os que, longe de desejarem se expressar musicalmente, no sentido clássico, ilustram uma forma simples, uma bela matéria; não há por que buscar nelas exposições, movimentos, detalhes. (Schaeffer 1952)

 

Uma música sem desenvolvimento, exposição, etc., que ainda por cima lidava com sons microfonados, teria muito a lutar contra a notória boutade bouleziana, de que a musique concrète havia feito da locomotiva – e não do helicóptero stockhauseano – sua vedete’.

O espaço entre a música e a narrativa (‘litérature’, ‘drama’) é o mesmo entre prosa e poesia para Octavio Paz. Parece que Schaeffer ‘visa’, no universo sonoro a mesma dinâmica que Paz percebe na literatura:

… o ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, mas só no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo não há poema; só com ritmo não há prosa. O ritmo é condição do poema, ao passo que é inessencial para a prosa. Pela violência da razão as palavras se desprendem do ritmo; essa violência racional sustenta a prosa, impedindo-a de cair na corrente da fala onde não vigoram as leis do discurso e sim as de atração e repulsa. Mas esse desenraizamento nunca é total porque, do contrário, a linguagem se extinguiria. E com ela o próprio pensamento. (negrito meu) A linguagem, por inclinação natural, tende a ser ritmo. Como se obedecessem a uma misteriosa lei de gravidade, as palavras retornam espontaneamente à poesia. No fundo de toda prosa circula, mais ou menos rarefeita pelas exigências do discurso, a invisível corrente rítmica. E o pensamento, na medida em que é linguagem, sofre o mesmo fascínio. Deixar o pensamento em liberdade, divagar, é regressar ao ritmo; as razões se transformam em correspondências, os silogismos em analogias, e a marcha intelectual em fluir de imagens. O prosador, porém, busca a coerência e a claridade conceitual. Por isso, resiste à corrente rítmica que fatalmente tende a se manifestar em imagens e não em conceitos. (Paz 2012 [1956])

 

O sulco fechado ofereceu a Schaeffer a oportunidade de encontrar no som referencial o ritmo que está neste mundo ‘prosaico’, o mundo anécdotique. O que faz a passagem entre um mundo e o outro é o ritmo impresso dentro do sillon fermé (não a marca de repetição ritmada do mesmo).

É quase inevitável arriscar uma analogia entre os sulcos do disco e o trilho-película cinematográfica que transportou, para as salas de projeção cinematográfica, o protagonista de ‘L’arrivée d’un train à La Ciotat’. No cinema, pela cremalheira da película perfurada, o trem de La Ciotat; nos sulcos dos discos da musique concrète, a estação de Batignolles. Mas a analogia com o cinema não precisa se esgotar aí. O sillon fermé é também parecido com um Zootrópio, aquele procedimento de animação em que uma sequência de desenhos, em progressão, reproduz movimentos do personagem desenhado. O Zootrópio era acionado do mesmo modo como a parede cilíndrica do Rotor e do Panorama, giros estes que garantiam a animação dos desenhos, percebidos, pelo olhar do espectador, na continuidade de um movimento. Já o sillon-fermé trazia um pedaço de realidade registrado microfonicamente, que, repetido pela leitura, propiciava ao ouvinte um mergulho no material gravado. Conforme lembra Schaeffer: ‘Antes de se tornar um método, [o sillon fermé] surgiu como um truque, um efeito sonoro. Entretanto, no que diz respeito ao efeito, ele pode se tornar causa, e meio de descoberta.’ Sugere assim uma inversão: o efeito pode ser causa, logo o tempo pode andar ao reverso. O que não contraria a descrição da estrutura do sonho, de Pavel Florensky:

Há muito já se demonstrou que nosso sono profundo é desprovido de sonhos. Somente quando dormimos levemente, na fronteira com a vigília, é que estamos no tempo – mais precisamente no ambiente – em que nascem os sonhos. 
Poucos consideraram, no entanto, a velocidade infinita do tempo do sonho, o tempo que vira do avesso, que flui ao reverso. Pois é verdade que sequências muito longas de tempo visível podem ser, no sonho, inteiramente instantâneas – e podem fluir do futuro para o passado, dos efeitos às causas. (Florensky 2000 [1921])

Florensky exemplifica propondo um sonho no qual a imaginação explica um som através de uma narrativa que, no tempo real – fora do sonho, acontece depois do som:

 É um dia claro de inverno, e as ruas estão cobertas de neve. Prometi passear de trenó, mas tenho que esperar por um longo tempo. Então me dizem que o trenó está pronto na estação. Apronto-me para sair: coloco o pesado casaco de peles; um saco de pés está aberto, e finalmente me sento no trenó. Mas ainda há espera, até que finalmente os cavalos impacientes são atiçados. Os sinos das rédeas começam a sacudir sua famosa melodia ‘yanichar’; eles soam cada vez mais forte – até que o sonho desvaneça e eu descubra que o som forte dos sinos provém do meu despertador. (Pavel Florensky, ibid.)
 

Uma percepção acelerada para reter o que se passa em cada instante individual do fluxo temporal. Paul Valéry descreve uma situação durante uma viagem de trem. Além de recuperar a ousadia da inteligência infantil, aponta para o vaivém entre mundos:

Uma viagem é uma operação que faz as cidades corresponderem a horas. Porém o mais belo e o mais filosófico das viagens encontra-se, para mim, nos intervalos entre essas pausas. (…) Não sei se existem amadores sinceros de ferrovias, partidários do trem-pelo-trem, e – além das crianças – tampouco vejo aqueles que saibam gozar, como convém, do estrondo e da potência, da eternidade e das surpresas na rota. As crianças são grandes mestres do prazer absoluto. Quanto a mim, tão logo se move o bloco de vagões, sempre me deixo acalentar por uma metafísica ingênua misturada de mitos.
 
Deixo a Holanda… De repente me parece que o Tempo começa; o tempo ‘se met en train’; o trem se transforma em modelo do Tempo, de quem ele toma o rigor e assume os poderes. Ele devora todas as coisas visíveis, agita todas as coisas mentais, com sua massa ataca bruscamente a cara do mundo, envia arbustos ao diabo, casas, províncias; derruba árvores, perfura arcos, expede postes, recolhe rudemente para si todas as linhas que atravessa, canais, sulcos, caminhos; muda pontes em trovoadas, vacas em projéteis e a estrutura pedregosa de sua via em um tapete de trajetórias…
Até as idéias, sempre surpresas, arrastadas como se esticadas pela torrente de visões, modificam-se como um som cuja origem voa distanciando-se.
 
Sucede comigo que eu não me sinta em nenhuma parte, como se tivesse sido reduzido ao ser abstrato que se permite dizer estar em todos os lugares que pensa, que raciocina, que dispõe, que funciona e ordena identicamente; que vive, e que nada essencial é alterado; que não muda de lugar. Será que, para que ele tenha a sensação de movimento, não faltará a esse lógico puro que habita em nós, que ele observe as modificações bastante extraordinárias, as desordens inconcebíveis, e sem dúvida incompatíveis com a razão ou a vida? (Paul Valéry, Varieté II, 1929.)
 

Georges Bataille: “…s’il y a seulement de l’univers inachevé, chaque partie n’a pas moins de de sens que l’ensemble. (…) J’aurais honte de chercher dans l’extase une vérité qui, m’élevant au plan de l’univers achevé, retirerait Le sens de l’entrée d’un train à La gare. (Le Coupable, Gallimard, 1961). […se há somente o universo inacabado, cada parte não tem menos importancia que o todo. (…) Eu teria vergonha de procurar no êxtase uma verdade que, me elevando ao plano do universo acabado, tiraria o sentido da chegada do trem à estação.]

E Manuel Bandeira:

Trem de ferro
 
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virgem Maria que foi isso maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
 
Oô…
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
….

Trem de ferro, 1935 (Bandeira 2009 [1977])

 

***

 

Rodolfo Caesar. Rio de Janeiro, 1950. Estudou no Instituto Villa-Lobos, Fefierj/UNIRIO com Marlene Fernandes, Bohumil Med e Reginaldo Carvalho. No GRM/Conservatoire de Paris, com Pierre Schaeffer, doutorando-se mais tarde sob a orientação de Denis Smalley, na Inglaterra. Cursou também filosofia no IFCS/UFRJ. Um dos fundadores do Estúdio da Glória no Rio de Janeiro, foi professor no Conservatório Brasileiro de Música e na Universidade Estácio de Sá, produtor de programas de rádio sobre música contemporânea (FM Eldo-Pop e Rádio Roquette-Pinto), atuando como coordenador, produtor e intérprete em eventos no Brasil e no exterior.
Atualmente trabalha em seu estúdio pessoal, no Rio de Janeiro. É professor na Escola de Música da UFRJ e pesquisador do CNPq. 

Todos os direitos reservados.

 

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Bibliografia

Bandeira, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, R.J.: Nova Aguilar, 2009 [1977].

Benjamin, Walter. Illuminations. Essays and reflections. New York: Harcourt Brace Jovanovich, Inc., 1978.

Dubois, Philippe. L’Acte Photographique. Paris: Fayard, 1986.

Florensky, Pavel. Iconostasis. New York: SVS Press, 2000 [1921].

Paz, Octavio. O arco e a lira. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo, S.P.: Cosac Naify, 2012 [1956].

Schaeffer, Pierre. A la recherche d’une musique concrète. Paris: Ed. du Seuil, 1952.

—. Traité des objets musicaux. Essai interdisciplines. Paris: Ed. du Seuil, 1966.

 

 


[1] Não posso deixar de referir o inspirador livro “Loop. Tecnologia e repetição na arte, de Aline Couri Fabião, Editora Torre, 2012, que conheci quando era ainda dissertação de mestrado, em 2006.

[2] É a versão inicial de um texto mais abrangente que em breve deverá ser publicado em formato digital.

[3] ‘Helikopter Streichquartett’, 1995. http://www.youtube.com/watch?v=ADP0vWI5HCg

[4] Cineasta que, entre outras coisas, realizou as maquetes de ‘2001, uma odisséia no espaço’, de Kubrick. Outro filme de sua autoria é ‘Silent running’ (1972).

[5] http://www.youtube.com/watch?v=-1i8tRRP-mo