03 | Editorial

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Sono, Sonho e Memória

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Imagem da série Terror, de Pedro Urano.

Sono, Sonho e Memória

[inverno 2013]

 

Freud tentou abordar os fenômenos de multidão desde o ponto de vista do inconsciente, mas ele não viu bem, não via que o inconsciente era antes de mais nada uma multidão.
Gilles Deleuze

 

Um homem que nasce cai dentro de um sonho como um homem que cai no mar.
Se ele tenta escalar o ar como os inexperientes, ele se afoga.
Joseph Conrad, “Lord Jim”

 

 

Nos últimos dias ouvimos a frase “O Gigante Acordou!” ser repetida insistentemente, na rua e na rede. Diante do repentino levante popular, ressurgiu a ideia de que até agora nosso país esteve alienado no torpor de um sono profundo. Este sono, degustado há séculos, seria, então, um lugar de inércia, de uma passividade despolitizada, alheia às questões do mundo e dos homens.

Outros defenderam que o gigante nunca dormiu, estava apenas cuidando de sua vida. Esta idéia contrapõe um aparente estado de sono ao que poderia ser encarado como um tempo de elaboração para pensamentos que ainda não chegaram à consciência ou puderam ser transformados em ação.

Sabe-se que dentro do sono existe um estado “paradoxal”, onde o corpo adormece mas olhos e mente permanecem “acordados”. Poderá o sonho ser um lugar de assimilação e preparação; um lugar para debater as alteridades que a própria subjetividade carrega?

E o sonho enquanto treino mental, onde a memória é trabalhada e um imenso número de possibilidades futuras podem ser experimentadas?

O neurocientista Sidarta Ribeiro, em seu artigo “Para que servem os sonhos?”[1], publicado pela revista Mente e Cérebro em 2010, relatou a história do líder indígena norte-americano Touro-Sentado, que guiou os guerreiros da nação Dakota e obteve sucesso em um confronto desigual com o exército dos Estados Unidos. Sidarta narra:

No dia 25 de junho de 1876, o poderoso 7º regimento de cavalaria do general George Custer realizou um ataque-surpresa a um grande acampamento Dakota, esperando encontrar apenas velhos, mulheres e crianças. Entretanto, poucos dias antes, Touro-Sentado havia sonhado com uma chuva de homens brancos caindo como gafanhotos sobre a relva. Por essa razão, reuniu secretamente perto do acampamento 2 mil guerreiros de diferentes etnias Dakota. Para horror da imprensa americana, que acompanhava com frenesi os extermínios de acampamentos indígenas liderados pelo famoso general, a improvável profecia de Touro-Sentado realizou-se. Diante da resistência dos Dakota, o regimento se desesperou e bateu em retirada através de terreno aberto desconhecido. Após um feroz mas rápido combate, Custer e seus soldados, incluindo dois de seus irmãos, um sobrinho e um cunhado, foram impiedosamente massacrados na campina verdejante de Little Bighorn.

 

O sonho é uma obra aberta

A experiência do sonho, sempre fugidio, borboletas para os cientistas de laboratório, hieróglifos angustiantes para os intérpretes e geômetras do afeto, aponta para a abertura, para a nossa condição de indeterminação. Senhor da poïesis, talvez seja um dos poucos mestres sobre a natureza mutável da vida, reflexo tanto da desordem quanto da possibilidade de compreensão de tudo aquilo que é diferente de nós. Lembramos de Walt Whitman, “Sou amplo, contenho multidões“, e de Arthur Rimbaud, “Sou outro”.

Porém, nosso pensamento lógico parece se deliciar em desqualificar os outros tipos de pensamento que habitam nossa mente. Inconcluso e avesso às interpretações unívocas, o sonho é capaz de expor um dilema sem tomar partido. É um coringa que dá rasteira na coerência, que retorce tudo que se apresente de forma unidimensional. Por isso mesmo, é capaz de transformar em visualidade as chaves que nossa racionalidade hesita em encontrar.

Além de ser um território privilegiado de investigação para a arte e a religião, o sonhar também faz parte do fazer científico. O químico Dmitri Mendeleev diz ter sonhado com uma complexa organização de elementos químicos, e este sonho o ajudou a formatar a tabela periódica que conhecemos. August Kekulé estava há anos tentando resolver o problema da fórmula estrutural do benzeno, até que uma noite sonhou com uma serpente que mordia a própria cauda e percebeu que o hidrocarboneto poderia ser construído como um anel hexagonal.

 

Memória em construção 

Não é aquilo que vivemos e depois esquecemos que regressa, na sua imperfeição, à consciência; antes, somos nós que acedemos então a qualquer coisa que nunca foi, ao esquecimento como parte da consciência.
Giorgio Agamben

 

O sono e o sonho são também mecanismos para consolidar lembranças. Porém, a memória que se infiltra em nossos sonhos tem suas escalas de tempo e espaço desconstruídas. Cada sonho, como cada obra de arte, estabelece uma outra configuração espaço-temporal, que não necessariamente corresponde à realidade que encaramos quando estamos acordados.

Mas o que é realidade afinal?

É uma questão que acompanha a Carbono desde sua primeira edição e também um importante ponto de debate na arte e na ciência. A realidade é por nós compartilhada, mas é também um campo de disputa constante entre versões dominadas e dominantes. Toda realidade é mediada por uma rede de relações que não podemos controlar.

E, nesta mediação, nossa memória-história será atravessada por relatos de família, livros didáticos e retrospectivas de uma mídia que muda de posição e revisita os fatos continuamente. Nossas memórias pessoais também são cotidianamente reescritas, repensadas, relativizadas… Não será possível acreditar nem em nós mesmos se descobrirmos o quanto esquecemos e o quanto inventamos de nosso passado. A realidade presente está dada no misterioso espaço inter-subjetivo ou é construída por nós como o sonho lúcido de um guerreiro?

Sono, Sonho e Memória: ao prepararmos esta edição, percebemos que cada palavra continha um conteúdo imenso em potencial e que sozinha já poderia servir de tema para uma Carbono. Porém, como separar o sono do sonho e o sonho da memória? São lugares indissociáveis. Mantivemos o eixo temático, portanto, resultando na maior edição até o momento.

Nesta edição contamos com uma entrevista com o neurocientista Sidarta Ribeiro, pesquisador do Instituto do Cérebro da UFRN, em Natal. Entrevistamos também os artistas Otavio Schipper e Sergio Krakowski, que fizeram em parceria a instalação “Inconsciente Mecânico”, sobre a qual apresentamos também um ensaio escrito pela artista e radioasta Lilian Zaremba.

O geólogo Ismar de Souza Carvalho discorre sobre os mecanismos de sedimentação de uma mémoria da Terra, e a pesquisadora de arte e psicanálise Tania Rivera escreve sobre nossas “lembranças encobridoras”, mecanismos psicológicos de esquecimento a partir do filme “La Jetée”, de Chris Marker.

O pesquisador de bioquímica Marcelo Fantappié escreve sobre a Epigenética, área que estuda como os afetos exteriores atuam diretamente sobre nossa memória genética, enquanto memórias de caçadores de onças são investigadas pelo pesquisador e antropólogo Felipe Süssekind.

O curador e pesquisador de arte Raphael Fonseca pensa sobre a imagem da rede e do descanso na construção do imaginário brasileiro, e, por outro lado, a psicanalista Carmem Alcântara de Oliveira revela os detalhes da Narcolepsia, uma doença onde não se pode controlar ataques de sono.

Entre os artistas, dois cineastas, Danilo Carvalho e Anna Azevedo, investigam lembranças e sonhos nos filmes “Supermemórias” e “Drežnica”, utilizando imagens de arquivo em super8mm – película cuja estética tem sido frequentemente escolhida por cineastas contemporâneos para representar a memória. Lembranças são também materializadas e re-significadas nos arranjos de fotos, palavras, papéis e objetos diversos apresentados pela artista plástica Leila Danziger.

A escritora Luiza Leite e a designer e artista gráfica Tatiana Podlubny fizeram em parceria um livro-imagem-relato-de-sonho carregado de pedras a um só tempo pesadas e imateriais, enquanto a artista plástica Lena Bergstein revela relatos e livros cheios de memórias encrustadas, que podem inclusive ser manuseados na exposição abrigada no MAM Rio até o dia 18 de agosto.

A artista Mayra Martins Redin monta sonhos, lembranças e imagens de estranhos objetos náufragos, e Laura Erber nos incita em ver um peixe vermelho e pulsante sobre um livro com textos da poeta Alejandra Pizarnik, como revela o ensaio sobre o trabalho escrito por Luciana di Leone.

Contamos também com relatos sonâmbulos de Botika, que apresenta uma música do espetáculo Aplique de Carne, e com uma artista surpresa.

Acreditamos na potência deste encontro para gerar ainda mais sonhos e soluções.

Boa leitura!

 

Marina Fraga
editora

 

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NOTAS

[1] SIDARTA, Ribeiro. “Para que servem os sonhos”. Revista Mente e Cérebro, Editora Duetto: 2010. 30 p.

 

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Revista Carbono #03 >> Sono, Sonho e Memória
[inverno 2013]

EXPEDIENTE:

Editora-chefe
Marina Fraga

Editor-assistente
Pedro Urano

Conselho Editorial
Marina Fraga
Pedro Urano
Marcelo Bozza
Mayra Martins Redin

Assistente Editorial
Bernardo Girauta

Revisão
Marina Fraga
Bernardo Girauta

Colaboradores da edição #03 [Sono, Sonho e Memória]
Anna Azevedo
Botika
Carmen de Alcântara Oliveira
Danilo Carvalho
Felipe Süssekind
Ismar de Souza Carvalho
Laura Erber
Leila Danziger
Lena Bergstein
Lilian Zaremba
Luciana di Leone
Luiza Leite
Marcelo Fantappié
Mayra Martins Redin
Otavio Schipper
Raphael Fonseca
Sergio Krakowski
Sidarta Ribeiro
Tania Rivera
Tatiana Podlubny

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Família Ferreira Urano
Lis Urano
Ana Paula Santos
Funarte
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e a todos os autores.

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