05 | Editorial

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Gravidade

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Philippe Petit iniciando seu espetáculo-poético-terrorista – andar sobre uma corda entre os edifício do World Trade Center, 1974.

Gravidade

[verão 2013/2014]

 

Em uma de minhas lembranças mais antigas, vejo-me no carro com meu pai, ao nascer do dia, atravessando a ponte Golden Gate, em São Francisco, em direção ao estaleiro. Meu pai trabalhava lá como encanador, e estávamos indo assistir ao lançamento de um navio. Isso foi no outono de 1943, no dia em que completei quatro anos. Quando chegamos, o navio-tanque, uma estrutura de aço em preto, azul e laranja, estava equilibrado no alto de um guincho. […] Então, numa súbita explosão de atividade, foram retirados os esteios, traves, tábuas, estacas, barras, picadeiras de dique, todo o cobro; os cabos foram soltos; as manilhas foram desmontadas; os esticadores de fios foram abertos. Havia uma total incongruência entre o deslocamento daquele peso imenso e a rapidez e agilidade com que a tarefa era realizada. […] Liberto de suas amarras, sobre troncos que rolavam, o navio deslizava cada vez mais depressa. Num momento de ansiedade tremenda, o navio-tanque estremeceu, balançou, inclinou-se para o lado e mergulhou no mar, submergindo até o meio; depois subiu até encontrar o ponto de equilíbrio. A multidão aquietava-se ao mesmo tempo que o petroleiro também se aquietava, sofrendo uma transformação: o peso imenso e obstinado de ainda pouco era agora uma estrutura flutuante, livre, solta. O maravilhamento daquele instante permanece em mim até hoje. Toda a matéria-prima que eu necessitava está contida nesta lembrança, que com frequência reaparece em meus sonhos.

O peso é para mim um valor.
Richard Serra

Todos os corpos sofrem o efeito da gravidade. Única força universal no modelo padrão da física, ela revela um diálogo insuspeito: a matéria age sobre o espaço, condiciona seu movimento. Para alguns, gravidade é geometria. Como um tecido elástico que pende diante de um peso, o espaço se deforma diante da massa, como fica claro na demonstração realizada pelo professor Dan Burns para um grupo de professores do ensino médio no Estados Unidos (veja aqui).

A gravidade nos acompanha em nosso cotidiano – na superfície do nosso planeta, as coisas caem, e manter-se erguido exige esforço. Nada que impeça que nosso desejo de subir, voar e alcançar os céus, desafie com ousadia crescente os limites impostos pela gravitação.

Quando, no início dos anos 60, Yuri Gagarin tornou-se o primeiro homem a viajar pelo espaço sideral, o saldo mais fértil não foi o gozo em vencer desafios considerados intransponíveis, mas a possibilidade de olhar pra trás e contemplar nosso planeta. “A Terra é azul. Como é maravilhosa. Ela é incrível!”, exclamou Yuri Gagarin já na década de 60. Até hoje, a experiência, conhecida nos corredores da agência espacial norte-americana como overview effect, resulta transformadora. Não por acaso, astronautas, cosmonautas e taikonautas costumam dedicar seu tempo livre em órbita a contemplar a Terra, sua finitude e a beleza de seus inúmeros detalhes em permanente movimento.

A Terra: nossa massa-mãe, nosso apoio. Uma bola de “mármore azul”, rajada de nuvens, como sugere a famosa fotografia Blue Marble, produzida pela expedição Apollo 17, em 1972 – a primeira imagem em que se pôde ver a totalidade esférica de nosso planeta.

 

Blue Marble – primeira visão completa da Terra. Sete de dezembro de 1972, Apollo 17.

 

Se essa experiência – que os norte-americanos chamam de Earth gazing – ainda é privilégio de poucos, o mesmo não se pode dizer das imagens do espaço produzidas por sucessivas missões. Hoje a humanidade dispõe de centenas de satélites em órbita e já podemos explorar a geografia terrestre em detalhes através do Google Earth, e até acompanhar o planeta em tempo real pela internet, como nos sites Earth Now e Earth View.

Antes uma força negativa, que impunha limites inegociáveis, a gravidade hoje é utilizada para impulsionar naves espaciais cada vez mais longe. É o caso da Cassini, atualmente na órbita de Saturno, e da Messenger, que alcançou Mercúrio em 2011. Em lados opostos do sistema solar, as duas sondas enviam imagens que revelam uma perspectiva cósmica, em que a Terra é apenas um ponto brilhante.

 

 

Em maio de 2013 o astronauta canadense Chris Hadfield deixou de lado o Earth gazing e dedicou seu tempo livre à gravação de uma versão do clássico de David Bowie, Space Oddity – originalmente gravado em 1969, ano em que pela primeira vez o homem pisou na Lua. A atualização em gravidade zero  das projeções sessentistas de Bowie desafiam nossas concepções de ficção e realidade.

 

 

Conhecer a microgravidade – termo técnico para o que o senso comum chama de gravidade zero – é para poucos. Os bilhões de humanos restantes que permanecem aterrados seguem experimentando o peso produzido pelo campo gravitacional da Terra. Um fardo? O senso comum afirma que o que é pesado dificulta, gasta energia, decai. Ao retornar ao planeta, no entanto, astronautas muitas vezes precisam de cadeiras de rodas e apoios para o pescoço e coluna para deixar suas naves. A gravidade nos faz fortes, cria músculos. Em sua ausência, teríamos corpos mais frágeis. A bananeira de Cildo Meireles sobre o Socle du Monde de Piero Manzoni, que publicamos em nossa edição anterior [Carbono #4 – Dinheiro] surge então na lembrança (veja na entrevista com o artista). Esta imagem que funciona em mais de uma posição parece indagar: o Atlas ali encarnado carrega o mundo nas costas ou é por ele carregado?

 

Para fazer escultura, o escultor deve se deitar, deslizando até o chão devagar e suavemente, sem cair. Finalmente, quando ele atinge a horizontalidade, ele deve concentrar sua atenção e esforços em seu corpo, o qual, pressionado contra o chão, permite que ele veja e sinta com sua forma as formas da terra. […] O escultor afunda… e a linha do horizonte se aproxima de seus olhos. Quando ele finalmente sente sua cabeça leve, a frieza do chão o corta pela metade e revela, com clareza e precisão, o ponto que separa a parte do seu corpo que pertence ao vazio do céu daquela que está no sólido da terra. É então que a escultura acontece.
Giuseppe Penone

 

Na pesquisa sobre este tema nos deparamos novamente com possibilidades infinitas. Peso e Leveza são duas ideias extremamente férteis nas artes. Mas a Gravidade move também as ciências, os sonhos, as invenções, os audaciosos. Fez, por exemplo, um equilibrista burlar um forte sistema de segurança para esticar uma corda e brincar no ar entre as torres gêmeas do World Trade Center, que na época eram os mais altos edifícios do mundo. Era 1974 e o equilibrista chamava-se Philippe Petit. Vinte e sete anos mais tarde, as mesmas torres foram atingidas por aviões e ruíram em uma das catástrofes mais espetaculares – e bem documentadas – da história recente.

 

Philippe Petit deitado sobre a corda entre os edifícios do World Trade Center – o equilibrista ficou cerca de 45 minutos no ar.

 

A Gravidade põe em movimento, provoca órbitas, quedas, impactos. Alheia aos ensejos humanos, serve para nos fazer rijos, mas também causa danos irreparáveis.

Nesta edição, apresentamos um artigo do cosmólogo e professor emérito do CBPF, Mario Novello, que, em um panorama histórico, nos revela os caminhos científicos que levaram até a atual concepção da Gravitação, cujas teorias ainda estão em controvérsia entre os pesquisadores. Trazemos também artistas que tematizam as quedas, como o holandês Bas Jan Ader, falecido em 1975, em texto da artista e pesquisadora Glaucis de Morais, e as experiências do corpo-vodu do Grupo Cena 11 Cia de Dança, em ensaio escrito pelos integrantes Anderson do Carmo e Jussara Belchior.

A geóloga Kátia Leite Mansur nos revela o processo dos deslizamentos de terra, e como ele está intimamente ligado ao passado de nossa paisagem, enquanto muitos artistas propõem o desafio da Lei da Gravitação, como podemos vislumbrar nas experiências de Chico Fernandes, na obra do artista russo Ilya Kabakov descrita no ensaio de Maria Helena Bernardes, nos ensaios em prosa de Cezar Migliorin e Manoel Ricardo de Lima, no vídeo de Débora Bertol e no vídeo de Pablo Lobato sobre a realização da obra Beam Drop-Inhotim, de Chris Burden.

Nesta edição, contamos com colaborações de duas duplas de artistas estrangeiros: os portugueses João Maria Gusmão e Pedro Paiva, que apresentam três vídeos, e a dupla composta pelo argentino Guillermo Faivovich e o francês Nicolás Goldberg, que empenharam uma longa jornada para levar um meteorito deste a Argentina até a dOCUMENTA (13), em Kassel, como a nós é revelado no texto de Graciela Speranza.

Os meteoritos – estes misteriosos corpos estelares que vieram a cair justo aqui – são também objeto do artigo da astrônoma e curadora de meteoritos do Museu Nacional da UFRJ Maria Elizabeth Zucolotto, em colaboração com as pesquisadoras Ariadne Fonseca e Loiva Antonello. Apresentamos também uma galeria com fotomicrografias de meteoritos cedidas por Zucolotto, utilizadas para analisar esses materiais extraterrestres – elas revelam a dimensão estética da pesquisa científica. Também sobre meteoritos trazemos um artigo da artista Mayana Redin, que investiga alguns dos possíveis efeitos destes corpos em nossa subjetividade.

Conversamos com o artista Artur Barrio sobre seus registros sub-aquáticos e sua experiência da profundidade e da densidade do oceano. Apresentamos também dois artigos que perpassam a relação entre a gravitação e o eletromagnetismo: o artigo do biólogo Ulisses G. C. Lins acerca das bactérias magnetotáticas, e os experimentos em vídeo da artista Maria Mazzillo.

Enfim, uma infinidade de formas de cair, levantar, erguer, despencar, lançar, desabar, impactar, atrair, deslizar, pesar, rolar nessa superfície elástica que é o espaço-tempo. Certos de que não há como dar conta de um assunto tão universal, propomos este périplo que se confunde com uma órbita. A vista há de ser admirável.

Boa leitura!

Marina Fraga e Pedro Urano

 

Revista Carbono #05 >> Gravidade
[verão 2013/2014]

EXPEDIENTE:

Editora-chefe
Marina Fraga

Co-editor
Pedro Urano

Conselho Editorial
Marina Fraga
Pedro Urano
Marcelo Bozza
Mayra Martins Redin
Mayana Redin
Lilian Zaremba
Ricardo Kubrusly

Assistente Editorial
Duda Magalhães

Colaboradores da edição #05 [Gravidade]
Anderson do Carmo
Ariadne C. Fonseca
Artur Barrio
Cezar Migliorin
Chico Fernandes
Débora Bertol
Glaucis de Morais
Graciela Speranza
Grupo Cena 11 Cia de Dança
Guillermo Faivovich e Nicolás Goldberg
João Maria Gusmão e Pedro Paiva
Jussara Belchior
Loiva L. Antonello
Kátia Leite Mansur
Manoel Ricardo de Lima
Maria Elizabeth Zucolotto
Maria Helena Bernardes
Maria Mazzillo
Mario Novello
Mayana Redin
Pablo Lobato
Sheila Dain
Ulisses G. C. Lins

O conteúdo dos artigos é de exclusiva responsabilidade dos autores. Todos os direitos reservados aos autores.

Tradução
Ricardo Romanoff
Duda Magalhães

Design, Projeto Gráfico e Identidade Visual
Amapola Rios /Liquezen

Programação Web
Agência Rastro

Agradecimentos especiais a
Pedro Urano
Mayra Martins Redin
Mayana Redin
Marcelo Bozza
Lilian Zaremba
Maria Borba
Ismar de Souza Carvalho
Cláudia Müller
Alejandro Ahmed
Família Ferreira Fraga
Família Ferreira Urano
Lis Urano
Funarte
Ministério da Cultura
e a todos os autores.

Rio de Janeiro, dezembro 2013.

Este projeto foi contemplado pelo Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais – Periódicos e Revistas sobre Artes Visuais / 2012.

 

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