07 | Dossiê

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Etnografia, encontro com o Outro.

Etnografia. Encontro com o Outro.

 

Luís Timóteo Ferreira

(O autor não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990)

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.
Clifford Geertz

 

Em 1914, o início da 1ª Guerra Mundial produziu um encontro que resultaria numa influência sobre muitos debates metodológicos e epistemológicas da ciência social no século XX e que se prologam até hoje. Bronislaw Malinowski passará vários anos na longínqua Melanésia por se ver impedido de voltar a Inglaterra por causa da guerra. Apesar de residir em Londres, fazer investigação no British Museum e estudar na London School of Economics, Malinowski era natural da Cracóvia, hoje na Polónia, mas à época parte do Império Austro-Húngaro. A guerra, portanto, transformara-o num pouco tolerado Outro, mesmo para os ingleses da Commonwealth.

 

Melanesia

A primeira obra etnográfica de Malinowski, The Natives of Mailu (1915), afastou-o do tipo de relato dos seus predecessores antropólogos britânicos e revelava já a importância do método que desenvolverá mais tarde, após anos de intensivo trabalho de campo, entre 1915 e 1918, nas Ilhas Trobriand. As suas duas obras clássicas de descrição e interpretação etnográficas densas – Argonauts of the Western Pacific (1922) e Crime and Custom in Savage Society (1926) – forjaram a sua reputação como o criador do método etnográfico de observação participante e de descrição de uma cultura a partir do ponto de vista dos nativos. Sem nunca referir o termo observação participante, Malinowski terá sido o primeiro a falar da necessidade de o antropólogo permanecer longos períodos entre os povos que estuda, aprendendo a sua língua e partilhando momentos da vida de todos os dias, imerso na sua cultura.

 

Malinowski 1918

Até então o encontro do Europeu com o Outro assumira diversas formas textuais: relatos de viagens de exploradores e missionários, relatos administrativos de governadores, diários de bordo de capitães, ou até mesmo os relatos jurídicos dos processos inquisitoriais foram uma forma de descrição do Outro. Os antropólogos, etnógrafos e folcloristas, até ao séc. XIX, sempre valorizaram o relato de outras culturas por um informador privilegiado originário destas mesmas culturas, mas agora o relato (journal, diary) do trabalho de campo (fieldwork), a observação participante, a imersão na cultura e o testemunho em primeira mão a partir do ponto de vista dos nativos, ou seja, a valorização da subjectividade da própria pessoa do investigador como ferramenta de investigação, viriam a tornar-se o procedimento por excelência do trabalho científico etnográfico. Malinowski descreveu-o claramente no primeiro capítulo de Argonauts of the Western Pacific.

Na Universidade de Chicago, fundada em 1890 pelo filantropo e magnata do petróleo, John D. Rockefeller, que cresceu tanto em tamanho e importância como a própria cidade que a albergava, deu-se um outro encontro bastante influenciado pelo trabalho de Malinowski. Uma cidade como Chicago, que passara de uns poucos milhares de habitantes em meados do séc. XIX para mais de três milhões no período entre as grandes guerras, possuía uma vasta população negra que vivia em guetos de pobreza, a quem se foram juntar muitos emigrantes de várias origens, até da Europa de Leste, sobretudo da Polónia. No início da década de 1920, Florian Znaniecki e William Thomas realizaram um estudo fundador da nova orientação da ciência social, baseando-se na correspondência familiar dos camponeses polacos que viviam em Chicago (The Polish Peasant in Europe and America 1918-1920). Em 1923, Nels Anderson escreveu The Hobo. The Sociology of the Homeless Man, sobre a cultura dos migrantes, desempregados e sem-abrigo. Em 1927, Frederic Milton Thrasher publicou The Gang. A Study of 1,313 Gangs in Chicago. Em 1928 apareceu uma obra sobre a segregação racial na Europa e em Chicago: The Ghetto, de Louis Wirth, nascido na Alemanha, de origem judaica. Clifford R. Shaw publicou em 1930 uma história de vida de um delinquente em The Jack-Roller: A Delinquent Boy’s Own Story. Em 1932, Paul Goalby Cressey escreveu Taxi-Dance Hall. A Sociological Study in Commercialized Recreation and City Life, sobre a vida nocturna em Chicago. O dinamismo da cidade e da sua universidade, sobretudo do departamento de sociologia, fez com que se passasse a designar e a entender-se por Escola de Chicago uma certa partilha de concepções teóricas e metodológicas, um olhar etnográfico que se voltava das populações ditas primitivas para o interior das grandes cidades, um olhar etnográfico sobre o negro, o imigrante, a delinquência, ou as diversas sociabilidades urbanas. Encontrava-se o Outro dentro de si próprio.

Em 1925, na obra The City, Robert Ezra Park e Ernest W. Burgess, dois dos maiores nomes da sociologia em Chicago, explicavam assim esta mudança de focagem do olhar sociológico para o encontro da realidade complexa das grandes cidades.

“A antropologia, ciência do homem, preocupou-se até o presente principalmente com o estudo dos povos primitivos. Mas o homem civilizado é um objeto de investigação muito interessante e, ao mesmo tempo, a sua vida é mais aberta à observação e estudo. A vida e a cultura urbanas são mais variadas, subtis e complicadas, mas os motivos fundamentais em ambos os casos são os mesmos. Os mesmos métodos pacientes de observação que antropólogos como Boas e Lowie já utilizaram no estudo da vida e costumes dos índios norte-americanos podem ser ainda mais proveitosamente empregados na investigação dos costumes, crenças, práticas sociais, e nas concepções gerais de vida prevalentes em Little Italy, na parte Norte de Chicago, ou na gravação dos costumes mais sofisticados dos habitantes de Greenwich Village e do bairro de Washington Square, em Nova Iorque.” (Park & Burgess, 1925, p. 3, tradução nossa). 

O objectivo da etnografia é descrever a vida do outro, de outrem que não nós próprios, com uma tal acuidade e sensibilidade, possibilitadas pela observação prolongada de uma experiência vivida em primeira mão, que traduza o significado do vivido através do ponto de vista de quem o viveu. Entender os outros é encontrar-se com eles, é “entrar em diálogo com eles” (Giddens, 1997, p. 291). Mas como pode isto ser possível e como pode isto ser considerado ciência? Esta é uma complexa história, feita talvez mais de desencontros do que de encontros. Já dei conta, brevemente, de alguns destes desencontros acerca da explicação científica da realidade social no artigo Guerra das ciências. Hermenêutica breve no número anterior da Revista Carbono. Tentarei agora esclarecer melhor alguns encontros tendo como fio condutor a etnografia e a etnometodologia (assumo os dois termos como equivalentes).

Para usar uma palavra que está na moda há quarenta anos, pode-se dizer que o paradigma dominante na Escola de Chicago, a despeito da novidade dos estudos referidos acima, era o paradigma quantitativista: a sociologia ou a antropologia eram consideradas ciências empíricas baseadas em cálculos estatísticos de dados recolhidos através de uma noção bastante ampla de inquérito social (Hammersley, 1989). Até aos anos de 1950-60 foi o paradigma dominante, a chamada sociologia positivista, ainda que sob o termo positivismo, e a sua relação com o empirismo, se escondam algumas confusões que não poderão ser aqui abordadas (Giddens, 1997; Kolakowski, 1972).

A partir dos anos de 1920-30 emerge a consciência, minoritária ainda em Chicago, que a realidade social é passível de ser entendida com base num outro tipo de dados, hoje chamados qualitativos. A realidade social mostraria aspectos que escapavam à consideração de que ela seria apenas res extensa, que para compreendê-la apenas seria preciso medir, contar, identificar variáveis e relacioná-las entre si. Os dados chamados qualitativos surgiam em investigações que utilizavam métodos de recolha de dados pouco estruturados em função da análise estatística ou de qualquer medição quantitativa e revelavam a interferência de um número bastante elevado de variáveis: entrevistas abertas e em profundidade, observação participante e prolongada, uma ênfase nos contextos e na linguagem utilizada pelos próprios actores sociais na estruturação dos significados culturais e não a sua tradução pelo investigador. Ao longo do séc. XX, com prolongamentos no presente século, as atitudes dos investigadores ditos qualitativos ou quantitativos oscilaram da complementaridade à rejeição absoluta, do encontro eclético ao desencontro belicoso.

No entanto, seria simplista ver a história como uma linha recta e é preciso estar atento às mitificações do passado, sobretudo quando certas guerras perduram. Os que querem hoje ser os sucessores costumam elencar, na sua genealogia, os precursores: Malinowski, Max Weber, Husserl, George Herbert Mead, Wittgenstein… É costume elencar todos estes autores como fosse possível traçar uma genealogia em linha recta desde a sociologia dos primórdios da escola de Chicago até às correntes qualitativas já bem posicionadas institucionalmente nas universidades há já alguns anos. Na verdade, a escola sociológica de Chicago cultivou, desde o seu início, uma grande diversidade metodológica e intelectual (Bulmer, 1986; Hammersley, 1989) e é apenas nos anos de 1990 que se acentua, da barricada do interpretativismo e com o recrudescimento das guerras, a imagem de Chicago como bastião dos métodos qualitativos contra a hegemonia do positivismo. Não há dúvidas que Herbert Blumer, o criador do termo interaccionismo simbólico, uma noção que propôs uma abordagem diferente à compreensão do comportamento individual e de grupo tal como era compreendida pelos psicólogos e sociólogos de matriz positivista e behaviorista, foi um dos grandes críticos, entre 1930 e 1970, da hegemonia dos métodos quantitativos. No entanto, o entendimento que Herbert Blumer tem do papel das ciências sociais o colocou – e continua a colocar-nos – em face de um dilema:

 “ (…) por um lado, uma inescapável necessidade de inclusão do elemento subjectivo da experiência humana, mas, por outro lado, uma enorme e, até ao momento, insuperada, dificuldade de obtenção de dispositivos que apreendam este elemento da experiência humana da mesma forma que é costume fazer-se com os dados passíveis de utilização em procedimentos científicos vulgares.” (Blumer apud Hammersley, 2010, p. 72, tradução nossa). 

O debate metodológico é longo e complexo, pois remete para fundamentações epistemológicas. Correntes filosóficas, nas ciências sociais, mais próximas da filosofia analítica, muito influenciadas pelo positivismo lógico, ou mais próxima da filosofia continental, muito influenciadas pela hermenêutica e pela fenomenologia, têm extremado posições. O diálogo de paradigmas (Guba, 1990) não tem sido capaz de evitar a guerra. A questão fundamental parece ser bastante simples, como se quer às boas questões filosóficas: é ou não possível explicar e compreender a realidade social baseando a ciência social no modelo das ciências naturais? Embora simples, a questão coloca, no mínimo, três problemas interrelacionados: a dimensão natural e social do homem, a necessidade ou possibilidade de um método único de compreensão da natureza e da sociedade, o significado de noções como explicar e compreender. Por uma questão de economia, só me será possível aqui apenas esboçar os termos do último destes problemas e de forma bastante resumida.

Há toda uma tradição do pensamento ocidental, que muitos vêem como uma tradição especificamente germânica, que postula uma dupla oposição: entre as Geisteswissenschaften (ciências do espírito) e as Naturwissenschaften (ciências naturais) e entre a capacidade de compreensão (Verstehen) e de explicação (Erklären). Para alguns este léxico parecerá esdrúxulo; no entanto, não se deve perder de vista a importância dos conceitos e da formação de conceitos em dois mil e quinhentos anos de pensamento ocidental. Tentarei apresentar um exemplo didáctico que, talvez, possa ilustrar esta oposição.

No meu campo de investigação, a teoria do currículo, há já várias décadas que se procura compreender e explicar o fenómeno do fracasso escolar. Poder-se-ia explicar o fracasso escolar a partir da biologia: um condicionalismo genético das capacidades cognitivas, potenciado por deficiente alimentação e/ou drogas e alcoolismo dos progenitores. Poder-se-ia avançar com uma explicação médica, pedopsiquiátrica: fraca estimulação do desenvolvimento na primeira infância, carências afectivas, problemas emocionais. Poder-se-ia avançar com uma explicação sociológica de tipo quantitativo: identificar a origem social dos alunos a partir de certos critérios, relacionar determinadas variáveis previamente definidas, fazer uma análise estatística da progressão e conclusão escolares em função daqueles critérios e variáveis. Se todos estes procedimentos científicos conseguem dar uma explicação do fenómeno do fracasso escolar, não é difícil encontrar um professor que nos indique um caso de sucesso escolar contra todas a evidências possíveis ou, pelo contrário, um caso de fracasso quando todas as condições estão presentes para o sucesso. Ora, o paradigma hegemónico das ciências naturais, há muito que o foi dito por Kant, é nomotético, ou seja, procura a generalização e o estabelecimento de leis. Os muitos casos que fogem à explicação acima, ou representam uma anomalia dos dados e dos procedimentos metodológicos, ou não conseguem ser explicados por eles. Portanto, poder-se-ia compreender o fracasso e o sucesso escolar a partir de um outro ponto de vista sobre a realidade social que dificilmente seria passível de algum tipo de medição: como se dão as relações entre as crianças nas salas de aula, no espaço escolar e no recreio, entre elas e os professores, entre elas e a tecnologia disponível, entre elas e as experiências e conteúdos sob os quais lhes é apresentado o currículo? Que expectativas e representações certos grupos sociais e culturais têm do conhecimento, da formação académica e profissional, do trabalho? Como se comportam e interagem certos profissionais especializados, neste caso os professores, no seio de uma instituição como a escola?

Uma das perspectivas metodológicas possíveis para a compreensão do fracasso escolar que não exclui todas as outras anteriormente referidas é a do interaccionismo simbólico. O interaccionismo simbólico teve uma influência considerável, ainda que não exclusiva, na microssociologia escolar e na etnografia da educação (Lapassade, 1991, 1998). Esta longa definição do interaccionismo simbólico é bastante esclarecedora de um método bastante distinto de abordagem da sociedade:

“O interacionismo simbólico repousa, em última análise, em três premissas simples. A primeira premissa é que os seres humanos agem em relação às coisas na base dos significados que as coisas têm para eles. Tais coisas incluem tudo o que o ser humano pode perceber em seu mundo – objectos físicos, tais como árvores ou cadeira; outros seres humanos, como uma mãe ou um caixa de supermercado; categorias de seres humanos, como amigos ou inimigos; instituições, como uma escola ou um governo; ideais orientadores, como a independência e honestidade do indivíduo; atividades dos outros, tais como as suar ordens ou pedidos; e determinadas situações como encontros individuais na sua vida do dia-a-dia. A segunda premissa é que o significado de tais coisas é derivado ou surge da interação social que se tem com os semelhantes. A terceira premissa é que esses significados são tratados e modificados através de um processo interpretativo usado pela pessoa para lidar com as coisas que ele encontra.” (Blumer, 1969, p. 2, tradução nossa.)

Para além de um método que se pode basear ou não nas premissas do interaccionismo simbólico, a etnografia é uma prática. Uma prática que tem vários procedimentos fixados em manuais há quase cem anos: manter um diário, negociar o acesso ao campo e ao grupo, selecionar informantes, etc. É uma prática que tem na observação participante a sua pedra de toque: é ela que permitirá a compreensão e descrição densas. Sem ela, dificilmente haverá encontro com o Outro. Mas a etnografia é diálogo, para que haja compreensão e não apenas a traição da tradução.

O nosso grande historiador Sérgio Buarque de Hollanda, num livro magnífico, Visão do Paraíso, de 1959, notou com acuidade que, ao grande momento do encontro de civilizações da era moderna, faltou uma capacidade de compreensão do Outro.

“A geografia fantástica do Brasil, como do restante da América, tem como fundamento, em grande parte, as narrativas que os conquistadores ouviram ou quiseram ouvir dos indígenas, e achou-se além disso contaminada, desde cedo, por determinados motivos que, sem grande exagero, se podem considerar arquetípicos. E foi constantemente por intermédio de tais motivos que se interpretaram e, muitas vezes, se ‘traduziram’ os discursos dos naturais da terra.” (Hollanda, 2000, p. 83).

Hoje, infelizmente, esta incapacidade do encontro talvez ainda se manifeste num monólogo, num fechamento cultural concêntrico e, paradoxalmente, cada vez mais globalizado, que vai eliminando a diversidade por causa desta mesma incompreensão.

 

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LUÍS TIMÓTEO FERREIRA, 47 anos, é carioca, de mãe capixaba e pai português. Emigrou durante a presidência de José Sarney, sendo a terceira geração a cruzar o Atlântico, agora em sentido contrário. É licenciado e pós-graduado em história contemporânea pela Universidade de Coimbra. É professor de história e de português no Funchal, ilha da Madeira. É doutorando em Estudos Contemporâneos do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra.

 

Referências bibliográficas:

Blumer, H. (1969). Symbolic Interactionism: Perspective and Method. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, Inc.

Bulmer, M. (1986). The Chicago School of Sociology. Chicago: Chicago University Press.

Giddens, A. (1997). Política, Sociologia e Teoria Social. Encontros com o Pensamento Social Clássico e Contemporâneo. São Paulo: UNESP.

Guba, E. (1990). The Paradigm Dialog. New York: Sage Publications.

Hammersley, M. (1989). The dilemma of qualitative method: Herbert Blumer and the Chicago tradition. London: Routledge.

Hammersley, M. (2010). The case of the disappearing dilemma: Herbert Blumer on sociological method. History of the Human Sciences, 23(5), 70-90.

Hollanda, S. B. d. (2000). Visão do Paraíso. Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. São Paulo: Publifolha.

Kolakowski, L. (1972). Positivist Philosophy. From Hume to the Viena Circle (3ª ed.). London: Penguin Books.

Lapassade, G. (1991). L’ Éthnosociologie. Paris: Méridiens Klincksieck.

Lapassade, G. (1998). Microsociologie de la vie scolaire. Paris: Anthropos.

Park, R. E., & Burgess, E. W. (1925). The City. Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment. Chicago: University of Chicago Press.

 

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