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O turista aprendiz na Amazônia: a invenção no texto e na fotografia

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O TURISTA APRENDIZ NA AMAZÔNIA: A INVENÇÃO NO TEXTO E NA FOTOGRAFIA*

                                                  Telê Ancona Lopez

 

Multiplicado nos caminhos do polígrafo, Mário de Andrade foi também um fotógrafo moderno, cuja produção de reconhecimento tardio, circunscrita a 1927-1932, reúne perto de 1.000 imagens e se reporta especialmente a duas viagens. Neste assunto tão amplo, vou me restringir à primeira, quando o viajor cotidiano ao redor de seus livros se transforma no Turista Aprendiz que percorre uma parcela da Amazônia, entre maio e a primeira quinzena de agosto, em 1927. Quanto desponta o fotógrafo na plenitude do olhar criador, aliado à busca da precisão técnica, o que bem se vê nas suas legendas de cunho técnico e poético, rigorosas nas datas. Mário tem 34 anos. Modernista em tempo integral, batiza brasileiramente Codaque a sua máquina norte-americana Kodak de fole e inventa o verbo “fotar”. Da viagem de 1927 provêm mais de 500 imagens reveladas e um bom número de negativos. A maioria dos positivos, em preto/branco, mede 6,1 x 3,7 cm e admite algumas ampliações de 17,5 x 12,5cm, também P/B ou em viragem sépia. Na segunda viagem, a que se alonga de 27 de novembro de 1928 a fevereiro de 1929, a fotografia flagra instantes do trabalho do etnógrafo e de seu lazer no Nordeste brasileiro, reiteradas as conquistas de 1927, mas empobrecidas as legendas adstritas à identificação da imagem, sem lembrar diversas datas.

No arquivo do escritor, no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, na série Fotografias ali classificada, a subsérie Mário de Andrade fotógrafo absorve as duas viagens. A série tem início no final do século XIX, nos poucos retratos de família, entre os quais se destaca, em 1893, o futuro contista de “O tempo da camisolinha”, assim trajado antes de completar um ano. Ao que se observa, a formação desse conjunto documental segue até 1945, quando morre o signatário do arquivo, em 25 de fevereiro. Colige retratos com a marca de estúdios e instantâneos; mostra a despreocupação de amadores assim como o desígnio nas imagens criadas por artistas da câmera como Jorge de Lima, Germano Graeser, Benedito Duarte ou Jorge de Castro, e agrega cartões-postais adquiridos no propósito de documentar, como as sete vistas de Mariana e São João Del Rei, uma delas repetida, originalmente guardadas em um envelope com a nota a grafite “Brasil antigo”. Nesses postais graficamente mais antigos, as cidades mineiras fotografadas representam as férias, em julho de 1919, do moço que lecionava no Conservatório, escrevia em periódicos paulistanos e, em 1917 publicara o livro Há uma gota de sangue em cada poema. Ao visitar Mariana, ele conta a Alphonsus de Guimaraens, poeta simbolista da sua admiração, estar se preparando para fazer conferências [1]. No mesmo 1919, a crônica “Alphonsus” sai em 1º de novembro na revista A Cigarra, ilustrada com a Igreja de S. Francisco, aproveitado o cartão com duplicata [2]. E, em 1920, a Revista do Brasil estampa, dividida em quatro partes, a série “A arte religiosa no Brasil”, conferência na Congregação da Imaculada Conceição de Santa Ifigênia [3]. Lembro que o intento de documentar remete à composição da série Matérias extraídas de periódicos, conjunto dos mais antigos estendendo-se até o final da vida do estudioso, na rede sem remate de seu arquivo. Nessa série, reportagens, fotografias e notícias recortadas de jornais e revistas insinuam viagens virtuais a diversas regiões brasileiras [4].

Figura 23 – “Margem do Solimões/ Junho – 1927/ Sobre as ondas” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Margem do Solimões/ Junho – 1927/ Sobre as ondas” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

MATRIZES

Penso que se pode procurar a gênese de Mário de Andrade fotógrafo no esforço de atualização que as leituras do crítico e teórico da renovação estética refletem nas áreas de artes plásticas e de cinema. Nas estantes desse leitor insaciável sobressaem números de 1919 da revista de Darmstadt, Deutsche Kunst und Dekoration, com excelentes fotos, o livro de Ernest Coustet, Le cinema de 1921, e artigos de L. Delluc e Céline Arnaud, na revista L’ Esprit Nouveau, entre 1922 e 1923. Equivalem a lições de análise fotográfica e cinematográfica que sustentam o crítico de fitas exibidas na Paulicéia nos artigos assinados com as iniciais J. M., R. de M. e com as suas – M. de A. –, na revista Klaxon, do modernismo paulista[5]. Um crítico capaz de contestar uma interpretação de Arnauld do filme de Chaplin The Kid (O garoto), em 1922 [6]. Pioneiro na valorização da nossa cinematografia nascente, J. M. aborda a comédia Do Rio a São Paulo para casar, como bom conhecedor da arte de Daguerre:

“Fotografia nítida, bem focalizada. Aquelas cenas noturnas foram tiradas ao meio-dia com sol brasileiro… Filmadas à tardinha, o rosado não sendo tão fotogênico, a produção sairia suficientemente escura. Isso enquanto a Empresa não consegue filmar à noite.” [7]

Apesar da L’ Esprit Nouveau não cultivar especialmente a fotografia, a presença da revista na biblioteca de Mário de Andrade sinaliza a educação do olhar do leitor perspicaz que se depara, por exemplo, no nº 21, de fevereiro 1924, com Ozenfant e Jeanneret postulando, juntos, a “Formation de l’ optique moderne”. Em 1923, ele já definira como “cinematográfico” o romance/ idílio estruturado no encadeamento das cenas, sem divisão em capítulos, Fräulein, que vinha escrevendo, e publicará em 1927, sob o título Amar, verbo intransitivo [8]. Pode-se então pensar que a necessidade de apreender a geometria na disposição dos objetos e nas cenas do cotidiano, ressaltada pelo artigo de Ozenfant e Jeanneret, tenha instruído a criação do olhar sofisticado da heroína de Mário, segundo o narrador. Mulher culta, de sensibilidade moderna, Fräulein, como uma câmera, sabe isolar ângulos, perceber volumes, seguir planos e contornos no espaço da casa dos Sousa Costa, onde se emprega como governanta.

Figura 18 – “Assacaio/ 17-VI-27/ O mais alto é enegrecido pintado de genipapo” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Assacaio/ 17-VI-27/ O mais alto é enegrecido pintado de genipapo” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Na Semana Santa de 1924, o desígnio de conhecer o país move o retorno de Mário de Andrade a Minas Gerais, incorporado à caravana modernista, na “viagem da descoberta do Brasil” [9]. Excursiona com Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado, grande dama da aristocracia do café e mecenas dos modernistas, o poeta francês Blaise Cendrars mais outros amigos. Fundamental nos rumos do nosso nacionalismo modernista, a viagem brilha em importantes resultados – o surgimento da estética Pau Brasil, com Oswald e Tarsila; a redação do “Noturno de Belo Horizonte”, longo poema de Mário no qual as visões do eu lírico transfiguram caminhos do viajante que deixa, também no desenho e na crônica, flagrantes de seu percurso [10]. E testemunha o gosto de fotografar na amiga que se registra no hotel mineiro como: “D. Olívia Guedes Penteado, solteira, photographer, anglaise, London”, em meio ao “o claro riso dos modernos” [11].

Logo depois de setembro de 1924, pelo que se analisa, aumenta o contato de Mário de Andrade com a arte fotográfica: ele passa a receber, mediante assinatura, Der Querschnitt, revista de Berlim ligada à Nova Objetividade. Ali, nas reproduções de trabalhos de Man Ray, Riebicke, Schneider, Galloway e outros fotógrafos de primeira plana, multiplicam-se lições de composição, consignando o corte, o valor do close, dos matizes para o melhor rendimento do preto/branco, sugerindo cores; a geometrização, o aproveitamento da luz e da sombra, o reflexo, o movimento, o retrato de costas, a plena liberdade para a experimentação, enfim. Der Querschnitt abre, para o sôfrego leitor, a capacidade da câmara expressar o humor, o lirismo, a poesia visual, a cena cômica; de transfigurar a alegria, a espontaneidade do cotidiano; de construir o retrato como o instante iluminado que recolhe a alma de homens e mulheres ou que com eles inventa personagens para propor situações existenciais novas, surpreendentes, como o pintor Braque de ponta-cabeça. Ensina-lhe, principalmente, que a máquina é a companheira inseparável do viajante e de todos aqueles que empreendem pesquisas de campo etnográficas ou etnológicas.

Figura 19 – “Boniteza tapuia/ De fato ela era mais bonita que o retrato. S. Salvador/ 1-VII-27/ ‘A Venus do milho’!” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Boniteza tapuia/ De fato ela era mais bonita que o retrato. S. Salvador/ 1-VII-27/ ‘A Venus do milho’!” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Nessa direção, as lições proporcionadas por Der Querschnitt casam-se àquelas que o modernista brasileiro interessado em etnologia obtém em 1926, nos quatro volumes da obra magna Vom Roroima zum Orinoco de Theodor Koch-Grünberg.[12] Além do lendário no segundo volume, onde se acham matrizes do poema “Lenda das mulheres de peito chato” e da rapsódia Macunaíma, iniciada nesse ano nas margens do seu exemplar, Mário de Andrade acompanha um longo e rigoroso ensaio fotográfico que documenta, no correr dos volumes, o tipo físico, costumes e elementos da cultura material dos diferentes povos indígenas estudados, bem como o espaço geográfico e o próprio etnólogo em atividade. O ano da leitura de Vom Roroima e primórdios da escritura de Macunaíma são fornecidos pelo próprio escritor, de forma cifrada, na data que encima a “Carta pras icamiabas”, capítulo IX: “Trinta de Maio de Mil Novecentos e vinte e seis, em São Paulo”.

Aliás, em 1926, na carta de 26 de julho enviada por Mário a Luís da Câmara Cascudo, entende-se que fotografia, coleção e intenções viajoras combinam-se no horizonte do remetente:

“Você nem imagina que gosto me deu o campeiro vestido de couro que você me mandou. Andei mostrando pra toda gente e mais a fotografia do maravilhoso cacto. As três fotografias já estão bem guardadinhas na minha coleção. Se lembre sempre de mim quando vir fotografias da nossa terra aí dos seus lados. Meu Deus! Tem momentos em que eu tenho fome, fome estomacal de Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me alimento! Ah! se eu pudesse nem carecia você me convidar, já faz sentido que tinha ido por essas bandas do norte visitar vocês e ao norte.” [13]

A VIAGEM NO TEXTO E NA CODAQUE

Mário de Andrade, como já se sabe, vai primeiramente o Norte. As duas viagens que realiza como ‘turista aprendiz’, em 1927 e 1928-1929, são as mais demoradas e extensas de uma vida de poucas viagens. Devotadas a uma espécie de impregnação do Brasil, ambas lhe garantem diários textuais e imagéticos, estes últimos unindo legendas às fotografias. Na primeira viagem, precisamente entre 7 de maio e 15 de agosto, 1927, ao lado de D. Olívia Penteado (de quem viera a ideia), da sobrinha dela, Margarida Guedes Nogueira – Mag – e da filha da pintora Tarsila do Amaral, Dulce do Amaral Pinto – Dolur –, duas descontraídas mocinhas, bem como de companheiros desconhecidos até então, o diarista excursiona pelos estados do Amazonas e do Pará, chega a Porto Velho, a Iquitos, no Peru, e à fronteira com a Bolívia. Parte do Rio e para lá volta de vapor, com escalas nos portos principais; a bordo de embarcações típicas da região, navega os grandes rios, igapós e igarapés; toma o trem da Madeira-Mamoré. Na segunda viagem, ao nordeste, de 27 de novembro, 1928 até 7 de fevereiro no ano seguinte, anda por Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco.

Figura 16 – “Entrada dum paraná ou paranã/ rio Madeira/ 5-VII-27/ Ilha de Manicoré. O I é o rio Mataurá, o II é o Madeira” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Entrada dum paraná ou paranã/ rio Madeira/ 5-VII-27/ Ilha de Manicoré. O I é o rio Mataurá, o II é o Madeira” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Ainda no ano 1927, a escritura do diário, autógrafo que durante a viagem se espalha por muitas folhas de variado feitio, unifica-se, alarga-se e cristaliza o título na primeira versão datilografada. A carta de Mário a Manuel Bandeira, em 30 de janeiro, 1928, relatando a transformação de determinado poema em “um dos dias do Turista Aprendiz”, afiança o prosseguimento da criação [14]. Vestígios dessa primeira versão integral e de mais outra esgueiram-se até última versão, a terceira, datiloscrito que o “Prefácio” arremata em 30 de dezembro, 1943. Nesta que almeja virar livro, mas fica inacabada, o diarista repõe em tempo presente, 21 de maio em Belém, seu processo de trabalho:

“Estas notas de diário são sínteses absurdas, apenas pra uso pessoal, jogadas num anuariozinho de bolso, me dado no Lóide Brasileiro, que só tem cinco linhas pra cada dia. As literatices são jogadas noutro caderninho em branco, em papéis de cartas, costas de contas, margens de jornais, qualquer coisa serve. Jogadas. Sem o menor cuidado. Veremos o que se pode fazer com isso em São Paulo.” [15]

A análise dos documentos do processo criativo aponta quatro diários. Dois, no decorrer da excursão. O diário acima citado, disperso em papéis diversos, do qual poucos fólios restaram, depois de transferido para as versões que moldam a versão final datilografada, sob a chancela do “Prefácio” datado de “30-XII-1943”. Ele coexiste com um segundo, imagético-textual, constituído dos negativos vinculados, ao que se presume, a um caderninho de bolso, onde o fotógrafo anota de imediato, a lápis preto, os dados relativos às tomadas que concretiza com sua câmera. Vale dizer, os lugares, as pessoas, acontecimentos e informações de ordem técnica, sobre a luz – “sol” –, abertura do diafragma, hora e minutos exatos. Exemplifico: “Forte de Gurupá/ rio Amazonas/ 25-VII-27 Diaf. l Sombra de sol das 14 e 25”, ou “Casa telada da/ Madeira-Mamoré/ Porto Velho – 11/VI-27/ Obj. 2 Sol 1/ 13 e 10”. As anotações destinam-se a legendar as imagens, depois dos negativos revelados em São Paulo, quando o caderninho, cumprida a missão, é descartado.

Figura 01 - MA-F-0265 (verso)

“Casa telada da/Madeira-Mamoré/Porto Velho – 11/VI-27/Obj. 2 Sol 1/13 e 10.” Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 02 - MA-F-0596 (verso)--TO-EMAIL

“Almoço da 3a. Classe. Baependy – ao largo/6-VIII-27/diaf. 1 – Sol 1 das 10 Em terceira voracidade”. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Ao regressar, o escritor e fotógrafo, ainda em 1927, empenha-se em mais dois diários: o imagético-textual e o textual propriamente dito. O primeiro prende-se às imagens reveladas em preto/branco e viragens, acopladas às respectivas legendas no verso, a lápis. Estas, em uma primeira etapa da escritura, geralmente transpõem as informações presentes no caderninho citado, e em uma segunda − materializada no traço mais leve −, glosam as mesmas imagens e o exercício fotográfico, ao construir um texto fragmentário, multifacetado e híbrido, como todos os diários. Nele viceja tanto o registro que se propõe fidedigno, como a criação literária que exerce o humor, o lirismo e a metalinguagem.

Modernista, o diário das legendas e imagens, ao lado do primeiro diário textual, aquele das sínteses esboçadas em papéis esparsos, embasa o trabalho do escritor que, em sua escrivaninha paulistana, no mesmo ano da viagem, compromete-se, portanto, com um novo texto no qual recorre a diversos tipos de relato e chega a dialogar com o diário do naturalista von Martius, viajante na Amazônia, ao construir o alvorecer no registro de 5 de julho [16]. Tem intenção de publicar o diário reescrito e batizado O Turista Aprendiz:/ (Viagem pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega), título que parodia o livro do avô, Leite Moraes, de 1883, Apontamentos de viagem de São Paulo á capital de Goiás, desta ao Pará, pelos rios Araguaia e Tocantins, e do Pará à Corte. Considerações administrativas e políticas. Dessa versão de 1927, sobrevivem parcelas aproveitadas na referida versão final datiloscrita, portadora do prefácio de 30 de dezembro, 1943. Curiosamente, prefácio e texto não preveem a inclusão de fotografias na obra editada.

Figura 24 – “Única igreja de Porto-Velho/ 11-VI-27/ Sol 1 Diaf. 2 13 e 15/Nun arm Ich bin gehst du zuruck” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Única igreja de Porto-Velho/ 11-VI-27/ Sol 1 Diaf. 2 13 e 15/Nun arm Ich bin gehst du zuruck” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Crônica do cotidiano”, no dizer de Girard, ou “ancoragem no tempo”, segundo C. Viollet e bem mais que isso, o diário final do Turista Aprendiz, moderno e brasileiro, em muitos mementos desvia-se da representação do plano real do espaço, característica comum dos diários de viagem. Assim acontece porque, ao enveredar a ficção, prefere um trajeto à moda do barão de Münchhausen. Faz do narrador o protagonista da transviagem da invenção que lhe faculta cruzar um espaço de feições surrealistas, no intuito de figurar, com humor, no estranhamento, a hipérbole natural da natureza amazônica, desprezando o a descrição de cunho apologético. A transviagem faculta ao diarista, paradoxalmente, a viagem ao redor de suas leituras, quando ele logra, na recriação de relatos de outros viajantes, justapor irreverência e discurso elevado, ao transitar por um espaço de invenção, espaço “desgeograficado” (conforme classificação sua no Prefácio a Macunaíma), contendo elementos do Brasil, da América, da Europa e da África [17]. Como na chegada à foz do Amazonas, em 18 de maio:

“Estávamos todos trêmulos contemplando da torre de comando o monumento mais famanado da natureza. E vos juro que não tem nada no mundo mais sublime. Sete quilômetros antes da entrada já o mar estava barreado de pardo por causa do avanço das águas fluviais. Era uma largueza imensa gigantesca rendilhada por um anfiteatro de ilhas florestais tão grandes que a menorzinha era maior que Portugal. O avanço do rio e o embate das águas formavam rebojos e repiquetes tremendos cujas ondas rebentavam na altura de sete metros chovendo espumas espumas espumas roseadas pela manhã do Sol. Por isso o Pedro I avançava numa chuva em flor. Avançava difícil, corcoveando aos saltos, relando pelo costado dos baleotes e das sucurijus do mato amazônico aventuradas até ali pela miragem da água-doce. À medida que a gente se aproximava as ilhas catalogavam sob as cortinas de garças e mauaris que o vento repuxava todas as espécies vegetais e na barafunda fantástica dos jequitibás perobas, pinheiros plátanos assoberbada pelo vulto enorme do baobá a gente enxergava dominando a ramada as seringueiras sonhadas em cujas pontas mais audazes os colonos suspensos em cordas de couro cru apanhavam as frutinhas de borracha. O aroma do pau-rosa e da macacaporanga desprendido da resina de todos os troncos era tão inebriante que a gente oscilava com perigo de cair naquele mundo de águas brabas. Que eloquência! Os pássaros cantavam no voo e a bulha das iererês dos flamingos das araras das aves-do-paraíso nem me deixou escutar a sineta de bordo chamando pro jantar. A Senhora me tocou no braço e assustei. Fui com os outros, deixando o pensamento chorado na magnificência daquela paisagem feita às pressas em cujo centro relumeava talqualmente olho de vidro a rodela guaçu de Marajó inundada.” [18]

O Turista Aprendiz, diário textual, contém diversas alusões à máquina Codaque, e ao ato de fotografar, isto é “fotar”. Caminha paralelo ao diário na fotografia, ambos multifacetados, mais um traje de arlequim no modo de Mário de Andrade estruturar suas obras. O diário imagético, aquele que aqui me interessa, consolida a experimentação, vincada por um forte senso da composição, apoiada no conhecimento técnico. Configura a incursão consciente pela fotografia como linguagem, a redefinição do olhar através da lente, sabendo que “Nenhum fotógrafo oferece uma imagem natural: o que ele produz com sua câmera, é sempre construção que recorta, enquadra, valoriza ou diminui aspectos representados do mundo”, conforme sublinha hoje o crítico Jorge Coli. [19]

Figura 12 – “Dolur na vista marajoara 31-VII-27/ Sol 3 diaf. 3/ Trombeta” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Dolur na vista marajoara 31-VII-27/ Sol 3 diaf. 3/ Trombeta” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Mário fotógrafo subverte planos, pratica o “close”; calcula, compõe; despreza padrões ao fazer cortes ou tomar figuras de costas. Grava sutilezas, como no desfile escolar em Porto Velho, em que o semicírculo dos chapéus e do guarda-sol de D. Olívia é arremedado pela copa das árvores. Imprime um “clima” à fotografia. Desenvolve sequências de acordo com a movimentação da luz, da cena, quase cinema, como nas fotos do pescador que arremessa a tarrafa.

Figura 33 –“Atirando tarrafa/ Igarapé de Barcarena/ arredores de Manaus/ 7-VI-27” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Atirando tarrafa/ Igarapé de Barcarena/ arredores de Manaus/ 7-VI-27” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

VERTENTES

O diário das imagens e legendas que funde testemunho encenado e artefazer, possui vertentes que se interpenetram, concernindo ao registro do cotidiano do grupo de amigos, à captação do espaço e da vida do homem na Amazônia, ou àquela dimensão que distingue Mário de Andrade – a experimentação artística.

O dia-a-dia do quarteto– instantâneos e poses – poucas vezes acolhe outros companheiros excursionistas. Desdobra-se na ficção vivida como lazer: o Turista e a filha de Tarsila fantasiam-se de índio, festejados com legendas jocosas; Mário se apronta especialmente para uma “Aposta de ridículo” em Tefé, a 12 de junho, de luvas, leque, comendo banana. Suas três companheiras se convertem em personagens no texto e na fotografia. Assim, D. Olívia, objeto da amizade reverente do modernista, é cognominada Nossa Senhora do Brasil e Manacá, flor discreta, perfumada; Dolur se torna Trombeta e Mag, Balança, por conta de uma brincadeira envolvendo a questão do Juízo Final.

Figura 13 – “Aposta de Ridículo em Tefé/ 12-VI-27” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Aposta de Ridículo em Tefé/ 12-VI-27” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 11 – “Nossa Senhora no Madeira/ 4-Julho-1927” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Nossa Senhora no Madeira/ 4-Julho-1927” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 29 – “Amor e Psiquê no Solimões/ Junho – 1927/ Canova 1927” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Amor e Psiquê no Solimões/ Junho – 1927/ Canova 1927” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Nessa vertente, o autorretrato de Mário, na referida aposta em Assacaio, no dia 17 de junho, é bastante significativo. Preludia – cheio de humor – uma espécie de adesão à civilização tropical postulada em Belém, no dia 18 de maio de 1927:

“Há uma espécie de sensação fincada da insuficiência, da sarapintação, que me estraga todo o europeu cinzento e bem arranjadinho que ainda tenho dentro de mim. Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castro-alves. E esta pré-noção invencível, mas invencível, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários, quitutes… E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas macaquear, a Europa. Nos orgulhamos de ser o único grande (grande?) país tropical…. Isso é o nosso defeito, a nossa impotência. Devíamos pensar, sentir como indianos, chins, gente de Benin, de Java… Talvez então pudéssemos criar cultura e civilização próprias. Pelo menos seríamos mais nós, tenho certeza.” [20]

São imagens que ampliam o alcance do crivo crítico brasileiro proposto na profissão de fé do poeta, em 1922, “Sou um tupi tangendo um alaúde!” [21]

Figura 14 – “Assacaio/ (na mão direita uma flor feito cachimbo. Um grupo de flores bicos-de- araras na outra/ 17-VI-27” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Assacaio/ (na mão direita uma flor feito cachimbo. Um grupo de flores bicos-de- araras na outra/ 17-VI-27” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 3 – “Eu diante dum tronco de sumaúma entre Sto. Antônio e Porto-Velho, nos limites entre Amazonas e Mato Grosso/11-VII-27/Diaf. 1 Sol 3/16 e 30”. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Eu diante dum tronco de sumaúma entre Sto. Antônio e Porto-Velho, nos limites entre Amazonas e Mato Grosso/11-VII-27/Diaf. 1 Sol 3/16 e 30”. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Se em diversas passagens, no datiloscrito concluído em 1943, a crônica do cotidiano deixa transparecer o espanto no olhar europeizado do paulistano diante da desmesura e da singularidade do mundo amazônico, o diário imagético também se instala nessa dimensão. No texto, muito do que, ao viajante, parece inusitado, insólito, ali se reveste da dimensão ficcional, marcada pelo estranhamento que se vale do corriqueiro e apela para o “nonsense”, para o disparate, como no fragmento que imita a composição escolar ao apresentar o peixe-boi. Ou na longa seqüência intitulada “Perdidos” – quase um conto –, que joga com a escala do tamanho dos excursionistas desorientados na imensidão da floresta e que se aproxima, na fotografia, ao bem humorado autorretrato à Lilliput, no qual o Turista Aprendiz, muito chique, posa, diminuto, diante do tronco da sumaúma gigante. A ficção implícita se repete na pose de Dolur, no mesmo lugar, frágil e miúda, também vestida com elegância. Na verdade, seqüência narrativa e as fotos nos permitem imaginar a força da imagem no âmbito da criação do texto. Refiro-me ao estreito relacionamento do texto com a imagem quando da escritura que, em São Paulo, unificou o diário, debruçando-se sobre as notas tomadas in loco, sobre as legendas e as reproduções fotográficas.

Outra vertente da mescla de fotos e legendas é aquela que retém, com engenho e arte, a função documental da fotografia ao reproduzir aspectos da geografia física da região, do homem e da cultura material. Deste modo, a paisagem – a terra, os rios, a vegetação –, a população de brancos, mestiços e indígenas, homens, mulheres, curumins, os meios de transporte, o trabalho, usos e costumes são fixados. A profusão de imagens, dentre as quais particularizo o vaqueiro de Marajó, as caiçaras, isto é, os cercados que protegem os bois da voracidade das piranhas, o mogno cortado e numerado deslizando na corrente, os sacos de sernambi, a pesca de tarrafa, a casa sobre palafitas, a casa de alvenaria telada, a maloca e os índios pintados com jenipapo, o hotel de janelas góticas, as ruínas da igreja de Porto Velho – para selecionar algumas –, recebe, nas legendas, além da identificação e do relatório técnico, o comentário cheio de humor, incluindo por vezes rimas, trocadilhos e a citação de versos de grandes poetas.

Figura 21 – “Jangadas de mogno enconstando no S. Salvador pra embarcar/Nanay 23- Junho 1927/ Peru/ Vitrolas futuras” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Jangadas de mogno enconstando no S. Salvador pra embarcar/Nanay 23- Junho 1927/ Peru/ Vitrolas futuras” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

A falta de recursos técnicos da Codaque impossibilitou, seguramente, a fotografia noturna. As dificuldades dessa ordem e o desejo de aumentar a documentação iconográfica fundamentam, ao que me parece, o lote de 24 imagens complementares da viagem de 1927, na série Fotografias. Retrata indivíduos e aspectos da cultura de povos indígenas, uma caçada de jacaré e a praça principal de Iquitos. Com legendas impressas, sete são cartões-postais verdadeiros, da lavra de um profissional. Da máquina de um amador, dezessete, tendo no verso informações sumárias em autógrafo ou datilografadas, ou sem legenda, são poses de índios ampliadas como cartões-postais.

Nas vertentes da fotografia andradiana, é preciso destacar especialmente a experimentação artística modernista, a qual se concentra, por exemplo, na geometria nos mastros dos veleiros em Areia Branca, Mossoró, na rota do regresso, em 6 de agosto, repetindo, de certo modo, os barcos de pesca de Galloway no golfo de Corinto, da Querschnitt de fevereiro daquele ano de 1927. Recorte semelhante, em 1942, afirmaria o grande Nikvist, em O porto, de Bergman, na bela cena em a aglomeração dos mastros preenche a tela.

Figura 27 – “Veleiros encostados no Baependy/ Areia Branca/ 6-VIII-27/ Diaf. 3 – sol 1 das 7 e 40” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Veleiros encostados no Baependy/ Areia Branca/ 6-VIII-27/ Diaf. 3 – sol 1 das 7 e 40” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Quando o fotógrafo pesa a sua experimentação, isto é, analisa a própria arte nas cópias em positivo, dá à legenda, em vários casos, a incumbência de avaliar o resultado. O lápis traça, então, no verso: “Ritmo”, “Equilíbrio”, “Futurismo pingando” ou “Minha obra-prima” (de fato, no flagrante da vitória-régia), e não se esquece de acusar a dupla exposição dos negativos:

“Desvairismo por acaso/ questão de lancha e de lunch/ 7-VI-27”.

“Foto futurista de Mag e Dolur sobrepostas às margens do Amazonas. Junho de 1927. Obsessão.”

O olhar do fotógrafo que persegue a dimensão poética harmoniza-se com os estudos de Mário a respeito do Sequestro da dona ausente, os quais, amparados pela psicanálise, esmiúçam esse tema do lirismo amoroso e da sexualidade no cancioneiro luso-brasileiro. Quando o vento enfuna no varal os lençóis e levanta as roupas brancas, os volumes e o movimento colhidos pela objetiva sugerem corpos e fazem jus à legenda “Roupas freudianas/ Fortaleza, 5-VII-27/ Fotografia refoulenta/ Refoulement/ Sol l diaf. l”. O branco espraia-se pelo areão como a luz intensa do sol que as lentes veem branco, também. Mário possui, sem dúvida, o dom de “compor o ambiente em que a realidade capitula diante da luz e se converte em uma expressão sugestiva e bela”, se recordo as palavras dele sobre a exposição Jorge de Castro, em 1939 [23]. Curiosamente, essa foto do Turista retoma um varal rabiscado em 1923, pelo leitor da revista L’ Esprit Nouveau, na folha de guarda do seu exemplar do nº 10, de outubro de 1921 [24].

Figura 04 - MA-F-0589

“Roupas freudianas/Fortaleza, 5-VII-27/Fotografiarefoulenta/Refoulement/Sol l diaf. l”. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

A Codaque que busca, na paisagem amazônica, espelhos d’água e reflexos, apela também à captação da sombra, o duplo ou uma espécie de alma da imagem, no autorretrato. Do toldo do vaticano, em julho de 1927, Mário de Andrade/Turista Aprendiz, surpreende a própria sombra e o ato de fotografar nas águas do rio Madeira e se/nos pergunta, como no brinquedo do esconde-esconde: “Que-dê o poeta?” E que-dê o fotógrafo? indago. Eles se juntam, por obra e graça do viajante, nas duas artes que ali se valem da sombra projetada, contemplação de Narciso moderna, plena de humor e metáfora da criação. A figura de ponta-cabeça, além de aludir à técnica fotográfica, é o reflexo que, ao duplicar, deforma a imagem e estabelece, na inserção nas águas, uma nova realidade, a da transfiguração na arte. Assim, este autorretrato liga-se intimamente à poesia marioandradiana, fortemente marcada pelo reflexo na água de rios.

Figura 6 – Rio Madeira. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Rio Madeira. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Em 1922, em Paulicéia desvairada, nos versos 11 e 12 de “Tietê”, as braçadas do imigrante italiano e novo bandeirante abarcam a cidade moderna e cosmopolita dos cartazes comerciais, espelhada no rio. Em “Noturno de Belo Horizonte”, escrito em 1924 e publicado em 1927, nas “lagoas polidas de cabeça para baixo” (v. 146), o poeta não avista apenas o tumulto e a calma da paisagem mineira, mas ele mesmo, metaforicamente, conforme a bela análise de Gilda de Mello e Souza [25]. Além disso, o eu lírico pontifica soberano sua condição de paulista, brasileiro e principalmente homem, na “Meditação sobre o Tietê”, último poema da vida, em 1945. No rio, o eu lírico, incorporado ao caudal, “lágrima” e “alga”, revisita, na cidade refletida, os temas e todos os caminhos do poeta. Pode-se presumir que, nesse autorretrato de 1927, estejam as sementes de versos capitais para a definição do vate brasileiro, superada a contingência modernista. Estes versos: “Oh espelhos, ô Pirineus! Ô caiçaras!” (1929), em “Eu sou trezentos…”, e “‘Eu sou aquele que veio do imenso rio’.” (1937), em “Brasão” [26]. Não é hora, porém, de analisar essa reverberação.

Depois da grande viagem, novamente no seu meio modernista, em 1º de janeiro de 1928, na fazenda de Tarsila do Amaral, no interior paulista, a objetiva funde Mário de Andrade ao solo, entregue a este seu artefazer. No contorno de um gigante que merece o título camoniano “Sombra minha”, o gesto desvela a máquina-caixão. Renovadíssima forma do autorretrato, será, no decênio de 1940, um dos trunfos de Ansel Adams, depois aplaudido em Friedlander. Para mim, essa foto preside a produção de Mário fotógrafo.

Figura 7 – Auto-retrato, 1927. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Auto-retrato, 1927. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Da sua criação do fotógrafo, que tanto enriquece o nosso modernismo, Mário de Andrade, pelo que até hoje eu sei, divulgou apenas quatro imagens, todas 1929, da viagem ao Nordeste. Em agosto desse mesmo ano, três estão a revista carioca Para Todos… São: “Lírios roxos/ Bom Jardim” e “Chico Antônio”, emparelhadas à matéria “Rio Grande do Norte. Fotografias e palavras de Mário de Andrade” e o retrato do pintor Cícero Dias, ilustrando crônica homônima [27]. Dez anos depois, Catolé do Rocha, clicada pelo Turista enseja a crônica com o mesmo nome da cidadezinha paraibana, no Suplemento em Rotogravura do jornal O Estado de S. Paulo. No texto, uma espécie de movimento de câmera cinematográfica decodifica, para o leitor, as cores plasmadas na fotografia:

“Era um domingo e na igrejinha branca, admirável pela harmonia da sua fachada sem torres, a procissão entrava. O céu estava negro de nuvens que não se resolviam a chover sobre a terra, e apenas do lado do poente, uma nesga de céu limpo deixava uns últimos raios do sol focalizarem, para efeitos da fotografia que encima estas evocações, a igreja e as casas da sua direita, no imenso largo vazio. No alto do morro, uma capelinha votiva também gritava muito espevitadamente o seu branco sem poeira, como um defeito de película fotográfica. E as casas coloridas, encarnadas, azuis, verde, limão, brincavam, numa esperança de alegria, com o ambiente feroz” [28].

Figura 8 – Catolé do Rocha, 1929. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Catolé do Rocha, 1929. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Em 1929, ao se encerrar o primeiro tempo modernista dos grupos, dos programas e das polêmicas, o empenho do fotógrafo arrefece até cessar em 1932, sem explicações. Mais tarde, como Diretor do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo ou como delegado do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Mário de Andrade incentivará a fotografia ao contratar dois excelentes profissionais, Benedito Duarte e Germano Graeser. Como cronista e crítico no suplemento Rotogravura, em 1939 focalizará as fotomontagens do poeta Jorge de Lima [29] e, em 1940, a exposição de Jorge de Castro. Escreve então:

“[…] aquilo em que a fotografia artística se eleva sobre a puramente documental, reside não na máquina ou na luz, como imaginam confusionistamente os manipuladores de truques fotográficos ou os fotografadores de eternos crepúsculos românticos, mas na criação humana do artista. Enfim, há que ter esse dom especial de apanhar ‘a poesia do real’, como disse muito bem o desenhista Santa Rosa, justamente a propósito das fotografias do sr. Jorge de Castro.” [30]

 

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*Este texto, sob o título “O Turista Aprendiz na Amazônia: a invenção no texto e na imagem”, foi publicado nos Anais do Museu Paulista: História e cultura material, v. 13, nº 2. São Paulo, julho/ dezembro 2005. Revisto pela autora para a Revista Carbono em 2014. A ampliação da análise da escritura do diário do viajante decorre de estudos empreendidos por Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo, para a nova edição de O Turista Aprendiz, prevista para 2015; projeto IPHAN e IEB-USP.

[1] GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de, org. Itinerários: Mário de Andrade/ Manuel Bandeira: Cartas a Alphonsus de Guimaraens Filho. São Paulo, Duas Cidades, 1974. À p. 29, a nota 27 do organizador transcreve carta do pai, de 15 de julho de 1919, relatando as intenções da viagem de seu visitante.

[2] A crônica vem no nº 123 do ano 6 de A Cigarra. São Paulo, 1º de novembro, 1919.

[3] V. a edição anotada de Claudete Kronbauer de ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. São Paulo, IEB/ Experimento/ Giordano, 1993, que recupera a série na Revista do Brasil, nºs 49,50,52,54; São Paulo/ Rio de Janeiro, jan., fev., abr., jun. 1920. A série divide-se em “O Triumpho Eucharistico de 1733. Conferência realizada na Congregação da I. C. de Sta. Ephigenia” (nº 49, p. 5-12); “Arte christã” (nº 50, p. 95-103); [Rio de Janeiro] (nº 52, p. 289-293); “Em Minas Geraes” (nº 54, p. 102-111).

[4] Os recortes formam a série Matéria extraída de periódicos, no Arquivo Mário de Andrade.

[5] No momento em que revejo este meu artigo de 2006, estampado na Revista do Museu Paulista, para republicá-lo na Carbono, devo destacar o estudo “Mário de Andrade leitor e crítico de cinema” com que Paulo José da Silva Cunha prefacia No cinema, coletânea de textos de Mário de Andrade, por ele organizada (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010).

[6] Charlot de L. Delluc (1921) ou a análise de Céline Arnaut em L’Action (1922) respaldam os comentários que Mário leva para Klaxon: mensário de arte moderna, nº 3, 5, como J. M. em “Uma lição de Carlito”, e M. de A. em “Ainda O garoto”, em 15 de julho e 15 de setembro, 1922.

[7] Texto assinado como R. de M. em Klaxon, nº 2. São Paulo, 15 de junho, 1922.

[8] V. ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. Texto apurado por Marlene Gomes Mendes. Rio de Janeiro, Agir, 2007.

[9] EULÁLIO, Alexandre. A aventura brasileira de Blaise Cendrars. São Paulo, Quiron, 1978.

[10] O poema, escrito em 1924, foi publicado em Clã do jabuti, livro de 1927. Seis são os desenhos traçados na viagem em folhas milimetradas de caderninho de bolso (V. Coleção de artes de Mário de Andrade, IEB-USP); a VIII das “Crônicas de Malazarte” focaliza a excursão na América Brasileira. Rio de Janeiro, maio 1924.

[11] Registro dos hóspedes no Hotel Macedo de São João Del Rei, em l6 de abril, 1924 (V. EULÁLIO, Alexandre. Op. cit., p. 277).

[12] O ano de 1926 pode ser considerado o momento da aquisição de quatro volumes da obra de Koch-Grünberg Vom Roroima zum Orinoco e da leitura, bem como do início criação de Macunaíma, nas margens do segundo volume Myten und Legenden der Taulipang und Arekuná Indianer. É possível que tenha, então, comprado a obra completa em cinco volumes, da qual o quarto desapareceu, ou reunido, como conseguiu, os volumes que continuaram em suas estantes: v. I, edição de Berlim, Dietrich Reimer, 1917; v. II, Stuttgart, Strecker und Schröder, 1924; v. III e V, tirados por esta última editora, ambos em 1923.

[13] MORAES, Marcos Antonio de, org. Camara Cascudo e Mário de Andrade – Cartas, 1924-1944. São Paulo: Global, 2010.

[14] V. MORAES, Marcos Antonio de, org. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/ Instituto de Estudos Brasileiros, 2000, p. 376.

[15] ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. Estabelecimento do texto, introdução e notas de Telê Ancona Lopez. São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976 Porto Ancona Lopez. São Paulo, Duas Cidades/ Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, p. 64.

[16] SPIX, Johann Baptist von e MARTIUS, Karl Friedrich Philip von. Reise in Brasilien auf Befehl Sr. Majestät Maximiliean Joseph I, Königs von Baiern in den Jahren 1817 bis 1820, 3 v., atlas e 7 mapas. München, M. Lindauer, 1823-1831, obra na biblioteca de Mário de Andrade com notas do lápis dele. Entre os

Manuscritos Mário de Andrade está uma tradução do nascer do dia amazônico na obra de Martius, matriz da alvorada no diário do Turista Aprendiz.

[17] “Desgeograficar” é expressão cunhada por Mário de Andrade quando da apresentação de suas propostas de modernidade e nacionalismo no 2º prefácio para Macunaíma, 1928. V. “Dossiê” na edição da obra preparada por Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo; Rio de Janeiro, Agir, 2007, p. 215.

[18] ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. Ed. cit., p. 60.

[19] COLI, Jorge. Humano, demasiado humano. Ponto de Fuga. Mais! Folha de S. Paulo. São Paulo, 10 abr. 2005.

[20] ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. Ed. cit., p. 60.

[21] Verso 10º, final, do poema “O trovador” de Paulicéia desvairada. São Paulo, ed. do A. na Casa Mayença, 1922. O ensaio da crítica norte-americana Esther Gebara,” ‘Nunca olhei tão olhado em minha vida e está sublime’: o (auto)-retrato de Mário de Andrade”, põe a “Aposta de ridículo” na esfera da sátira. (V. SÜSSSEKIND, Flora e DIAS, Tânia, org. A historiografia literária e as técnicas de escrita: Do manuscrito ao hipertexto. Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa/ Vieira & Lent, 2004, p. 169-190).

[22] ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. Ed. cit., p. 103.

[23] ANDRADE, Mário de. “O homem que se achou”, publicada no nº 150, da 1ª quinzena, jan. 1940. In: Será o Benedito? Crônicas do Suplemento em Rotogravura de O Estado de S. Paulo. Ed. preparada por Cláudio Giordano. São Paulo, EDUC/ Giordano/ Ag. Estado, 1992, p. 80.

[24] Diante da inexistência de datas na L’ Esprit Nouveau, a pesquisa de Lílian Escorel para sua tese de doutoramento, voltada para a leitura de Mário de Andrade dessa revista, logrou estabelecê-las.

[25] V. “O colecionador e a coleção”. In: Batista, Marta Rossetti e Lima, Yone Soares de. Coleção de Artes Plásticas Mário de Andrade. São Paulo, IEB, 1984, p. XIII-XIX.

[26] O primeiro verso está no livro Remate de Males, edição no autor de 1930, que sai em São Paulo, onde a Livraria Martins Editora imprime, em 1941, Poesias, que inclui “A costela do Grã Cão”.

[27] Paratodos…, a. 11, n° 555, 557; Rio de Janeiro, 3, 17 de agosto, 1929, p. 35, 12.

[28] IDEM. “Catolé do Rocha”, publicada na 1ª quinzena, maio 1939. In: Será o Benedito? Crônicas do Suplemento em Rotogravura de O Estado de S. Paulo. Ed. cit., p. 38-33.

[29]. IDEM. “Fantasias de um poeta”, publicada no nº 146; 1ª quinzena, nov. 1939. Ibidem, p. 71.

[30] IDEM- “O homem que se achou”. Ibidem, p. 80.

 

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. Estabelecimento do texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo, Duas Cidades/ Secretaria de Cultura, Esportes e Tecnologia, 1976.

______. Poesias completas. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos, por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013

______. Será o Benedito? Crônicas do Suplemento em Rotogravura de O Estado de S. Paulo. Ed. preparada por Cláudio Giordano. São Paulo, EDUC/ Giordano/ Agência Estado, 1992.

______. De São Paulo. Ed. anotada de Telê Ancona Lopez. São Paulo, SENAC/ SESC, 2004.

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GIRARD, Pierre. Le journal intime. Paris, PUF, 1963.

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 KLAXON: MENSÁRIO DE ARTE, nº 3, 5. São Paulo, 15 jul., 15 set. 1922.

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________. “As viagens e o fotógrafo”. In: GREGÓRIO, Sérgio, LOPEZ, Telê Ancona, MINDLIN, Diana, PAULINO, Ana Maria E RACY, Washington. Mário de Andrade fotógrafo e Turista Aprendiz. São Paulo, IEB/ VITAE/ Safra, p. 109-119.

MORAES, J. M. Leite de Almeida – Apontamentos de viagem de São Paulo á capital de Goyaz, desta á do Pará, pelos rios Araguaya e Tocantins e do Pará á Corte: Considerações Administrativas e Políticas. São Paulo, ed. do autor, 1883.

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________. Camara Cascudo e Mário de Andrade – Cartas, 1924-1944. São Paulo: Global, 2010.

 

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TELÊ ANCONA LOPEZ é escritora e pesquisadora. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, estuda especialmente o modernismo brasileiro, as vanguardas europeias, os gêneros de fronteira, a crítica textual e a crítica genética. Foi curadora do Arquivo Mário de Andrade no IEB-USP, onde permanece como colaboradora sênior.

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