03 | Dossiê

A+ A-

Memórias da Terra

Memórias da Terra

 

Ismar de Souza Carvalho

 

 

Ao longo da história de nossas vidas moldamo-nos por sucessivos eventos que constroem a memória de quem somos. Os bons e maus momentos. Aquilo que ouvimos, observamos e aprendemos, ou até mesmo os objetos que guardamos, nos ajudam a recuperar as informações que nos dão identidade.

Nosso tempo de vida é breve. Quando muito, chegamos a algumas dezenas de anos. Irrelevante, quando comparado com a possibilidade de permanência por bilhões e bilhões de anos. Mas o que poderia resistir tanto? Que memórias seriam geradas e guardadas através do tempo profundo, o qual transcende em muito o de nossa existência?

Há quatro bilhões e quinhentos e quarenta milhões de anos surgia a Terra. Uma história inicial conturbada e bastante confusa. Impactos de planetesimais, asteróides, meteoros e cometas, moldavam-lhe o caráter inicial: instável, inconstante e sem um futuro previsível. Semelhantemente aos eventos desagradáveis e já longínquos de nossas vidas, as memórias mais antigas da Terra estão quase que desaparecidas, sobrepostas por outras histórias e cujo registro pode ser resgatado através dos minerais, das rochas e dos fósseis.

Se voltássemos aos momentos iniciais de formação da Terra, o inferno. Como em Hades, a Terra, juntamente com o próprio sistema solar estava em formação. O tempo Hadeano marca este momento em que não existia a Terra sólida e as rochas encontravam-se em estado de fusão. Apesar da idade estimada de nosso planeta ser de mais de 4,5 bilhões de anos, os registros mais antigos de minerais – os zircões – datam de 100 milhões de anos mais tarde. Que imensidão temporal e também de eventos catastróficos e de profundas transformações! A Terra, em total efusão, marcada por vulcanismo extremo e colisões planetárias capazes de arrancar parte de sua massa dando-nos uma Lua, progressivamente se esfriava, originando uma crosta sólida e os primórdios de uma atmosfera. O resfriamento da superfície, a condensação do vapor d’água e a água transportada por cometas criavam nossos primeiros oceanos.

A partir de então, a jovem crosta terrestre movimentava-se de forma frenética. As placas tectônicas, em contínuo e rápido deslocamento, criavam e destruíam continentes e oceanos, reciclando o material que compunha as rochas mais superficiais e produzindo uma ampla diferenciação dos tipos rochosos. Num intervalo entre 3,8 e 2,5 bilhões de anos, os primeiros protocontinentes suturavam-se e amalgamavam-se com oceanos profundos, definindo assim a história subsequente da porção mais superficial do planeta. Porém, o registro de memórias tão antigas são esparsos e geralmente confusos, num labirinto de histórias que se superpõem.

Os tempos que se sucederam deixaram-nos informações mais facilmente reconhecíveis, mas que tampouco demonstram histórias sem convulsões. Há 2,5 bilhões de anos a atmosfera terrestre, até então formada essencialmente por gases como o metano, o dióxido de carbono, o nitrogênio e o vapor d’água, se modificaria radicalmente  pela ação de organismos microscópios viventes nos mares primitivos – as cianobactérias. Através de sua atividade fotossintética produziriam um gás, que gradativamente se tornaria mais e mais comum: o oxigênio. Tinha início assim, uma nova trajetória planetária, profundamente afetada pela paulatina proliferação e diversificação dos seres vivos.

A vida, desde seus mais antigos registros, os quais remontam 3,8 bilhões de anos, tornou-se há 545 milhões de anos uma memória indelével para os novos tempos. Faneros, aquilo que é visível. O tempo fanerozoico é o pulular da vida. Emergem inúmeros filos animais, em que através da evolução, a diversidade e as múltiplas possibilidades de formas e funções, proliferam no transcorrer do tempo. É também o momento do surgimento e desenvolvimento de vários grupos de vegetais, que em relações complexas e intrincadas, ocupam os mares e as terras. Porém, não imaginem que as forças internas do planeta mantinham-se adormecidas. Continentes colidiam, mares se abriam e o mundo antigo dava lugar ao novo mundo, num contínuo de novas possibilidades.

Mas como entender o tempo geológico? Trata-se inegavelmente de uma dimensão que em muito transcende as possibilidades da existência humana. Uma escala temporal em que tudo é possível. Montanhas transformam-se em fundo de mares. Desertos em florestas. Climas glaciais podem se alternar com climas tórridos. E finalmente, os mares podem novamente se transformar em montanhas. É no decorrer do tempo geológico que a vida se transforma, por vezes se extingue, ou então origina novas formas de vida. Assim o novo é sempre um produto do pretérito. Nada existe por existir. O presente é sempre o somatório dos eventos ocorridos no tempo passado.

O caráter complexo deste tempo, o qual é inatingível pela simples percepção do presente, sempre foi motivo para reflexões mais profundas acerca da própria existência. A origem de tudo compreendida como um ato divino mostrou-se a partir do século XVIII incompatível com a observação dos eventos da natureza. Uma natureza mutável, porém, por vezes cíclica e previsível. A percepção religiosa de uma Terra impossibilitada de estar sujeita ao novo, e com memórias restritas aos seis dias da Criação, mostrou-se assim fugaz e incapaz de satisfazer nossos anseios de reflexão e abstração.

O reviver das memórias mais antigas de nosso planeta tornou-se então possível através da leitura dos materiais geológicos que encontramos disponíveis em sua superfície e no seu interior. Todo o substrato material que suporta a vida teria assim uma longa história de fatos, por vezes relevantes, e que deixam um registro marcado nas rochas. As rochas, com seu conteúdo em minerais e fósseis, preservam o tempo, tal qual cápsulas que guardam pedaços da história da Terra.

– “Decifra-me ou devoro-te” – um oráculo para toda pedra ao ser observada através de nossa curiosidade.

O decifrar deste significado é certamente o princípio para se desvendar os eventos que assolaram nosso planeta, numa infinidade de memórias que abrangem desde eventos episódicos e catastróficos ao registro contínuo dos dias de calmaria. Para a Terra, os fatos insignificantes têm o mesmo tratamento que lhes damos. Não deixam memórias. Os mais relevantes, de caráter episódico, como as grandes tempestades, inundações, explosões vulcânicas, tsunamis e a mortandade em massa possibilitam um registro pontuado por uma ampla variedade de rochas e fósseis. Tal qual nossa memória episódica, capaz de registrar acontecimentos específicos e que nos marcam por toda a vida.

Com o desenvolvimento das modernas técnicas de datação radiométrica, mais que o registro da sucessão de eventos, tornou-se possível a quantificação do tempo. Uma expressão temporal antes inimaginável, mas que agora nos conduz ao conhecimento da sucessão dos fatos que compõem as memórias de nosso planeta, e também ao momento em que os mesmos ocorreram. Um novo paradigma, em que o entendimento daquilo que observamos numa escala megascópica, demanda uma compreensão da natureza atômica dos isótopos radioativos.

O entendimento da história da Terra não é fácil. Como bem retratado por Dali em sua obra “La Persistencia de la Memoria”, os relógios não são mais os instrumentos de precisão para o registro do tempo, pois são baseados na fugidia temporalidade humana. Como num último ato do poder de Cronos, balizado por fatos relevantes e insignificantes, superficiais e profundos, surge o homem, marco temporal infinitesimal, o qual não ultrapassa o último milhão de anos. Porém, de forma semelhante às nossas recordações, as memórias da Terra se transformam e se reconstroem, produzindo de forma contínua, ao longo do tempo, novas expressões para o próprio sentido de tudo aquilo que existe.

 

Buscar nas rochas, o registro das memórias da Terra, é buscar o próprio sentido de nossa existência. Fotografia de Diego Evan Gracioso.

 

***

 

ISMAR DE SOUZA CARVALHO é geólogo e professor do Departamento de Geologia da UFRJ.

 

Todos os direitos reservados.

Baixar o artigo em formato PDF