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Indústria do Conhecimento: Uma Poderosa Engrenagem

Indústria do Conhecimento: Uma Poderosa Engrenagem

Vera Miguelote e Kenneth de Camargo Jr.

Este artigo foi originalmente publicado no volume 44 #1 da Revista Saúde Pública da USP em 2010. Todos os artigos de todas as edições da Revista de Saúde Pública da USP podem ser acessados através deste link.

Configurado como mercadoria, o conhecimento ganhou a perspectiva de impulsionar investimentos da indústria, tanto para o financiamento de projetos de pesquisas quanto para a produção de bens científico-culturais. Por meio de uma dinâmica de publicação que envolve editoras, revistas, artigos, entre outros mecanismos estratégicos de divulgação de seus produtos, a indústria potencializa interesses econômicos na área biomédica, entrelaçando geração de lucro a prestígio científico.

Em estudo sobre a política econômica da produção  difusão do conhecimento biomédico, Camargo Junior3 (2009) cunhou a expressão indústria do conhecimento para definir a configuração contemporânea dos processos de negociação da produção científica, que envolve a construção do conhecimento médico e a produção de artigos científicos. Tratou o assunto como parte integrante do Complexo Médico Industrial8, apontando distorções no exercício de poder que comprometem o controle das atividades de pesquisa e da disseminação de conhecimento.

Embora a produção científica tenha vários níveis, e represente uma multiplicidade de interesses, a principal instância de validação do conhecimento é a pesquisa empírica. À medida que a produção econômica passou a depender desse valor, legitimar produtos farmacêuticos por meio da pesquisa científica passou a ser questão crucial para a indústria. Conhecimento revestido de cientificidade transformou-se em argumento estratégico de marketing de venda.

Configurando-se em poderosa engrenagem de direcionamento de interesses econômicos, o conjunto das estratégias de marketing da indústria do conhecimento envolve financiamento de pesquisas na área de medicamentos, enviesamento de seus resultados, engendramento de doenças, e incentivo à produção e publicação de artigos científicos.

O objetivo do presente trabalho foi discutir como a indústria farmacêutica, com enorme força econômica, utiliza-se de estratégias de marketing para se articular ao que, metaforicamente, pode-se denominar indústria do conhecimento. Por se caracterizar como um processo de produção controlado por interesses privados, o conjunto de atividades relacionadas à construção, validação e difusão do conhecimento médico fica submetido à interferência da lógica econômica da indústria.

LEGITIMAÇÃO CIENTÍFICA COMO ESTRATÉGIA DE MARKETING

Financiar programas de pesquisa e produzir conhecimento científico – de acordo com seus interesses – passou a ser uma estratégia fundamental de marketing da indústria farmacêutica. Nesse sentido, pode-se dizer que a produção de conhecimento médico sustentada pela pesquisa, assim como a divulgação de seus resultados, transformou-se em mercadoria. Ou seja, pesquisas científicas sobre produtos farmacêuticos alimentam a produção de artigos, a circulação de conhecimento e a venda de medicamentos. É com este mote que parte importante das atividades de pesquisa e da produção e distribuição de conhecimento biomédico está sob controle de interesses comerciais privados.

Na lógica biomédica, a credibilidade da pesquisa na área de medicamentos baseia-se, preferencialmente, no combate a doenças específicas, e está condicionada à exigência de legitimação científica do uso do medicamento. Essa demanda ancora-se na produção de pesquisas que “demonstrem”, de forma “cientificamente” apropriada, a eficácia do novo medicamento na especificidade de sua indicação.

Em função “dessa necessidade” e com a finalidade de alavancar vendas, a indústria desenvolveu, como estratégia, formas variadas de apropriação criativa de resultados de pesquisa. Trata-se da utilização de técnicas de enviesamento de resultados, tais como expansão da base de usuários das novas drogas, ou, até mesmo, criação de novas doenças ou exagero na ameaça de agravos – o que, na literatura de língua inglesa, é denominado disease mongering12.

Em seu estudo sobre o processo de construção de novas doenças ou disfunções, Payer15 (2006) identificou dez táticas de manipulação de pesquisas: 1- atribuir a uma função normal algo de errado a ser tratado; 2- imputar sofrimento onde não existe; 3- definir ampla proporção da população como passível de sofrimento pela doença; 4- definir condição de deficiência ou desequilíbrio; 5- dar a voz a spin doctors, especialistas em comunicação (que interpretam resultados de acordo com os interesses em jogo); 6- particularizar enfoque sobre o tema; 7- exagerar benefícios do tratamento a partir de dados estatísticos seletivos; 8- pontuar de forma distorcida o objetivo; 9- promover tecnologias tratando-as como “magicamente” livres de riscos; 10- transformar um sintoma, sem maior significado, em sinal de doença séria.Considerando que a dualidade normal-patológico é estruturante no pensamento biomédico4-6, a estratégia consiste na busca de um desvio do normal, cuja demarcação pode dar sustentação a uma demanda por terapêutica medicamentosa. Em função de inevitáveis componentes socioculturais, existe uma plasticidade na definição de “normalidade” – e, portanto, também de doença – que permite a transformação de fenômenos fisiológicos em “desvios”; ou seja, ao serem caracterizados como patologias, precisam ser tratados.

Tendo como referência a dimensão construtivista da produção técnico-científica, Hess10 (1995) defendeu, em seus estudos sobre classe, gênero, sexo, raça e etnicidade, a possibilidade de certos aspectos culturais serem re-significados pela ciência e implantados socialmente. Para designar esse mecanismo, o autor usou a metáfora do totemismo (tecnototemismo); e, para explicar a surpreendente facilidade com que a sociedade assimila novos conhecimentos e novas tecnologias, usou a expressão strategies of circumvention (estratégias de “contorno”).

Significa que, para a indústria farmacêutica introduzir determinada substância no mercado, precisa associá-la ao conhecimento. É a caracterização do produto como evidência científica que direciona a venda. O mecanismo é o descrito acima: em primeiro lugar, o foco de interesse está em encontrar, a partir de uma concepção biológica, uma descrição consensual de um estado de natureza; em segundo, definir um desvio deste estado, para caracterizar como anormalidade; e, em terceiro, investir em pesquisas voltadas à correção dessa pressuposta anormalidade.

Exemplo desse processo em nossa sociedade foi descrito por Lexchin11 (2006), que relata como a Pfizer transformou a ação do Viagra® (sildenafil) – tratamento, considerado eficaz e seguro, da disfunção erétil secundária a causas médicas (diabetes, doenças da coluna, entre outros) – em prescrição direcionada a homens saudáveis, com o objetivo de melhorar o desempenho erétil, capacitando-os a manter a ereção por tempo mais prolongado.

Confinado ao tratamento de causas secundárias, seria um medicamento com sucesso bastante modesto em função do mercado limitado. Assim, a principal motivação da Pfizer em patrocinar pesquisas sobre o Viagra® foi dar sustentação científica ao seu lançamento, impulsionando, com essa estratégia, a sua comercialização. Com a intenção de transformá-lo em produto com grande abrangência de uso na população masculina, o critério de sucesso do tratamento da disfunção erétil precisava ser definido. Assim surgiu a necessidade de expandir a percepção de prevalência da disfunção erétil. A aposta inicial foi direcionada aos homens com idade acima de 40 anos, baseada na suposição de que tinham uma significativa preocupação com a ereção. E, finalmente, o Viagra® passou a ser apresentado como importante opção de tratamento para homens com qualquer grau de disfunção, inclusive falhas raras ou transitórias no desempenho11.

A reificação da ereção como essência da sexualidade masculina abriu caminho para a construção do conceito de disfunção sexual masculina. Em outras palavras, foram capturados dados da sexualidade masculina e postos a serviço da suposta condição ideal (ou normal). Em nome da saúde, a partir de achados do cotidiano, um poderoso mecanismo de intervenção da vida cria formas padronizadas de comportamento.

A dimensão desse processo de medicalização é de tal ordem que a produção de medicamentos na área da sexualidade não está direcionada à doença, mas ao aumento da potência. Desde o lançamento do Viagra® em 1998, mais de 17 milhões de prescrições foram feitas para o tratamento de disfunção erétil. Em 2001, a Pfizer declarou faturamento de 1 bilhão e meio de dólares13.

Na tentativa de reproduzir na sexualidade feminina o sucesso alcançado com o lançamento do Viagra®, a indústria farmacêutica está investindo numa linha de pesquisa que busca uma nova “realidade”: a disfunção sexual feminina. Moynihan13 (2003) considera que o objetivo é de criar necessidades e abrir mercado para outros medicamentos. Moynihan13 critica o patrocínio dessas pesquisas e cita como exemplo a publicação de um artigo pela JAMA em fevereiro de 1999, no qual seus autores (vinculados à Pfizer) anunciam como resultado de pesquisa a prevalência de 43% de disfunção sexual em mulheres com idades entre 18 e 59 anos. Após seis meses de circulação do assunto na mídia, a Pfizer anunciou que um novo medicamento estava sendo testado para tratamento de desordens da sexualidade feminina.

Segundo o autor13, a análise dos dados dessa pesquisa mostrou sérios problemas. Cerca de 1.500 mulheres foram questionadas, devendo responder com sim ou não se tinham experimentado algum problema de uma lista de sete, nos últimos meses do ano anterior. A lista incluía critérios de avaliação da sexualidade, tais como falta de desejo sexual, ansiedade sobre a performance sexual e dificuldades com lubrificação. Se a mulher respondia sim a uma das sete questões, era incluída no grupo caracterizado como disfunção sexual.

Como estratégias de marketing, esses “dados científicos” foram amplamente divulgados pela mídia, com a seguinte afirmação: “43% das mulheres têm disfunção de uma forma ou de outra, mas nem todas têm a forma mais severa”. Trata-se de um processo que busca a “conscientização pública do problema”, ou seja, a aceitação da disfunção sexual feminina como uma doença comum e tratável13.

Apontando controvérsias relativas a normatização de respostas sexuais fisiológicas femininas e ao processo de medicalização da sexualidade, Moynihan13 (2003) defende a importância de acompanhamento mais rigoroso desses processos de pesquisa. Para ele, categorizar dificuldade sexual como disfunção tem a finalidade de induzir os médicos a prescreverem medicamentos que “corrijam” (dis)funções sexuais.

A despeito da imprecisão conceitual, a abordagem crítica sobre a exploração estratégica da fronteira entre normal e patológico pela indústria, pode ser marcadamente elucidada pelo argumento de Canguilhem6 (2006): “Se o normal não tem a rigidez de um fato coercitivo coletivo, e sim a flexibilidade de uma norma que se transforma em sua relação com condições individuais, é claro que o limite entre o normal e o patológico é impreciso. No entanto, isso não nos leva à continuidade de um normal e um patológico idênticos em essência […], a uma relatividade da saúde e da doença bastante confusa para que se ignore onde termina a saúde e onde começa a doença.”(p. 135)

PESQUISA E PUBLICAÇÃO: ESTRATÉGIAS NA PROMOÇÃO DE MEDICAMENTOS

Caracterizando uma poderosa engrenagem que articula a indústria farmacêutica à indústria do conhecimento, uma estreita relação entre pesquisa e produção de evidências científicas alimenta a produção de artigos, difusão de conhecimento e venda de medicamentos. Com interesse concentrado na publicação e propagação de conhecimento médico, a indústria farmacêutica – sem priorizar a qualidade – investe na quantidade de publicação. Assim, produção de conhecimento médico tornou-se uma linha de produção sustentada pela pesquisa.

A necessidade de dar credibilidade a resultados de interesse econômico impulsionou o investimento da indústria farmacêutica em pseudo-pesquisas. Apesar da aparência de pesquisa verdadeira, seu objetivo não é a produção de novos conhecimentos. Essas pesquisas são, na verdade, estratégicas de marketing, com metodologia deliberadamente enviesada para fortalecer a posição comercial de determinado medicamento, com resultados que “comprovam” o que está sendo dito pelos propagandistas1.

Além disso, embora uma avaliação mais atenta revele que a maioria das chamadas inovações farmacológicas deriva, na verdade, de pequenas modificações em produtos já existentes ou simplesmente de renovação de patente, ao anunciar uma série de novos medicamentos, baseada em publicação científica, a indústria farmacêutica reforça a falsa ideia de frequentes mudanças no conhecimento médico.

Aqui, cabe citar como exemplo o caso da gabapentina (Neurotin®): um medicamento aprovado pela Food and Drug Administration, dos Estados Unidos, em 1994, para tratar apenas crises epiléticas não controladas por outras drogas. Visando expandir o mercado, a Parke-Davis engendrou um plano chamado “estratégia de publicações” para fazer com que os médicos prescrevessem o Neurotin® com outras indicações terapêuticas. O governo americano levou a empresa aos tribunais por essa violação. Em 2004, a Pfizer (que incorporou a Parke-Davis em 2000) admitiu sua responsabilidade na violação da regulação federal na promoção da gabapentina, encerrando o processo por meio de um acordo com o governo. Posteriormente, com base na legislação americana que prevê a liberação de documentos sob a guarda do governo (Freedom of Information Act), um grupo de pesquisadores obteve acesso à documentação da empresa submetida à corte de justiça1.

Após analisar esses documentos, Steinman et al16 (2006) identificou como alvo dos interesses do marketing do laboratório a seleção de três grupos específicos de médicos, a saber: 1- médicos selecionados em função da relação dólar/prescrição; 2- médicos com poder de influência (expositores de programas); 3-  líderes, identificados pela atuação nas associações médicas locais.

Além disso, com o objetivo de passar a ideia de envolvimento com a prática médica, a Parke-Davis alocou orçamento específico em “programas para residentes”: métodos educativos; pagamento a médicos conferencistas; criação de conselhos consultivos; promoção de encontros de consultores; além de estratégias de pesquisa e publicação. A análise da documentação interna mostrou a enorme extensão das atividades de marketing do laboratório, para muito além da propaganda aberta, apontada por eles como a ponta do iceberg. A maior parte das atividades (e dos recursos) ocorre como propaganda dissimulada, incluindo-se aí todas as estratégias descritas acima16.

Embora os artigos e publicações especializadas se baseiem nas provas produzidas no decorrer das pesquisas, os relatórios dos resultados das pesquisas são manipulados de acordo com os interesses comerciais da indústria e apresentados aos médicos sob a égide da credibilidade científica. Trata-se de estratégias de marketing direcionadas aos médicos prescritores, que, para se manterem atualizados precisam acompanhar a divulgação das mais recentes evidências científicas. Uma vez que a intervenção médica é direcionada por esse conhecimento, é fundamental que tais relatórios sejam isentos.

No entanto, conforme aponta Angell1 (2007), já existem estudos mostrando a propensão de pesquisadores patrocinados pela indústria a favorecerem os produtos da empresa. Para a autora, o caráter tendencioso dos ensaios encontra-se na simples supressão de resultados negativos, ou quando o pesquisador elogia uma droga, cujos resultados não justificam qualquer entusiasmo. Essa tendenciosidade pode também estar embutida no projeto de pesquisa, como é o caso de ensaios clínicos controlados por placebo (pílula inerte). Isso significa que o medicamento está sendo comparado com coisa nenhuma e que, se comparado com outros existentes no mercado, podem, na verdade, se revelar menos eficazes do que quando comparados com placebos. Existem ensaios, para estudar drogas direcionadas ao tratamento de pessoas mais velhas, cujos testes são feitos em pessoas jovens. Em outros casos, a comparação da nova droga é feita com um medicamento antigo, ministrado em dose excessivamente baixa.

Pode-se dizer que, na medida em que a ideologia científica é projetada como produtora de verdades absolutas, a ciência confere ao conhecimento a categoria de mito. Ressonância disso é a suscetibilidade dos médicos a assimilarem a suas práticas prescritivas, sem avaliação crítica, os medicamentos revestidos de “caráter científico”, apresentados pelos propagandistas (representantes comerciais da indústria farmacêutica)2.

Camargo Junior2 (2003) defende que é nesse contexto de ideias preestabelecidas, no qual os médicos se abstraem da análise crítica dos resultados de pesquisas, que a indústria farmacêutica surge como financiadora de pesquisas e apropria-se da possibilidade de direcionar interesses na área biomédica. Ao incentivar a produtividade de conhecimento, a indústria joga com a ideia de irremediável progresso tecnológico. Dessa forma, justifica o enorme volume de publicações, produzindo no médico – cujo reconhecimento depende de se manter atualizado – a inquietante sensação de estar permanentemente aquém desta possibilidade.

Segundo Angell1 (2007), empresas de educação médica são contratadas para elaborar os artigos, além de conseguir “autores” para assiná-los. Uma delas, por exemplo, recebeu US$12.000 para cada um dos 12 artigos jornalísticos que preparou; e pagou aos “autores” acadêmicos US$1.000 por assinatura. Num dos relatórios enviados à Parke-Davis, consta um anúncio em que a empresa demonstra dificuldade para terceirizar autoria: “Autor interessado, ainda brincando de esconde-esconde por telefone”. E depois, em letras maiúsculas: “[NOSSA FIRMA] TEM O TEXTO PRONTO, SÓ PRECISAMOS DE AUTOR” (p. 174). Na mesma linha de abordagem, Guimarães9 (2007) argumenta que, na maioria dos ensaios clínicos patrocinados pela indústria para testar novas drogas ou procedimentos, os protocolos são elaborados pelo patrocinador e os dados coletados são integralmente enviados, em estado bruto, para serem analisados por ele. Isso significa que, embora a participação dos médicos nas pesquisas se limite à inclusão de pacientes e à execução dos procedimentos previstos em protocolo padronizado, são eles os autores dos artigos publicados.

Em se tratando da qualificação de artigos publicados, a situação complica-se ainda mais. Talvez seja esse o sentido do questionamento feito por Novaes14 (2007) quanto à utilização de métodos de avaliação baseados no número de citações de um artigo como indicador de impacto da pesquisa publicada, assim como de seu potencial para criação de novos conhecimentos. Em seu argumento, Novaes14 apresenta resultados de estudos exploratórios na área da pesquisa em saúde, mostrando que, nos artigos analisados, “apenas em um pequeno número de artigos o trabalho citado foi considerado relevante”, o que significa que o número de citações não está diretamente associado à importância da produção do novo conhecimento.

Ao analisar dois artigos publicados nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, sobre a consolidação da presença brasileira na base de dados ISI Thomson-Reuters, Guimarães9(2007) também critica o método de seleção dos artigos: primeiro, porque o mérito e/ou relevância das contribuições científicas são remetidos a uma categoria chamada “impacto”; segundo, porque esse “impacto” é indicado pelo número de vezes que o artigo é citado em periódicos indexados.

Por se tratar de dados quantitativos, a análise desse “impacto” pode ser fortemente influenciada pelo modo como a pesquisa foi organizada, como é o caso dos estudos multicêntricos, onde é possível observar: 1- grandes redes de pesquisadores com potencial para a captação de pacientes que se submetam a protocolos padronizados; 2- remuneração dos pesquisadores por paciente captado; 3- precária garantia dos padrões éticos de pesquisa. Assim sendo, é provável que a participação de autores nacionais nos artigos selecionados pela base de dados ISI tenha sido irrisória. No entanto, receberam o crédito formal pela autoria, reconhecida pelas instâncias de avaliação da produção de pesquisa no País (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –CAPES, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, e fundações estaduais de apoio à pesquisa)[29].

Ao abordar o tema das questões éticas na pesquisa científica, Castiel et al5 (2007) concordam que “pode haver vários tipos de má conduta e fraudes no meio científico, como o gerenciamento dos protocolos, amostragens e dos dados em geral”, além de “um crescente aumento de autores por artigo, significando mais do que o suposto aumento dos integrantes dos grupos de pesquisa, mas sim a possível prática de “escambo autoral”.

A despeito de tudo isso, em relação ao Brasil, Guimarães9 (2007) defende que não se deve desestimular ou conter o financiamento de ensaios clínicos pela indústria ou por outras instituições externas, desde que nos processos de pesquisas sejam garantidos padrões éticos e práticas republicanas de remuneração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abordagem da indústria do conhecimento na perspectiva de uma poderosa engrenagem conduzida por estratégias de marketing pretendeu contribuir na compreensão dos mecanismos de interferência do poder econômico dominante, representado pela indústria farmacêutica, no processo de produção, divulgação e aplicação de conhecimento médico.

Uma vez que o interesse em financiar pesquisas, interferir em seus resultados e publicá-los está relacionado a estratégias de marketing da indústria farmacêutica, os recursos destinados a pesquisas acabam sendo direcionados aos ensaios que dão resultados satisfatórios, ou seja, que divulguem o laboratório e aumentem o lucro.

Apesar dos esforços em manter velados os reais interesses em jogo, o direcionamento enviesado de recursos revela importantes contradições, ou seja, embora o discurso da indústria anuncie colaboração na produção de conhecimento médico, essa colaboração não está comprometida com a saúde pública.

Trata-se, portanto, de uma engrenagem que ameaça importantes aspectos éticos: transforma o processo de legitimação científica em estratégia de marketing, compromete a credibilidade do processo de construção do conhecimento médico e incentiva distorções nos critérios de avaliação de qualidade dos artigos científicos.

Dizer que interesses comerciais não devem influenciar nas decisões médicas é uma concepção consensual. Mediante a ineficácia dos esforços para manejar conflitos de interesses e abusos de poder, novas estratégias precisam ser implementadas: não descuidar de uma regulação rigorosa; fazer uma estrita separação entre atividades comerciais e científicas; além de uma profunda reavaliação da interação entre profissionais médicos, organizações profissionais e indústria. No Brasil, a possibilidade dessa interação em novas bases pode ser constatada no mecanismo de reformulação periódica do consenso da terapia antiretroviral (TARV). Em 1996, a Coordenação Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde (MS), assessorada por especialistas, formulou o primeiro consenso da TARV. A partir de então, periodicamente, o comitê atualiza as recomendações de acordo com as evidências científicas mais recentes.

Esse processo é um exemplo da apropriação pública de conhecimento científico, mais próximo das demandas de saúde da população e menos sujeito às interferências de interesses comerciais.

Concluindo, não se trata de negar a importância dos estudos que avaliam eficácia e efetividade dos medicamentos, essas investigações são fundamentais. Em sua prática clínica, os médicos dependem de informações sobre efeito e segurança das substâncias para se orientarem em suas prescrições. O desafio está em garantir que interesses econômicos não se contraponham a aspectos éticos e metodológicos imprescindíveis no processo de produção do conhecimento, para que se obtenha resultados confiáveis e isentos de conflitos de interesses.


1. Angell M. Até que ponto os novos medicamentos são bons? In: Angell M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: como somos enganados e o que podemos fazer a respeito. Rio de Janeiro: Record; 2007. p.123-174.

2. Camargo Jr K. Sobre palheiros, agulhas, doutores e o conhecimento médico: a epistemologia intuitiva dos clínicos. In: Camargo Jr K. Biomedicina, saber & ciência: uma abordagem crítica. São Paulo: Hucitec; 2003. p.183-5.

3. Camargo Jr KR. Public health and the knowledge industry. Rev Saude Publica. 2009;43(6):1078-83.

4. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2006. Exame crítico de alguns conceitos: do normal, da anomalia e da doença, do normal e do experimental; p. 86-99.

5. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2006. Norma e Média; p.129-33.

6. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2006. Doença, cura, saúde; p.135.

7. Castiel LD, Sanz-Valero J, Red MeI-CYTED. Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica? Cad Saude Publica. 2007; 23(12):3041-50. DOI:10.1590/S0102-311X2007001200026

8. Gadelha, CAG. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia
da saúde. Cienc Saude Coletiva. 2003;8(2):521-35. DOI:10.1590/S1413-81232003000200015

9. Guimarães R. Qualidade, impacto e citação. Uma relação obscura. Radis. 2007;55:19 [periódico na internet]. [citado 2007 set 18]. Disponível em: http://www.ensp.fi ocruz.br/radis/55/postudo.html

10. Hess D. Science and technology in a multicultural world. New York: Columbia University Press; 1995. The cultural construction of science and technology; p. 52-3.

11. Lexchin J. Bigger and better: how pfizer redefined erectile dysfunction. PloS Med. 2006;3(4):e132. DOI:10.1371/journal.pmed.0030132

12. Moynihan R, Henry D. The fight against disease mongering: generating knowledge for action. PloS Med. 2006;3(4):e191. DOI:10.1371/journal. pmed.0030191

13. Moynihan R. The making of a disease: female sexual dysfunction. BMJ. 2003;326(7379):45-7. DOI:10.1136/ bmj.326.7379.45

14. Novaes HMD. Artigos científicos e a produção em Saúde Coletiva no Brasil. Posfácio. Cad Saude Publica. 2007;23(12):3051-3. DOI:10.1590/S0102- 311X2007001200027

15. Payer L. Box 1. The major disease-mongering tactics identified by Lynn Payer. Apud Tiefer L Female sexual dysfunction: a case study of disease mongering and activist resistance. PloS Medicine. 2006;3(4):e178. DOI:10.1371/journal.pmed.0030178

16. Steinman MA, Bero LA, Chren MM, Landefeld C. Narrative review: the promotion of gabapentin: an analysis of internal industry documents. Ann Intern Med. 2006;145(4):284-93.

 

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VERA MIGUELOTE é médica e especialista em Psiquiatria. Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuou como médica do Ministério da Saúde na assistência e em funções de Coordenação e Supervisão na Área de Saúde Mental do Programa Saúde da Família.

KENNETH DE CAMARGO JR. é médico e especialista em Saúde Coletiva. Concluiu o doutorado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 1993, tendo realizado pós-doutorado na McGill University em 2000/2001. Atualmente é Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, associate editor do American Journal of Public Health e editor da revista Physis.

 

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