04 | Dossiê

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Há uma Doença de Custos nas Atividades Culturais?

Há uma “doença de custos” nas atividades culturais?

Ronaldo Fiani

 

Desde os anos 1990 tem-se debatido de forma crescente a tese apresentada pelo economista William J. Baumol, que uma série de atividades tais como serviços de saúde, educação e atividades culturais sofreriam uma “doença de custos”, isto é, teriam uma peculiaridade que explicaria o fato destas atividades custarem cada vez mais caro[1]. Por exemplo, haveria uma peculiaridade em uma atividade cultural tal como a montagem de uma ópera que faria com que os custos das montagens crescessem cada vez mais. O reconhecimento da natureza dessa peculiaridade e das causas da elevação dos custos seria essencial, entre outros, na decisão acerca de subsidiar essas atividades. Dado que um concerto, uma ópera, uma peça teatral custam cada vez mais caro, é necessário subsidiá-las, ou isto vai se tornar cada vez mais caro e difícil de administrar? Se for necessário subsidiar, quem deve pagar o subsídio? Mas antes de considerar a questão do subsídio, é necessário entender um pouco o argumento de Baumol.

O Argumento da “Doença de Custos”

Para entender o argumento de Baumol é preciso recuar no tempo, revendo uma das principais ideias que Adam Smith, considerado por muitos o fundador da teoria econômica, apresentou no seu livro clássico A Riqueza das Nações, publicado em 1776. Naquele livro Adam Smith apresentava uma análise que permanece atual e muito importante sobre a origem dos ganhos de produtividade, que tendem a tornar os bens mais baratos com o passar do tempo.

Segundo Adam Smith, a origem dos ganhos de produtividade que estariam tornando os bens industriais cada vez mais baratos seria a divisão de tarefas. Em seu célebre exemplo da fábrica de alfinetes, ao encarregarmos um trabalhador de fazer todas as tarefas necessárias para a produção de um alfinete (cortar o arame, afiar a ponta, colocar a cabeça do alfinete, embalar etc.), sua produtividade será muito menor do que se atribuirmos cada uma destas tarefas a um trabalhador diferente. Em outras palavras, a divisão do trabalho (ou seja, a divisão de tarefas entre os trabalhadores) aumenta extraordinariamente a produtividade, e isto acontece por três razões. Em primeiro lugar, ao simplificar as tarefas do trabalhador, a habilidade e rapidez com que ele executa estas tarefas aumenta expressivamente: um sapateiro que se limite a cortar o couro preparando as partes para os seus colegas ficará cada vez mais habilidoso e executará sua tarefa com rapidez cada vez maior.

Em segundo lugar, ao reduzindo-se o número e a complexidade das tarefas executados pelo trabalhador diminui-se a perda de tempo que naturalmente acontece ao se passar de uma tarefa para outra: a perda de tempo que há entre a etapa de cortar o couro e a etapa de costurar as partes se reduz quando cada trabalhador faz apenas uma das tarefas.

Por último, mas mais importante, ao serem simplificadas as tarefas que o trabalhador executa, torna-se mais fácil substituir o trabalhador por uma máquina. Por exemplo, seria praticamente impossível substituir um sapateiro por uma máquina no caso em que o sapateiro realiza todas as tarefas necessárias para a produção do sapato (cortar o couro, costurar as partes, pregar a sola etc.). Mas torna-se muito mais fácil substituir um trabalhador que apenas prega o solado no sapato por uma máquina que execute esta função.

Esta última causa do aumento de produtividade se tornou decisiva no barateamento dos produtos industriais após a primeira revolução industrial no começo do século XIX, que começou a explorar intensivamente a substituição de trabalhadores por máquinas, ou, na terminologia dos economistas, a substituição de trabalho por capital. Esta substituição vem tornando os produtos industrializados em larga escala cada vez mais baratos desde então, algo que se verifica da mesma forma nos dias de hoje, com o barateamento crescente de bens como automóveis e computadores.

A tese de Baumol é a de que essa substituição em massa de trabalhadores por máquinas, ou de trabalho por capital na indústria não acontece, ou acontece em escala muito menor em determinadas atividades, como as atividades culturais. Baumol demonstra a sua tese afirmando que as condições de execução de uma peça de Mozart não mudaram significativamente do século XVIII até hoje, nem as condições de montagem de uma ópera, tampouco as condições de uma peça teatral ou de um concerto sinfônico.

O problema da doença dos custos é que os salários tendem a aumentar com o tempo na mesma proporção em todas as atividades da sociedade, mesmo naquelas em que a produtividade cresce muito devagar. Como os salários crescem na mesma proporção, mesmo nas atividades em que a produtividade cresce mais devagar, o custo destas últimas aumenta em relação ao custo das atividades em que a produtividade cresce mais rapidamente – como as atividades industriais.

Mas por que os salários crescem na mesma proporção em todas as atividades? Isso acontece porque, por exemplo, se, por algum motivo acidental, o aumento dos salários for maior na indústria mais do que nas atividades culturais, as pessoas deixarão de trabalhar nas atividades culturais e passarão a trabalhar na indústria, pois a diferença de salários entre atividades culturais e o trabalho na indústria não justificará mais o aprendizado e treinamento complexos que são necessários para as atividades culturais. Falando de modo puramente ilustrativo, não valerá mais a pena estudar piano para se tornar um concertista se os ganhos não forem mais significativamente diferentes dos ganhos de um operário qualificado. A consequência será a de que com o tempo faltarão pessoas para trabalhar em atividades culturais e sobrarão operários, uma vez que a diferença de salários entre estas atividades terá diminuído. A redução no número de artistas e aumento no número de operários geraria então um desequilíbrio na oferta e demanda por estes trabalhadores, que tenderia ser corrigido com a redução progressiva no aumento dos salários na indústria e aceleração dos salários nas atividades culturais, reestabelecendo-se assim o equilíbrio.

Vale notar que Baumol não está afirmando que os salários serão todos iguais. Ele está afirmando que as diferenças salariais tem de ser preservadas a favor dos trabalhadores mais qualificados – o que exige que os salários cresçam todos na mesma proporção. Se os salários não aumentarem na mesma proporção – ou seja, se as diferenças salariais não se mantiverem ao longo do tempo – isso vai afetar a oferta de mão de obra em cada atividade e forçar o reequilíbrio naquelas atividades que demandam maior qualificação – como a atividade artística. Dessa forma, como o custo acaba proporcionalmente aumentando muito mais nas atividades cuja produtividade cresce mais devagar – como as atividades artísticas – os serviços e produtos culturais ficam cada vez mais caros.

Qual a solução para o doença de custos nas atividades culturais?

A solução de Baumol para o problema é simples. Como os produtos industrializados vão ficar cada vez mais baratos e os produtos culturais cada vez mais caros, o que vai acontecer é que as pessoas vão gastar uma parcela cada vez menor do seu orçamento em bens industrializados e uma parcela cada vez maior do seu orçamento em bens culturais e serviços pessoais, tais como educação e saúde. Como mesmo onde a produtividade cresce menos – como as atividades culturais – ela mesmo assim ainda cresce, as pessoas poderão pagar por esses bens e serviços. Elas apenas vão mudar espontaneamente seus gastos, por assim dizer, de automóveis e computadores para espetáculos musicais e peças de teatro.

A resposta de Baumol, contudo, deixa aquelas que são talvez as questões mais importantes em aberto. Mesmo que aceitemos sua tese de que há uma doença de custos nas atividades culturais – o que tem sido motivo de debate – e ainda que aceitemos a sua “solução” (isto é, o fato de que as pessoas mudariam espontaneamente seus gastos, passando a gastar mais com bens culturais uma vez que os bens industrializados se tornariam cada vez mais baratos), ainda resta um problema – que é um problema crucial em políticas culturais: se as pessoas passarem a gastar menos em produtos industrializados e mais em bens culturais, quem irá consumir os bens culturais e que bens culturais elas irão consumir?

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o poder de compra derivado da renda de cada indivíduo é desigualmente distribuído entre os membros de uma sociedade. Desse modo, a doença de custos de Baumol pode alijar uma parcela significativa da sociedade – e ainda mais em países que não são desenvolvidos – do consumo desses bens, ou ao menos dos bens culturais que demandarem uma formação mais complexa e demorada dos artistas envolvidos e que, por isto, apresentariam menores ganhos de produtividade e seriam mais caros. Isso porque o encarecimento desses bens culturais pode simplesmente excluí-los do alcance das parcelas de menor renda da população.

Em segundo lugar, bens culturais diferentes têm ganhos de produtividade distintos e são desigualmente afetados pela doença de custos. Basta comparar um filme blockbuster de Hollywood com uma ópera para percebermos que os ganhos de produtividade – aplicação de computação gráfica para cenários e editoração, digitalização do filme etc. – são muito maiores no caso do filme do que no caso da ópera. Isso significa que os custos crescem muito mais rapidamente na montagem de uma ópera do que no filme, o que resulta em um impacto muito adverso em termos de público para a ópera, como é evidente das dificuldades do setor. Uma consequência é o recurso cada vez maior ao repertório consagrado em detrimento dos autores mais “difíceis” e portanto de público mais limitado, o que vem acontecendo em várias atividades culturais e não apenas na ópera.

O que fazer então? Alguns economistas sugerem subsídios às atividades artísticas que demandam qualificações mais complexas da mão de obra e por isso apresentam menores ganhos de produtividade, sendo assim mais caras. Outro economistas contestam este tipo de solução, afirmando que isso significa subsidiar os “ricos”, que são o público mais comum nesse tipo de atividade cultural. Ainda que esta última crítica possa ser facilmente refutada com o argumento de que um subsídio assim não visaria necessariamente a favorecer os “ricos”, pois não excluiria a adoção simultânea de uma política de divulgação de atividades culturais que envolvem mão de obra complexa para amplos setores da sociedade, o debate demonstra que uma solução para a doença de custos nas atividades culturais vai além da questão meramente econômica e envolve uma definição política do sentido destas atividades na vida social.

 



[1] As principais obras de William J. Baumol para consulta são: The Cost Disease: Why Computers Get Cheaper and Health Care Doesn’t. New Haven: Yale University Press, 2012; “Children of Performing Arts, the Economic Dilemma: The Climbing Costs of Healthcare and Education.” Journal of Cultural Economics 20(3), 1996: 183-206; “Health Care, Education and the Cost Disease: A Looming Crisis for Public Choice.” In The Next Twenty-Five Years of Public Choice, edited by Rowley, Charles K., Friedrich Schneider, and Robert D. Tollison, 17-28. Dordrecht: Springer Netherlands, 1993.

 

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RONALDO FIANI é economista e professor Associado D.E. do Instituto de Economia da UFRJ. Foi assessor do Ministério da Fazenda (1994-5), da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (2001), pesquisador-visitante no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford (2003) e no IPEA/Brasília (2011-2012).

 

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