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Em Tempos de Guerra

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Em Tempos de Guerra

Ana Teixeira 

“Não se falará: Então, as nogueiras balançaram ao vento,
mas: quando o líder oprimiu o povo.
Não se falará: então, quando a criança lançou uma pedra e fez ondas na água.
mas: quando se prepararam grandes guerras.
Não se falará: Então, quando a mulher entrou no quarto,
mas: quando os grandes se uniram contra os trabalhadores.
E nem se falará: foram tempos sombrios,
mas, por que os seus poetas ficaram calados?”
(Bertold Brecht)

 

A Trilogia da Guerra do Amok Teatro é uma trajetória que tem suas raízes no Ecum – Encontro Mundial das Artes Cênicas, um fórum internacional que reúne, no Brasil, artistas, pesquisadores e profissionais das artes cênicas para reflexão e troca de experiências. Em sua edição de 2006 com o tema O Teatro em Tempos de Guerra, artistas vindos de diversas partes do mundo, compartilharam suas histórias, seus trabalhos, suas perguntas. Qual o sentido do teatro diante do sofrimento e da violência? Como o teatro responde aos desafios do mundo em guerra? Que teatro pode surgir dos escombros? Como curadora, coloquei em diálogo, brasileiros, europeus, africanos iranianos e iraquianos. Diferentes histórias, culturas, línguas e estéticas apontaram para um teatro capaz de testemunhar, de agir solidariamente e de se insurgir contra a brutalidade. Com eles, a cena se confrontou à realidade, em sua polifonia e em sua capacidade de gerar formas tão diversas.

“As mulheres palestinas, iraquianas, afegãs são minhas irmãs porque somos todas prisioneiras das garras do mesmo Dragão que, em nome da liberdade e da justiça, rouba nossas crianças.”
(Nuhrit Peled Elhanan)

Dessas experiências compartilhadas em 2006, o encontro com a documentarista iraniana Maryam Khakipour e com os atores iranianos do Siah Bâzi, Saadi Afshar (úlitmo mestre vivo desta arte) e Shadi Zadeh, repercutiu sobre a trajetória do Amok.

O Siah Bâzi (O jogo do Negro) é uma forma de teatro cômico que improvisa cenas repletas de alusões à atualidade e à política. Seus atores, os “operários da alegria”, como são chamados no Irã, resistiram mais de dois séculos criticando o poder e a sociedade. Mas em 2003, o governo iraniano decidiu, sem aviso prévio, fechar o Teatro Nasr, o mais antigo de Teerã. Os atores do Siah Bâzi foram expulsos do lugar onde trabalhavam e ficaram desamparados, impossibilitados de atuar. O Siah Bâzi incomodava o regime dos aiatolás e o público iraniano viu seu teatro ser silenciado.

Saadi Afshar – Siah Bâzi

A partir desse encontro com Maryam Khakipour e com os atores iranianos, o Amok mergulhou num projeto artístico sobre o tema da guerra, desejoso de afirmar o teatro como um lugar privilegiado de convívio, para pensar e sentir juntos o mundo em que vivemos. Começamos a investigar diferentes formas de colocar em diálogo a cena e o real. Procuramos, através do ator, linguagens cênicas que pudessem abrir novas possibilidades de leitura do nosso tempo, a partir de questões humanas universais. Com a Trilogia da Guerra, propomos três espetáculos independentes, três retratos da guerra e três diferentes experiências de linguagem cênica.

Dois sonhos podem se mover livremente sob um mesmo céu?
(Mahmoud Darwich)

O Dragão, primeiro painel deste tríptico sobre a guerra, é uma criação sobre o conflito Israel-Palestino, a partir de fatos históricos, artigos, conferências, relatos e documentos, extraídos de diferentes fontes. Reunimos um grande acervo de depoimentos e costuramos uns nos outros, tecendo uma trama composta por diferentes vozes. Escolhemos pequenos momentos reveladores da realidade, introduzindo o subjetivo na matéria objetiva, quebrando assim a visão distanciada da mídia e da análise dos especialistas, para fazer surgir personagens, interrogando a realidade através do que eles vêem e sentem. Partimos de fatos reais, históricos, para construirmos, através do jogo do ator, uma matéria cênica.

 

O Dragão – Amok Teatro (foto: Mateo Toburi)

Neste pequeno território no coração do Oriente Médio é travada uma guerra que se tornou emblemática de muitas outras. O conflito entre israelenses e palestinos se cristalizou no panorama geo-político mundial como uma guerra sem fim, simbolizando a tensão entre oriente e ocidente, tradição e modernidade, “eixo do bem/eixo do mal”.

Os judeus israelenses, assim como os palestinos, são habitados por um medo existencial. Para os primeiros, o genocídio faz parte integrante de sua identidade e eles temem a sua repetição. Cada atentado é vivido como o sinal de um possível ressurgimento da “besta imunda” que foi o nazismo. Para os palestinos, a expulsão de 1948 assim como a ocupação de seus territórios desde 1967, representa uma provação traumática da qual eles sofrem, quotidianamente, os efeitos. Os israelenses falam da Shoah e os palestinos da Nakba, os dois termos poderiam ser traduzidos por “catástrofe”.

Com O Dragão, olhamos para essa complexa situação entre israelenses e palestinos sem nenhuma hierarquia, nenhuma classificação. Colocamos o conflito armado sob o olhar da maternidade e da paternidade. Através de quatro personagens, de seus depoimentos, de suas feridas expostas, abordamos a intimidade da dor e da perda, infligida pela guerra. Experimentamos a via do teatro-documentário para revelar o interior das pessoas nesta experiência comum da dor, onde as diferenças não separam mais, mas simplesmente nos distingue e religa.

Sempre teremos nossos sonhos para reinventar o mundo que nos foi confiscado.
(As Andorinhas de Cabul – Yasmina Khadra)

Com Kabul, segundo painel da Trilogia da Guerra, mergulhamos num Afeganistão traumatizado por 20 anos de guerras e entregue à tirania dos fundamentalistas. Aqui, um fato real serviu como ponto de partida para a criação de uma ficção: uma imagem capturada em um vídeo em novembro de 1999 mostrava uma mulher coberta com um tchador azul, sendo executada publicamente no estádio de Cabul. Esta imagem, feita a partir de um celular, correu o mundo e revelou um fato tão cruel quanto distante. Nós quisemos aproximar. Quem poderia ser aquela mulher sob o tchador? Como era o seu rosto? Qual a sua história?
Levantar o véu…

 

Kabul – Amok Teatro (foto Andrea Teixeira)

O que contamos em Kabul poderia ser a história daquela mulher executada no estádio. Inspirado no livro As Andorinhas de Kabul, de Yasmina Khadra, o espetáculo é uma criação sobre a guerra vista através de dois casais que refletem o martírio de uma nação aniquilada por décadas de violência. Quatro rostos da guerra, quatro retratos de um Afeganistão visto de dentro das casas, por detrás das cortinas.

Assim como em O Dragão, Kabul não parte de um texto dramático. Com o primeiro, os fatos reais teceram a trama dramática e a linha documentária foi a base para a construção da linguagem cênica. Já com o segundo, o fato real serviu apenas como impulso para a criação de um drama existencial. Kabul é o encontro de uma obra literária com um fato real para tratar do desamparo, da opressão e da precariedade. Investigar no ser o humano o que resta quando tudo lhe foi retirado. Em ambas experiências, para além das fronteiras geográficas ou culturais, o que colocamos em foco é o homem diante da violência de seus tempos.

“Todas essas pessoas que morreram nessa guerra…
Todos esses fantasmas que ficam em volta de mim…
E eu, que ainda estou viva, sou obrigada a viver com todas essas lembranças…”
(Uma criança iugoslava)

Em Histórias de Família, último painel desse tríptico, mergulhamos num dos conflitos mais sangrentos ocorridos na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial: a guerra que desmantelou a Iuguslávia nos anos noventa. Aqui, nos debruçamos sobre o tema da infância e da violência, nos confrontando à realidade a partir um texto dramático.
Histórias de Familia, da dramaturga sérvia Biljana Srbljanovic, descreve a confusão na qual seu país mergulhou, levando toda a região dos Balcãs à barbárie e à destruição.

No espetáculo, situado nas ruínas de uma Iugoslávia destruída pela guerra, quatro personagens (crianças) brincam de família, reproduzindo o comportamento delirante de adultos desorientados. Pouco a pouco revela-se a lógica da guerra, criada e mantida pelo poder político, que se manifesta em todos os níveis da sociedade. A violência das brincadeiras substitui a violência dos combates e nesse ritual, à imagem do clima político a tensão entre todos é extrema. E o mundo se reestrutura e se regenera a cada nova brincadeira.

 

Histórias de Família - AMOK Teatro. (foto: Rafael Saes).:

Histórias de Família – AMOK Teatro. (foto: Rafael Saes).

Para falar de uma sociedade saturada de ódio, Biljana Srbljanovic escolheu a derrisão e o absurdo. O texto nos convidou a ver a guerra através do lúdico e a ver o teatro como o lugar onde os adultos continuam a fazer aquilo que fazem as crianças: produzir jogo. Srbljanovic surpreende e provoca. Seu texto não trata do tema da infância na guerra mas, trata da guerra através do olhar da infância. É através das próprias crianças que ela olha para o conflito nos Balcãs. Os personagens, entre a infância e a idade adulta, tentam compreender o caos e o mundo em que estão.

Como uma nação que viveu dentro do sonho de uma Yuguslávia unida, pôde endossar a uma ideologia que levou ao obscuro caminho da limpeza étnica? Se em Histórias de Família essa questão é abordada no contexto do desmantelamento da Yuguslávia, ao mesmo tempo, o espetáculo diz respeito a qualquer sociedade. A expansão dos nacionalismos, das ideologias hegemônicas, do autoritarismo, que crescem a cada dia por toda a parte, faz eco com essas famílias.

 

Histórias de Família – Amok Teatro ( foto: Rafael Saes)

A Trilogia da Guerra é um projeto sobre a memória, sobre um teatro que persiste em não esquecer. Um teatro que dialoga com nossa época, com seus impasses, seus desejos, seus sofrimentos e suas esperanças. Nesse percurso, espetáculos, debates e encontros com o público foram indissociáveis.

Nesse projeto, não pensamos no fenômeno da guerra como um problema que atinge apenas alguns, ou um determinado povo. A violência atinge a todos, mesmo que em diferentes escalas. Não por acaso abordamos esse tema a partir da alteridade, do encontro com o “outro”, buscando uma identidade humana e sem fronteiras. Um desejo de aproximação, de pensar a questão da violência a partir da experiência do outro e, desse modo, rever nossos conceitos e refletir sobre nossa própria realidade.

Acreditamos que esse olhar em direção ao estrangeiro responde as questões levantadas pela globalização, em que migração, minorias, individualismo, cultura de consumo e tentativas de hegemonia são realidades efetivas. A intenção foi compartilhar nossa perplexidade diante do monstro da guerra, traduzindo isso cenicamente, em atos, sons e movimentos.

Abordamos problemas que consideramos importantes nesses tempos sombrios, acreditando que o teatro pode ser um lugar de discussão desses problemas. O que pode ser dito através do discurso cênico não pode ser dito através de nenhum outro discurso (científico, político ou jornalístico) e, por isso mesmo, interfere sobre a percepção que temos do real. A Trilogia da Guerra, maior projeto do Amok Teatro desde a sua fundação, reflete o teatro que buscamos: um espaço de encontros, um lugar de confluência de culturas, de visões, de fricção, de apreço pelo convívio e pela memória.

 

Links:
vimeo.com/67032999‎
vimeo.com/71305641‎
www.amokteatro.com.br

 

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ANA TEIXEIRA é pedagoga, diretora do Amok Teatro e diretora artística da Casa do Amok. Dirigiu espetáculos apresentados no Brasil e no estrangeiro, com um grande reconhecimento da crítica e do público. Recebeu diversos prêmios do teatro como, o prêmio Shell (direção de Cartas de Rodez), o Prêmio Mambembe (melhor espetáculo para Cartas de Rodez e indicação pela a direção) e o Prêmio Governo do Estado RJ (melhor espetáculo e indicação pela direção por O Carrasco). Na França formou-se na Escola de Mímica Corporal Dramática de Paris (técnica de Etienne Decroux), no Instituto Estudos Teatrais – Sorbonne Nouvelle/ Paris III e estudou o Teatro do Extrêmo Oriênte com o sinólogo Jacques Pimpaneau no Museu Kwok On de Paris. Com trinta anos de experiência pedagógica nas artes cênicas, ministra oficinas em escolas, universidades e festivais no Brasil e no estrangeiro.

AMOK TEATRO é dirigido por Ana Teixeira e Stephane Brodt e se dedica a uma pesquisa contínua sobre o trabalho do ator e as possibilidades de encenação. Desde sua fundação em 1998, o grupo tem recebido por seus espetáculos os mais importantes prêmios de teatro brasileiro e um grande reconhecimento da crítica e do público. Além dos espetáculos, o Amok Teatro desenvolve uma intensa atividade pedagógica, com ênfase na formação de atores e mantém em sua sede, a Casa do Amok, projetos de pesquisa, formação e intercâmbio, apoiando o trabalho de grupos e artistas de diferentes segmentos. A Casa do Amok se configurou como um espaço de criação e de treinamento, onde a vida da companhia e a formação dos atores estão profundamente ligadas.
O trabalho do Amok se caracteriza pela busca de um rigor formal e por uma intensidade que se afirma no corpo do ator, como sendo o lugar em que o teatro acontece. Cada novo projeto impulsiona o grupo a procurar diferentes caminhos de pesquisa e de treinamento para o ator a partir do diálogo com diferentes tradições e culturas. Os espetáculos do grupo tratam de temas contemporâneos, sem perder de vista a afirmação da cena como um espaço cerimonial.

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