o que esquecemos de tocar quando colonizamos as estrelas
Cecilia Cavalieri
por que somos tão melancólicos? o quão distantes da terra estaríamos nós? em que medida homem e terra seriam coisas totalmente distintas ou dissociáveis? é a partir dessas perguntas que construo um pequeno aparato fotográfico especular, passeio com ele por vários pontos da cidade do rio de janeiro _sobretudo aqueles onde olhar para cima se faz inevitável_ e o costuro com mínimas proposições teóricas a fim de espelhar a terra no céu e, por uma ativação das faculdades sensíveis do homem contemporâneo, reeducar seu olhar para a terra, trazendo-o mais para perto do chão, uma vez que desde a antiguidade ele olha mais para cima do que para baixo _e sempre em busca de respostas. iluminado a partir do texto “a pureza e a inocência”, de michel tournier, este ensaio lança um percurso plástico-reflexivo onde, no final, homem e terra se encontram em outras bases e se percebem a partir deste esboço de antídoto para a melancolia.
&) colocar a terra no céu para que esta seja percebida e tocada é uma tentativa de por os mundos em contato, de fazer com que o homem volte a produzir uma escuta em relação à terra _esse lugar onde ele encosta e para onde dá as costas quando estende a mão para contar estrelas. é colocar-se à disposição e ouvir o que ela diz;
“) mares, minerais, peixes, pedras, plânctons e tantos outros estão mais próximos de nós _e tão ou mais vulneráveis do que nós_ do que constelações, galáxias, do que o céu, que colonizamos antes mesmo de tocar o chão com o qual compartilhamos movimentos de translação e rotação: a terra com a qual poderíamos comungar melhor.
^) desde que o homem trocou o arco-reflexo dos instintos pela razão, algo veio se perdendo no mundo sublunar. se freud deslindou a melancolia como sendo a perda do mundo, uma sombra, como um eco daquilo que não se perdeu nem se ganhou, será que ela, a melancolia, não poderia ser a perda da própria natureza, uma vez que é histórico do homem [para não dizer que é caro à natureza humana] o esforço de se desnaturalizar, de se separar da terra? ela não seria a perda do que está sob seus pés? esse buraco, esse vazio que constitui o homem ocidental, não seria a invenção da natureza e, portanto, sua separação dela? a partir disso:
h) um pequeno exercício cromático: experimente olhar fixamente para um quadrado bem azul sobre fundo branco. então remova o azul e continue olhando para o branco. o que se verá é um quadrado laranja produzido pelo olho de quem viu azul. a conclusão é a de que o azul precisa de laranja para ser azul aos nossos olhos; nossos olhos produzem laranja para dar conta de ver azul; quando azul vai embora o que fica é uma falta, laranja e inesquecível, produzida pelo olho que viu o azul que foi;
*) a pureza de um corpo químico é um estado absolutamente contranatura que só pode ser obtido por procedimentos que implicam violência [1] ;
~) monogamia, monoteísmo, monarquia, monetarismo, monocultura, monotonia, monolitismo, monopólio, entre outros, são composições que partem do princípio da certeza de que a existência da unidade, do um, é irrefutável; de que algo pode ser íntegro e puro em sua unidade;
#) ainda que se quisesse pensar em termos de unidade, mesmo sem levar em consideração quão violento é o exercício de purificação de qualquer coisa, há de se reconhecer que o um só existe na relação com um outro. mesmo a menor partícula atômica é incapaz de existir só por ela e para ela própria;
2) as dualidades, que constituem um dos maiores problemas da modernidade são, de uma certa maneira, baseadas nesse modelo do um, da oposição de um contra outro um, um que é depurado da matéria do outro. natureza x cultura, esquerda x direita, sujeito x objeto, vida x morte, terra x céu, público x privado, religião x ciência, homem x mulher, centro x periferia, et cetera;
; ) esses males físicos da pureza ainda não são nada se comparados aos crimes inumeráveis que sua ideia obsessiva provocou na história. o homem cavalgado pelo demônio da pureza semeia a morte e a ruína em torno de si. purificação religiosa, depuração política, salvaguarda da pureza da raça, busca anticarnal de um estado angélico, todas essas aberrações desembocam em massacres e infelicidades inumeráveis [2];
0) não é de hoje que o homem olha mais para o céu do que para a terra. a mais antiga referência a isso é uma pequena anedota grega sobre filósofos: platão conta que tales vivia olhando para cima, a observar as estrelas, até que um dia caiu em um poço e foi zombado por uma camponesa trácia que, vendo o tombo, gargalhou do fato de tales só se preocupar com as coisas do céu, esquecendo-se daquelas que estavam ao seu redor, sobretudo das que estavam sob seus pés.
o que esquecemos de tocar quando colonizamos as estrelas vem propor que, no automatismo de olhar para o céu em busca de respostas, enxergue-se que o que se toca é a terra: aquela que pode dar respostas melhores para tudo aquilo que vive dela e nela. nada nessas oito fotografias feitas com areia, água, grama, pedras, terra, folhas, chão, céu, pés e espelho se manifesta em forma de pureza, de unidade: provavelmente quem inventou essa depuração fomos nós.
o quanto de natureza o homem ocidental foi arrancando de si e colocando do lado de fora, no mundo, no ambiente, na paisagem, distanciando-se dela, diferenciando-se dela, negativando-se dela, colocando-se no lugar do artifício, recusando-a?
talvez ouvir, tocar a terra com mãos, pés e olhos menos ocidentais seja o melhor antídoto tanto para a melancolia quanto para o fim dos mundos. então, quem sabe, entendamos o que nos foi dado como falta desde que nascemos, que laranja nunca foi uma falta ontológica do azul, mas a prova viva de que azul existe. e vice versa.
* agradecimento especial a francisco fuchs, juliana fausto, juliana franklin e márcio kabke pinheiro
[1] tournier, michel. le miroir des idées. paris: gallimard, 1996, pp. 190.
[2] idem, pp. 192.
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praia do leme
planetário da gávea
praia de botafogo
aterro do flamengo
CECILIA CAVALIERI [São Paulo, 1984] é artista visual radicada no Rio de Janeiro, formada em comunicação e mestranda em processos artísticos contemporâneos pela UERJ. Trabalha com fotografia, vídeo e instalação em narrativas que investigam o corpo fragmentado, a natureza como vazio/falta, a experiência-limite da modernidade e a construção do sujeito por meio de seu apagamento. Participou de exposições no Rio de Janeiro, Florianópolis, Brasília, Bergen e Berlim.
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