08 | Dossiê

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Transnacionalização da espiritualidade indígena e turismo místico

TRANSNACIONALIZAÇÃO DA ESPIRITUALIDADE INDÍGENA E TURISMO MÍSTICO*

Jean Paul Sarrazin

 

UMA APROXIMAÇÃO INICIAL À POPULAÇÃO LOCAL

A investigação que deu origem a este texto (realizada no marco de um doutorado de sociologia) está centrada em um trabalho de campo com uma população composta por pessoas que participam de eventos relacionados aos indígenas, tais como rituais xamânicos ou apresentações de folclore, ou a práticas como o turismo cultural e visitas a museus e mercados de artesanato, que as colocam em contato com criações culturais indígenas. Essas pessoas nos aproximaram de conhecidos ou amigos seus que também pudessem falar do interesse pelas culturas indígenas. Depois de entrevistar mais de 30 pessoas, evidenciou-se que existia um tipo ideal (no sentido weberiano do termo) no qual se centrou a investigação: tratam-se de indivíduos que pertencem a estratos socioeconômicos médio e alto, em sua maioria profissionais e/ou intelectuais com um capital cultural que a maior parte dos colombianos não possui, graças, em parte, ao acesso à educação universitária.

Os discursos da população, bem como representações nos meios de comunicação e declarações oficiais, foram analisados levando-se em conta observações etnográficas obtidas ao longo de cinco anos, entre 2004 e 2009. Essa análise mostrou que entre as classes médias e altas de Bogotá existe a construção de um imaginário positivo sobre o indígena, no qual a espiritualidade é um elemento fundamental. Foi isso o que chamei de construção do indígena espiritual (SARRAZIN, 2011). No entanto, uma análise comparativa com outros países, como também a pergunta sobre a origem dessas representações positivas, permitiram ver que o fenômeno não se limitava à escala local, e que era necessário ter em conta a circulação transnacional de pessoas, de objetos e, sobretudo, de informação e de imagens.

Quero demonstrar que a construção de uma identidade indígena ‘espiritual’ é, por um lado, a consequência de fluxos transnacionais de informação e, por outro, a causa da circulação de pessoas dentro de uma forma de turismo. Além disso, há de se dizer que a construção de uma identidade indígena ‘espiritual’ e o turismo místico (subcategoria relacionada ao turismo cultural [1] e ao turismo étnico), são dois fatores que se retroalimentam. A importância que as identidades indígenas adquiriram nas representações públicas permitiu às classes médias – principal população relacionada com o aumento do turismo nas últimas décadas – conhecer algo de tais identidades e considerar o indígena como mais um objeto capaz de atrair sua atenção. O aumento do turismo, por sua vez, ou de maneira mais geral, o aumento do interesse pelo indígena por parte das classes médias com poder aquisitivo, impulsionou a construção das identidades indígenas ‘espirituais’, dado que muitos grupos (de indígenas e neoindígenas) perceberam que se apresentar com essa identidade lhes concediam benefícios econômicos, simbólicos e políticos.

A construção de uma identidade indígena, com seu forte componente ‘espiritual’, possui uma natureza transnacional. Ou seja, contrariamente àquilo que muitos acreditam, não se trata da ‘recuperação’ de tradições ‘milenares’ e da expressão do estritamente local, e sim de construções ultramodernas que se nutrem da circulação de produtos, informação e pessoas através de tecnologias contemporâneas. Graças a isso promoveu-se a construção de uma identidade indígena generalizada, uma categoria de ‘cultura indígena’ que compreende indígenas de diferentes países. As classes não indígenas com poder aquisitivo se interessam por uma espiritualidade nativa que é possível encontrar, segundo eles, em Tenochtitlan (México), na Sierra Nevada de Santa Marta (Colômbia) ou no lago Titicaca (entre Peru e Bolívia). Nesse tipo de lugares, que alguns chamam de mystic spots (o nome em inglês, ‘pontos místicos’, denota o caráter globalizado do conceito), podemos encontrar turistas de Bogotá que querem ter experiências culturais aparentemente fora do comum. Voltaremos a esse ponto mais adiante.

Igualmente, é preciso considerar que esse turismo começa em casa. De forma cada vez mais frequente, as pessoas encontram em Bogotá uma oferta de serviços, objetos e discursos relacionados à espiritualidade dos grupos étnicos de todo o mundo, incluindo, claro, a dos indígenas do país. Estes são vistos como elementos exóticos, já que em Bogotá a população indígena é muito marginal (cf. DANE, 2007, 2008) e, no país, em geral, é raro que um não indígena entre em contato com um indígena. Aquele que se interessa por espiritualidades étnicas também pode acessar, a domicílio, a oferta que proporcionam, por exemplo, um coach-xamã chileno ou um expert em calendário maia, pois eles se deslocam até Bogotá.

Há uns 15 anos começou a se popularizar na Colômbia o que comumente se entende como xamanismo (e que alguns chamam de ‘neoxamanismo’). Mais e mais pessoas não indígenas, especialmente nos estratos acomodados das cidades, passaram a se interessar por certas práticas rituais e pela filosofia que estaria por trás delas (SARRAZIN, 2008).

O ritual xamânico mais conhecido em Bogotá é ‘tomar’ yajé [2] e começa a ter lugar em Bogotá no início dos anos 1980 por meio de alguns poucos intelectuais (como antropólogos, médicos e artistas). Esses círculos foram se ampliando à medida que mais pessoas quiseram assistir a novas tomas e a organizá-las. A partir de então as tomas se difundem especialmente entre as classes médias e alta e entre grupos de intelectuais. Os indivíduos que se reúnem para esse tipo de prática não necessariamente se conhecem e podem ir simplesmente porque sentiram ‘curiosidade’. Alguns retornam às tomas, outros não. Considera-se realizar esses rituais no campo, pois o contato com a natureza, valorizado pela grande maioria das pessoas consultadas, permitiria um certo grau de autenticidade, já que se pretende reproduzir de forma mais fiel possível um ritual ‘como fazem os indígenas’ na selva. Com efeito, a busca por exotismo e ‘pureza indígena’ é muito importante nesse fenômeno. A identidade indígena é portanto recalcada, e isso garantiria que a sabedoria espiritual e terapêutica lá transmitida não é obra de charlatões.

As tomas são frequentemente precedidas por bate-papos e práticas ‘preparatórias’ nas quais se fala das virtudes das plantas utilizadas pelos indígenas, do conhecimento milenar dos aborígenes, do papel central do xamã etc., durante um ou vários dias, no que costuma chamar de ‘oficina’. Também é possível que haja atividades de relaxamento, caminhadas, ‘danças circulares sagradas’ etc. Nesses rituais é evidente a presença de discursos e práticas do tipo new age, pois o indígena é interpretado através desse tipo de marco conceitual, tomando-se também como referência, por exemplo, obras como a de Carlos Castañeda (1996). Em geral, quem constrói os discursos e desenha as atividades não é o indígena (com este, o intercambio linguístico é praticamente nulo, embora isso venha mudando), e sim os intelectuais e organizadores das tomas.

MARCO SOCIOPOLÍTICO

O interesse pela espiritualidade indígena e o consequente deslocamento de indivíduos surgem no mesmo período histórico no qual se instalam uma ideologia pluralista e políticas multiculturalistas, corrente que é em si um verdadeiro fenômeno transnacional que se manifesta na América Latina, mas que também está relacionado a tendências ideológicas originárias principalmente nas potências do Norte. O caso da Colômbia se soma a uma verdadeira onda transnacional de mudanças constitucionais a favor do multiculturalismo que ocorre em vários países latino-americanos, tais como Nicarágua (1987), Brasil (1988), México (1992), Peru (1993) e Bolívia (1994).

Essas mudanças se dão em um contexto no qual grupos étnicos são reconhecidos como sujeitos políticos e têm maiores possibilidades de se organizar e difundir abertamente sua cultura. Por outro lado, as transformações políticas e culturais promovem o respeito e a valorização de formas religiosas das minorias étnicas. Em todo esse processo, o meio acadêmico (intelectuais, escritores, cientistas sociais etc.) mantém um papel importante como intermediário entre os indígenas e o Estado, como promotor da causa indígena frente ao resto da sociedade nacional, bem como de inspiração e fonte de referências para a construção das atuais identidades culturais dos grupos étnicos (SARRAZIN, 2009).

Assim, a identidade indígena converteu-se em um valor do qual muitos indivíduos ou coletividades estão dispostos a se apropriar e passou a ser promovida e anunciada na cena pública. O indígena apresenta-se ante a sociedade não indígena como nunca antes, lançando mão de uma panóplia de símbolos identitários chamativos, entre os quais estão a “espiritualidade ancestral”, o contato com a natureza e os rituais como o que descrevemos anteriormente.

A quantidade de indivíduos identificados como membros de grupos indígenas aumentou de maneira espetacular nos últimos 20 anos (DANE, op. cit., ver quadro abaixo), período em que se começa a utilizar o método de autoidentificação. Esse aumento reflete um processo de reindigenização (cf. CHAVES, 2003) e de etnogênesis no país.

Ano TOTAL Indígenas % Afro-colombianos % ROM %
1918 5.855.077 158.428 2,7
1938 8.701.816 100.422 1,2
1973 20.666.920 383.629 1,9
1993 33.109.840 532.233 1,6 502.343 1,5
2005 41.468.384 1.392.623 3,4 4.311.757 10,6 4.858 0,01

Novas organizações indígenas surgiram, e muitas das que já existiam se fortaleceram (cf. LAURENT, 2005). Um aspecto importante dessa construção é o fato de se mostrar indígena ante o resto da sociedade nacional. É como acontece com as migrações de indígenas para as cidades, que agora ocorrem motivadas pela eventual obtenção de vantagens simbólicas, econômicas e políticas em contextos urbanos. Alguns desses indivíduos, especialmente certos xamãs e outros membros das elites indígenas, encarregam-se de promover e difundir a cultura indígena, apresentando o xamanismo como uma espiritualidade interessante para a maioria não indígena. Esses indivíduos podem se converter naquilo que chamei de empresários étnico-espirituais, verdadeiros comerciantes de práticas e objetos supostamente espirituais, que atraem principalmente as classes “brancas” com poder aquisitivo.

Mas não somente eles. Muitos outros beneficiam-se da espiritualização da identidade indígena. O mercado de artesanato, por exemplo, para atrair clientes, recorre frequentemente a supostos usos e significados espirituais dos objetos. Os museus também apresentam o xamanismo e as crenças religiosas como um dos aspectos mais interessantes das culturas indígenas. Como explico em outro lugar (Sarrazin, 2010), os publicitários conhecem esse novo “gancho” e recomendaram que o Museu do Ouro de Bogotá (o museu que mais atrai turistas na Colômbia) desse ênfase maior ao xamanismo e ao religioso, dentro do marco de uma renovação realizada recentemente no museu. Após essa renovação, o número de visitantes bateu recordes. Aparentemente, o novo look místico-espiritual seduziu os turistas locais e de outras latitudes.

O INDÍGENA TRANSNACIONAL

Não é segredo que há décadas existem esforços por parte de certos indivíduos e organizações para criar associações de grupos indígenas em nível nacional e inclusive mais amplos, que poderiam ter mais peso ante as instituições nacionais, para que suas demandas se fizessem sentir. Tratava-se de criar um movimento indígena que tinha algo de parecido com os movimentos operários internacionais, fazendo eco à luta de classes (GROS, 2000; WADE, 2000).

Mas com a chegada dos anos 1990 se começa a ver um fenômeno um tanto diferente, que se parece mais às multinacionais em um sistema neoliberal do que à Internacional Socialista.

Desde o ponto de vista cultural, as pretensões atuais a um pan-indigenismo estão relacionadas à “espiritualidade indígena” generalizada e a um panxamanismo imaginado. Esse tipo de universalismo (típico da modernidade) permitiu projetos como o de Michael Harner (autor de origem estadunidense mas conhecido entre os adeptos do xamanismo na Colômbia), que pretende unificar o “saber xamânico” de todo o mundo, vendendo livros, oficinas e conferências com princípios gerais para qualquer pessoa, apresentando o que ele se permite chamar de core shamanism (xamanismo essencial). Esse fenômeno está relacionado à crença de que o xamanismo existe em culturas de lugares muito diferentes, incluindo continentes como a África, onde antes não se falava de xamanismo. O significante ‘xamanismo’ ou ‘xamânico’ globalizou-se, e se acredita facilmente que qualquer grupo étnico deva possuir isso que no Ocidente chamamos de ‘espiritualidade’.

Empresas similares a de Harner começaram a ser vistas na América Latina. Retomo a imagem do empresário étnico-espiritual e, para isso, menciono um exemplo. Trata-se de uma organização, cujo nome prefiro não citar, dirigida por um coach-xamã de origem chilena. Soube dessa organização porque uma de minhas entrevistadas disse que o havia visto em um programa de televisão no qual se falava de casos de medicina alternativa, espiritualidade, correntes esotéricas, em resumo, conteúdos do tipo new age [2]. Ao buscar mais informações sobre a organização, soube que tinham uma sede temporária em Bogotá, na qual é possível se inscrever (a preços proibitivos para as classes populares) para suas oficinas e palestras. Vejamos alguns discursos que a organização publica para atrair seus clientes: “Somos uma Organização Internacional de Desenvolvimento Humano e Superação Pessoal, fundada pelo Filósofo, Escritor, Personal Coach e Xamã chileno, Suryavan Solar e por sua filha Solyaram”. Dentro de uma lógica tipicamente moderna e empresarial, falam de ter um Objetivo e uma Missão: “reunir Práticas Filosóficas Ancestrais com as melhores Técnicas de Vanguarda do Mundo Moderno para o desenvolvimento integral do ser humano”. O caráter trans (nacional, religioso, cultural) é mostrado com orgulho. E de fato, o público busca a diversidade em escala global e quer ser cosmopolita, por isso viaja. Mas para isso os empresários étnico-espirituais também viajam e satisfazem a demanda local. Há um interesse por muitas culturas, para extrair delas conhecimentos ‘antigos e ocultos’ que permitam ao indivíduo moderno enriquecer e ter mais possibilidades de se realizar como pessoa, ter boa saúde e ser feliz. A organização fala claramente a esse respeito. Sua oficina está dirigida a “todos aqueles que desejam assumir um compromisso com o poder pessoal. Você busca o sucesso? Está insatisfeito com a direção de sua vida profissional ou pessoal?” No mesmo panfleto, lê-se depois: “Consiga uma transformação profunda na sua vida. Liberte-se de travas e de pensamentos limitantes na busca pelo seu estado de excelência”.

Taller de chamán-coach
Para que possam se abrir a um mercado transcultural e transnacional, todas essas organizações se apresentam como difusoras de valores humanistas e de princípios universais. Apesar da utilização de muitos conceitos ultramodernos como ‘empoderamento’ e ‘sinergias’, ou palavras em inglês como coach, evoca-se constantemente a origem indígena e ancestral daquela sabedoria (a questão da identidade, portanto, da identificação como indígena, é chave). Essa identidade é útil no discurso, pois garantirá o caráter verdadeiramente exótico e diferente, distante das superstições de comerciantes pouco sérios, bem como da produção comercial para as massas. O estritamente indígena, tradicional e distante culturalmente seria compreensível e utilizável por indivíduos cosmopolitas, modernos e ocidentais, pois dentro do indígena há sabedoria universal, válida e útil para todo mundo, independentemente da cultura, religião, língua etc.

Outro exemplo de deslocamento de indígenas para difundir uma sabedoria indígena é o caso das Mingas de Bogotá. Trata-se de reuniões bienais organizada pelo Instituto Distrital de Cultura y Turismo, uma instituição pública.

Performance de sabiduría indígena ante las cámaras
Segundo o Instituto, o objetivo é proporcionar um espaço de intercâmbio e de diálogo intercultural e tornar visível [para a população de Bogotá] as sabedorias ancestrais. Como mostra a foto, os rituais religiosos e espirituais têm um lugar preponderante, e o evento atrai os meios de comunicação nacionais. Para os indígenas oriundos de diferentes regiões e distintos países da América, essa é uma oportunidade de entrar em cena e apresentar uma imagem positiva de suas “culturas”. “Minga são histórias de origem, rituais, cantos e danças sagradas, oralidade e memória”, diz um informativo. Para os espectadores locais, é uma oportunidade que não exige grandes deslocamentos e que satisfaz a curiosidade por essas sabedorias milenares. O cidadão local ‘branco’ tem assim várias culturas a sua disposição, como nas épocas das exposições universais, uma forma de museu vivente, mas agora com ênfase no caráter intercultural e no fato de que os indígenas têm realmente algo para acrescentar em nível espiritual. Esses ‘encontros’ me foram mencionados por alguns entrevistados, que os consideram algo muito comovente, um espetáculo muito interessante. Dentro da programação do evento encontramos, por exemplo, “cantos cósmicos das galáxias”, “danças circulares” e “rituais de origem”, atividades que evidentemente utilizam uma linguagem new age e que atraem intelectuais interessados em espiritualidades alternativas.

Ao falar das reinterpretações ‘espiritualizantes’ do indígena, há de se analisar as novas formas de religiosidade e espiritualidade da sociedade colombiana – com efeito, após a já conhecida crise de algumas das instituições, entre as quais a religião católica, contexto em que uma nova ‘espiritualidade’ se vê fortemente influenciada por ideais new age globalizadas. De forma correspondente, alguns indígenas, próximos do contexto urbano moderno e, por isso mesmo, mais visíveis que os que vivem em comunidades rurais, também utilizam expressões desse tipo à medida que são conscientes da recepção positiva desse discurso frente a sociedade.

Os interessados pelo indígena e pelas “outras culturas não ocidentais”, turistas eventuais, integram-se em circuitos de consumo de informação e de objetos cujas fontes são geralmente os Estados Unidos e a Europa. Talvez, por exemplo, tenham lido alguns autores em comum, como Carlos Castañeda (em particular Las Enseñanzas de Don Juan, 1996), Mircea Eliade (especialmente El chamanismo y las técnicas arcaicas del éxtasis, 1994), Gurdjieff, Kardec ou livros do tipo ‘espiritualidade oriental’ (todos escritos em outros países); e tenham visto canais internacionais de televisão, como o Infinito, que transmitem, entre outros programas, documentários de abordagem mística sobre as religiões de outras culturas, como a do antigo Egito, da China ou de xamãs amazônicos, intercalados com programas sobre medicinas alternativas, óvnis e feng-shui.

Tais circuitos de consumo de informação, que poderíamos chamar de áreas de uma vasta rede, são percorridos pelo indivíduo que, seguindo seu imperativo de busca (já mencionada), pode mais tarde sair dessa área de informação e passar a outra. Por exemplo, duas dessas áreas podem ser o tema oriental e o tema indígena; os indivíduos que acessam essas áreas – enquanto consumidores de informação – podem encontrar uma conexão ou ponte entre uma e outra área através de certos elementos comuns, como a espiritualidade ou o conhecimento do ser interior. Certas áreas são mais conhecidas que outras; a oriental ou de “bem-estar e saúde integral” parecem se popularizar cada vez mais. Essas áreas de informação têm vínculos e elementos em comum com o tema da espiritualidade indígena, portanto as primeiras cumprem a função de porta de entrada para a segunda. Os indivíduos interessados por esses temas ‘descobrem’ que as ‘culturas indígenas’ também têm muitos desses conhecimentos, também falam do natural, do equilíbrio das energias e do conhecimento de si mesmo.

Os fluxos transnacionais de informação, canalizados através dos meios de comunicação (televisão, internet, imprensa etc.), bem como os intercâmbios comerciais e as migrações, tiveram um papel determinante na difusão dessa ideia de espiritualidade indígena, imaginada com ideais retiradas frequentemente da literatura new age proveniente sobretudo do Norte. O indígena local foi reinterpretado e readaptado ao pensamento e às necessidades contemporâneas. Como disse Appadurai (2000), os meios veiculam imagens, ideias, oportunidades que “vêm de outros lugares”, e a imaginação local as transforma, criando desejos de consumo e de deslocamento. Ter em conta esses fluxos de informação é essencial para entender o revigorado interesse pelas sabedorias étnicas. A publicidade do turismo é evidentemente um dos fatores que mais contribui para a criação de uma imagem exótica e atrativa dessas culturas locais que se pode visitar. Mas é preciso entender que as empresas de turismo utilizam essa estratégia em primeira instância, pois perceberam que se trata de um bom gancho publicitário, ou seja, há uma população abastada à qual interessam os temas do espiritual e que é sensível à valorização do étnico. Esse interesse, de novo, encontra-se em populações de muitos países ocidentalizados (AMSELLE, 2001; FRIEDMAN, 2003; SARRAZIN, 2011).

OS TURISTAS EM SEU DESLOCAMENTO

Conforme já dito, um dos efeitos desse interesse pela espiritualidade indígena é o deslocamento de indivíduos das classes capitalistas com poder aquisitivo em direção às comunidades indígenas ou campesinas, dentro daquilo que se conhece como turismo cultural, étnico ou místico. A população da qual falo está estreitamente ligada ao tipo ideal (no sentido weberiano) do ‘buscador espiritual’, o qual está presente em outros países da América Latina (ver, por exemplo, DE LA TORRE e ZUÑIGA, 2005).

O turismo, mundialmente, é um setor da economia que adquire cada vez mais importância, e nesse setor se promove o atrativo de conhecer a cultura e a espiritualidade locais (de indígenas, nesse caso). O turismo contribui para a reconstrução e difusão das identidades culturais (BASHKOW, 2004; LÜSERBRINK, 1999), apresentando a espiritualidade como um dos elementos mais interessante das culturas étnicas [3]. Assim, por um lado a construção do indígena espiritual promove o turismo em certos lugares habitados por comunidades indígenas ou campesinas, e, por outro, o turismo cultural constitui uma porta de entrada para despertar a curiosidade em muitas pessoas que nunca haviam se interessado pelo indígena, à medida que alguns desses temas lhes são apresentados em seus percursos ou pela publicidade.

Dois dos principais destinos do turismo étnico na Colômbia são a Sierra Nevada de Santa Marta, ao norte do país, e o departamento do Amazonas, no extremo sul. Em ambos os casos trata-se de lugares afastados da capital, rodeados pela natureza, que não foram exageradamente colonizados. Com efeito, o étnico deve ser associado à natureza, e por isso o turismo ecológico e de aventura se combina bem com o turismo étnico. Um reforça o outro, e ao mesmo tempo se reforça o estereótipo de que o indígena é um ser ‘ecológico’ [4]. Nos dois casos, são propostas visitas às comunidades indígenas, graças às quais seria possível conhecer suas tradições. Inclusive, pode-se dormir em cabanas, supostamente ‘como as dos indígenas’, chamadas malokas, um termo totalmente descontextualizado, que se popularizou com a vulgarização da literatura etnográfica. No Amazonas, uma grande transnacional da hotelaria tem suas malokas à disposição dos turistas brancos e batizou seu luxuoso complexo de Lodge Tikuna, fazendo referência a um nome indígena da região (mas também utilizado em inglês: trata-se de um lodge [pousada]). E se alguém está realmente interessado, poderá “dormir como eles, vestir-se como eles, comer como eles” e obviamente “participar em suas cerimônias e rituais”, os quais são, evidentemente, encenações.

Algumas pessoas de Bogotá vão também ao exterior em busca de experiências místico-esotéricas de origem supostamente étnica. Vão, por exemplo, à Guatemala, a Tikal, ou a Tenochtitlan para meditar e experimentar sensações transcendentais. Ou então vão às Pirâmides do Egito ou ao lago Titicaca, lugares onde seria possível sentir ‘energias especiais’ e uma ‘magia’. Alguém me explicava certa vez que “os indígenas conheciam todos esses fenômenos e, ainda por cima, a civilização dessa zona estava ligada à Atlântida, uma cultura sumamente avançada, também em contato com os extraterrestres”.

Esse fluxo de pessoas deve ser compreendido no marco de um novo interesse da população pelo ‘autêntico’ e de seu desejo por viver experiências ‘novas’. Tudo isso tem efeitos no desenvolvimento das comunidades locais, que se adaptam a esse tipo de turismo.

Nesse tipo de turismo, portanto, é fundamental o processo de definição da identidade e da alteridade. A construção de uma espiritualidade indígena é uma questão de definição do que é indígena, e o interesse do turista se baseia em tal identificação. O que essas pessoas veem é uma versão autêntica da identidade cultural indígena? A maioria dos analistas diria que não. Qualquer especialista pode perceber que são encenações, e essa é uma expressão que tem conotações um tanto negativas; remete a certa falsidade, impostura. Porém, avançando na análise, me pergunto: qual é a verdadeira identidade de um povo ou de uma pessoa? Não estaríamos voltando a uma visão essencialista de cultura? Quem e como se definem as versões autênticas de uma ‘cultura’? As ‘culturas autênticas’ contra as ‘encenadas’ é um debate que se assemelha ao do xamanismo versus neoxamanismo [5]. Pessoalmente me parece perigosa essa diferenciação, à medida que ‘neoxamanismo’ é uma expressão que também tem conotações pejorativas para algumas pessoas. O neoxamanismo seria uma versão não autêntica do xamanismo. O verdadeiro xamanismo seria o ‘tradicional’. Esse argumento ignora a invenção constante da tradição (Cf. HOBSBAWM e RANGER, 1983), ou seja, que o ‘tradicional’ também é uma invenção recente, e pretende dizer que os indígenas e seu xamanismo rural não se modificaram ao longo de séculos, o que é claramente falso. Também se ignora a plasticidade e a mutabilidade de todas as identidades, as quais negociamos permanentemente em função da situação de interação em que nos encontramos. De qualquer forma, o interessante é que as pessoas (como as que chamo de turistas) que acessam essas formas de xamanismo urbano ou de xamanismo na presença de ‘brancos’ não costumam usar o termo neoxamanismo. Elas preferem acreditar que isso que viram e experimentaram é, ao menos em parte, o verdadeiro xamanismo; querem crer que viram um pedaço de ‘tradição milenar’. Elas buscam o autêntico.

CONCLUSÃO

Ao falar de identidades, evidentemente o fazemos desde um ponto construtivista, ou seja,  não entendemos identidades como essências imutáveis que “são ou não são”, e sim como construções históricas cambiantes, com fronteiras negociáveis e difusas em certos casos (cf. BARTH, 1998). Assim, “ser indígena” não é algo que o investigador estabelece, e sim uma definição emic [6] que emana dos próprios grupos.

Além disso, não podemos esquecer que a modernidade, e em particular a hipermodernidade (LIPOVETSKY e SERROY, 2008), produziu simultaneamente uma crise e uma exacerbação das identidades:

Por um lado, há uma perda de referentes identitários nas sociedades ocidentais ou ocidentalizadas (ver por exemplo, LIPOVETSKY, 1983; SCHNAPPER, 1993). Os indivíduos encontram-se em busca de elementos simbólicos que lhes permitam dar sentido a suas vidas e construir uma identidade pessoal. Frente a essa demanda, as ‘culturas étnicas’ são vistas como fontes de experiências enriquecedoras para o indivíduo moderno, e frequentemente se assume que é possível extrair da diversidade étnico-cultural uma espécie de fundo de sabedoria universal, que seria compreensível, aplicável e benéfica para a ‘realização pessoal’ de todo ser humano. É nesse contexto que se desenvolve o turismo cultural, étnico e místico.

Por outro lado, o pensamento dominante, pluralista e multiculturalista, permitiu a reivindicação das identidades, sejam elas locais, tradicionais, marginalizadas, ‘subalternas’, como os homossexuais, as negritudes, as mulheres ou, no que nos concerne aqui, os grupos étnicos. Estes, graças à discriminação positiva (ou positive action, nos Estados Unidos), gozam de privilégios tanto legais como materiais, políticos e simbólicos, já que o indígena é visto de maneira positiva ao menos por parte das classes médias e altas. Isso impulsionou o desejo de constituir e mostrar uma identidade étnica baseada em referentes globalizados, permitindo também a construção de organizações e empresas que, com o lema de uma espiritualidade local, se constroem através de contatos e intercâmbios que transcendem as fronteiras nacionais.

 

*Artigo apresentado no IV Congreso de la Red Internacional de Migración y Desarrollo. FLACSO, Equador.

[1] Podemos tomar a definição de turismo cultural como uma prática motivada por “um desejo de ampliar os horizontes pessoais, buscar conhecimentos e emoções […] um desejo do outro” (Origet du Cluzeau, 2000, p. 3. [Tradução para o português a partir da tradução para o espanhol feita pelo autor]).

[2] Yajé ou Ayahuasca, como é mais conhecida no Brasil, é uma bebida psicoativa tomada em rituais indígenas tradicionais, na Igreja do Santo Daime e em associações como a União do Vegetal. A entrada da indianidade latino-americana no movimento new age é algo que Galinier e Molinié (2006) relataram. Ademais, como assinalam os autores, muitos dos termos utilizados por esses indígenas em suas encenações são emprestados da produção de antropólogos e historiadores.

[3] Sobre a utilização do espiritual ou religioso pelo turismo transnacional como gancho publicitário, em particular para a venda de uma imagem atrativa de povos da África, ver Anne Doquet (2002) e Meyran (2005).

 

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JEAN PAUL SARRAZIN, PhD é professor e pesquisador no Departamento de Sociologia da Universidade de Antioquia, Colômbia.

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