Despertando a História Antiga:
Laura Erber leitora de Alejandra Pizarnik
Luciana di Leone
ensaio sobre a instalação História Antiga
obra de Laura Erber, 2008.
Em 1972, a poeta argentina, Alejandra Pizarnik ingere uma extrema dose de soníferos que lhe causam a morte. Depois desse gesto, parecia quase natural que grande parte da crítica literária o repetisse conceitualmente ao comentar o tom lúgubre e a sina fúnebre dessa poesia e, principalmente, da vida de Alejandra.
É verdade que o vínculo com a morte se estabelece tanto na poesia de Pizarnik, quanto em seus textos críticos e diários. É verdade também que, uma e outra vez, esse vínculo é remetido aos poetas malditos que Alejandra lia e admirava. É ainda verdade, ao menos numa leitura superficial, que seus poemas são monotemáticos – e, por esse motivo, entre outros, altamente poderosos – insistindo num mesmo paradigma semântico de larga tradição poética que se repete como um catálogo fechado desde o começo: noite, silêncio, medo, e todo um leque de palavras relacionado à morte aparecem uma e outra vez. Árbol de Diana, de 1962, é emblemático, com poemas de pouquíssimos versos, concisos, quase aforísticos: “en la noche/ un espejo para la pequeña muerta/ un espejo de cenizas”.
Tais insistências permitiram que a crítica e muitos de seus leitores aceitassem como chave explicativa da sua poesia o evento central da construção do mito Pizarnik: o suicídio. E, além disso, permitiram atar, sem questionar as mediações entre a mão que escreve e a voz que emerge no texto, a vida da poeta às figuras do sujeito presentes na poesia. Assim, Alejandra Pizarnik passou a ser plenamente identificada com la pequeña náufraga, la novia del viento, la niña muda, etc. Como afirma César Aira, “Pizarnik não poupou metáforas autobiográficas, mas isso não é desculpa para usá-las contra ela, sobretudo porque fazendo-o se está confundindo a poesia já feita e a poesia em vias de se fazer”. Aira sugere portanto uma outra atitude de leitura: não devemos usar as metáforas mortuárias contra Alejandra, isto é, nãodevemos ler segundo as suas diretrizes, mas a contra-pelo. Procurar os traços vitais, que não são poucos, na pequena morta. Pois os poemas não falam apenas de morte e, se lidos com intenções menos lúgubres, escapam do destino suicida e da autopsia feita pela crítica:
la pequeña viajera
moría explicando su muerte
sabios animales nostálgicos
visitaban su cuerpo caliente
Como ler, então, por outra via, Alejandra Pizarnik, e sua imagem hoje canonizada? Será na leitura que seus poemas podem se abrir a outros sentidos e outras formas, tal como ela mesma propunha em um texto sobre a poesia surrealista: “Únicamente el lector puede terminar el poema inacabado, rescatar sus múltiples sentidos, agregarle otros nuevos. Terminar equivale, aquí, a dar vida nuevamente, a re-crear”. “As obras do passado podem ficar adormecidas, deixar de ser obras de arte; podem despertar e adotar nova vida de diversos modos”. Jacques Rancière define dessa forma uma ética da leitura e a escritura ao se trabalhar com a tradição, com obras herdadas.
Laura Erber em suas obras – desde seu Diário do Sertão (2003), que deforma e desfaz a imagem estereotipada daquele lugar consagrado por Guimarães Rosa – parece se propor a tarefa de convocar imagens estereotipadas para re-trabalhar sobre elas, abrindo-as a outras possibilidades de percepção. Assim, se as obras do passado podem dormir ou despertar nas mãos de novos artistas, Laura Erber – cujo primeiro livro de poemas, talvez não por acaso, chama-se Insones – também procurou acordar a morta argentina Alejandra Pizarnik em uma vídeoinstalação de 2005 intitulada Historia antiga.
Historia antiga toma seu título de um poema de Pizarnik. Trata-se de um livro virgem, em branco, que o espectador pode tocar e até mesmo virar as páginas; mas o livro também serve de superfície de projeção para imagens que são projetadas do alto. A seqüência de imagens mostra a agonia de um peixe vermelho, que se agita tentando respirar. O animal agoniza por ter sido colocado – delicadamente, por mãos brancas que a imagem não esconde –
sobre o livro seco e aberto das obras completas de Alejandra Pizarnik. Assim, por baixo do pequeno corpo vermelho e brilhante que convulsiona não podendo respirar apesar do ar que o rodeia, o espectador poderá ler títulos de poemas da argentina: “El infierno musical”, “Historia antigua”, etc. Peixe e poema conformam uma experiência-limite, de tensões entre a beleza e a crueldade, entre a vida e a morte.
Quando peixe e espectador – que, embora podendo mudar a página com as suas mãos, não poderá retirar a imagem do peixe agonizante do livro na sua frente – estão exaustos, a água começa a cobrir as páginas. O peixe nada, agora, mergulhado pela mesma mão. Finalmente surge um meio habitável e respirável, embora sob a condição de deformar os poemas de Pizarnik, que ainda transparecem, mas se deformando pela umidade e as mínimas ondas.
O poema de Pizarnik, com sua atmosfera de dispnéia, começa a respirar com um outro sistema, e as cores vivas invadem a palavra impressa em branco e preto. O trabalho de Laura se apresenta como um modo de ultrapassar a condição imóvel do paradigma fechado da poesia de Alejandra. O poema deformado pela água é um novo poema, uma tradição molhada, acordada sem dogmatismos. Esta História Antiga de Laura, usa a “Historia antigua” de Alejandra, devolvendo ao uso esses poemas que a crítica canonizara como relíquias da menina morta. Não por acaso Laura toma poemas do livro “Los trabajos y las noches”, que fala já desde o título da conjunção entre o fazer – vivo, vitalizante – e a tradição de palavras tristes; como se morte e silêncio, e com eles o suicídio de Alejandra, fossem não apenas significantes anquilosados, mas também elementos a serem usados e remexidos.
Alejandra e seus poemas, com o peixe, adquirem nova vida. Vivem e escorregam.
Sempre será difícil segurar um peixe vivo com imagens, com palavras, ou com as próprias mãos.
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LAURA ERBER é artista visual e escritora. Sua prática artística vem se caracterizando pelo constante trânsito entre linguagens com ênfase na renegociação das fronteiras entre matéria visual e formas verbais. Vive e trabalha no Rio de Janeiro.
LUCIANA DI LEONE nasceu em Buenos Aires em 1980. Formou-se em Letras pela UBA. Em 2005, mudou-se para o Rio de Janeiro para fazer o mestrado em Literatura Brasileira na UERJ. Atualmente cursa o doutorado em Literatura Comparada na UFF e pesquisa poesia contemporânea.
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