Hino dos Vencedores
Cadu
Sempre fui atraído por condições de existência em que prevalecessem estruturas de conduta muito simples, com posturas claras a serem adotadas, e que lidassem exclusivamente com os fatos essenciais da vida. Monastérios, regimes espartanos e viagens migratórias me parecem excelentes formas de assegurar tais condições. Pensando no interior de minha prática artística, em quais projetos procurei aproximar-me destes valores? Creio que é possível identificar estratégias criadoras desta natureza em toda a minha produção. Lido constantemente com desenvolvimento, eleição ou desconstrução de sistemas. Eles podem adquirir a forma de aparatos mecânicos, jogos, condutas restritivas, ou qualquer outra cadência de operações que lidem com a repetição, a incorporação de regras e a percepção de padrões no tempo.
Algumas atividades seculares encontraram atualização na História sob a forma de jogo. Sua grande maioria deriva de cerimoniais sacros, de rituais oraculares, de disputas de poder entre os deuses. O ato sagrado advém da conjunção de um mito, que narra com um rito que o põe em cena e em prática. O jogo ocorre quando só há metade desta operação. O que de certo modo devolve ao humano algo do sagrado, sem desvincular-se completamente de si. Deste modo abre-se espaço para as abstrações e subversões lúdicas fundamentais no processo de criação do conhecimento e, especialmente, nos processos criadores da arte. Ao contrário, desaprendemos a utilizar o jogo como meio de profanação no sentido proposto por Agamben. Perdemos a possibilidade de constituição de qualquer liturgia que não esteja baseada na diversão e no consumo. A loteria condensa muito bem essa ideia; é uma atividade adivinhatória que se encaminha na direção dual da esperança de alteração de um estado e de possibilidade de obtenção de êxito. O vencedor (escolhido) continua a habitar a terra. Porém, agraciado pelos deuses, o faz em meio à fortuna. O resultado é quase o estabelecimento de um culto. O modo como esta prática enraizou-se em nossa cultura assusta e fascina. Encontramos sua perpetuação ou desdobramentos na infinidade de jogos televisivos de azar, ou de eleição por conduta, que, se não produz milionários, ao menos gera semideuses em mesma velocidade. Em A Loteria na Babilônia[1], Borges fabula de que modo esta atividade pode dominar uma sociedade inteira à medida que o jogo incorpora traços mais desviados do caráter humano, como: o risco, a vergonha, a morte. Há um prazer suicida presente num povo em entregar sua existência às inclinações aleatórias de um jogo, tornando-o uma ciranda de desgraças e recompensas a girar em paralelo à própria vida.
Um marco desta atividade deu-se em 2008, pela celebração de 1000 jogos da Mega Sena, a loteria mais cara nacionalmente e que realizaria a felicidade de 1000 indivíduos. Não resisti à possibilidade de comentar este evento através de uma peça. Ela só foi possível por minha familiaridade e atração pela aleatoriedade e pela determinação, que encontro ao debruçar-me sobre sistemas. Sou capaz de retroceder racionalmente à breve história da automação e da criação dos primeiros computadores, para perceber que ambos os processos são consequências do registro de dados em cartões perfurados. Isso é perceptível pela bitola, pelo tamanho e pela distância dos furos.
A data serviu como ponto de partida para a criação de uma melodia, alcançada através do sequenciamento dos números vencedores da primeira à milésima premiação. O projeto foi possível pela coincidência entre o tamanho do cartão de apostas e a bitola da partitura de uma caixa de música criada no Japão na década de 60. Passando pelas engrenagens do instrumento, os boletos perfurados com a combinação de seis números constituíam-se uma frase sonora. Cada furo correspondia à posição exata de uma nota. Emendando a quantidade necessária de cartões para se ter uma centena de jogos em uma única tira, estabeleceu-se o que foi considerado um volume, de uma coleção de dez, entre o primeiro e o milésimo jogo.
Foram perfurados e colados 6000 números para constituir as partituras das caixas de música e os 10 desenhos que também compõe a obra. Para sua confecção contei com furador de couro, martelo, pinça e cola. Ao ultrapassar o desconforto inicial da atividade, enquanto o atrito entre os materiais se dava, um estranho estado perceptual impunha-se. Talvez pela presença do som, até certo ponto mântrico, alcançava a concentração extrema. Minhas mãos trabalhavam autonomamente, em proporção ao afastamento de minha mente da atividade. Realizava uma operação monótona e repetitiva, que exigia atenção, mas ao mesmo tempo, devido à ausência de mudanças, era convidado ao devaneio e à introspecção.
Nestes momentos, surge a possibilidade de que o significado perseguido nestes gestos não esteja apenas em sua finalidade primeira, mas também no que pode ser descoberto ao transcendê-los. Não sabia estar executando uma ideia, ou prospectando outras. Provavelmente ambos. Trabalhos novos surgem de trabalhos em processo, que obviamente necessitam de atenção e devem ser gestados com cuidado. Mas só quando esquecemos a finalidade pela qual os iniciamos é que estamos aptos a perceber o que há dobrado sobre eles mesmos. Esses níveis de inversão alimentam o gesto criador, porque subvertem a objetividade e inauguram campos, sobretudo para o processo e para uma qualidade oculta-sedutora; de que as coisas já estão de certa forma ditas, transparentes e como fontes de contentamento. Tanto em suas execuções perfeitas, quanto em suas não realizações ou colapsos. O que nem sempre estamos aptos é a percebê-las como tais. “Todo o desejo é velado”[2], alguém me disse uma vez.
Há uma lenda judaica que diz que Deus escreveu as leis na tábua sagrada utilizando dois fogos, um branco e um negro. Com o fogo negro foram escritas as palavras, com o fogo branco foram escritos os espaços entre as letras, que possibilitaram a leitura das palavras. Durante sete mil anos o homem lerá as palavras escritas em preto, mas nos próximos sete mil anos o homem aprenderá a ler os espaços em branco. De um lado o mundo inteligível, aparente; do outro uma linguagem amorfa e latente, aguardando por manipulação. Devemos borrar estes limites, exercer superposições, conjunções, trocas entre dados da racionalidade e da imaginabilidade. A criação nasce desta natureza de atritos.
Ao final, talvez os melancólicos sons estabelecidos pelo acaso nesta obra conforte não os antecipadores das seis dezenas, mas a grande maioria de nós, que não nascemos sob os olhos da deusa Fortuna. Mas que escapamos, momentaneamente, da gravidade e mantemos a esperança viva. Perseguimos aquilo que não depende dela. O mistério da beleza e do sagrado dissimulados nos eventos corriqueiros da existência.
[1] BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Página 53.
[2] Murad em discussão durante curso.
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CADU é artista e professor na PUC Rio e da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Mais informações podem ser obtidas no website da Galeria Vermelho.
O trabalho “Hino dos Vencedores” foi selecionado pela curadoria da 30a Bienal de São Paulo em 2012 e teve uma versão pensada exclusivamente para a mostra, em que utilizava os 100 primeiros jogos de 5 loterias diferentes patrocinadas pela Caixa Econômica Federal. Nesta oportunidade foram ampliadas as camadas de som. Utilizando outros tipos de loterias, com números sorteados inferiores ou superiores às 6 dezenas encontradas na Mega Sena, foi possível a criação de melodias mais complexas.
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