Escorrega, desliza, rasteja e cai?
Kátia Leite Mansur
As ações que dão título a este texto bem que poderiam ser utilizadas para descrever atividades de treinamento físico. Mas, estes verbos relacionam-se a diferentes ações de movimentação de materiais geológicos, como rochas, solos e sedimentos, quando submetidos à ação da gravidade. São chamados de Movimentos de Massa. Cada qual tem uma razão, uma magnitude e um momento para ocorrer.
São classificados segundo o tipo de material que se desloca e do movimento realizado, considerando-se ainda a velocidade da ocorrência. Assim, lentos rastejamentos de solos diferem dos movimentos rápidos, chamados deslizamentos, ou das quedas de blocos rochosos. Refletem o comportamento de tais materiais segundo suas características intrínsecas e, especialmente, a eventos externos, causados pela interação do sistema do clima da Terra com as rochas. Estas foram geradas pelas forças endógenas do nosso planeta, produzidas pelo lento e inexorável deslocamento das placas tectônicas e, também, por aquelas modificações sofridas na superfície.
Trata-se de uma questão de estabilidade: rochas e minerais formados em profundidade, em condições de pressão e temperatura muito diversas daquelas reinantes na superfície do nosso planeta, entram em desequilíbrio quando expostas a estas novas condições e transformam-se. O produto desta transformação por ação das intempéries é, então, chamado de intemperismo. O intemperismo desagrega química e/ou fisicamente as rochas, deixando-as mais frágeis para a erosão e o transporte por fluidos, como água, gelo e ar. Alguns movimentos de transporte são lentos, quase imperceptíveis e outros são rápidos e catastróficos.
Assim, os movimentos de massa são influenciados pelo tipo de material existente, declividade e estabilidade das encostas, além do conteúdo de fluidos. Nem sempre estão associados a chuvas intensas. Podem ser detonados por abalos sísmicos e, mesmo, erupções vulcânicas. Na Colômbia, por exemplo, uma erupção explosiva do vulcão Nevado Del Ruiz, em 1985, destruiu a cidade de Armero e vitimou cerca de 28.700 pessoas (mais de 23 mil mortos), a partir de um fluxo de lamas que se deslocou por mais de 100 km de extensão. O calor intenso do fluxo quente e pleno de fragmentos vulcânicos provocou o derretimento das geleiras existentes na cratera e a água se misturou ao material vulcânico inconsolidado presente na encosta.
No Brasil – e também em diversos outros países – com a chegada do verão, as chuvas intensas sobre nossas cidades, instaladas em locais nem sempre adequados, fazem com que os vários termos aplicados a estes movimentos gravitacionais juntem-se em um único nome: desastre. No entanto, quando ocorrem em locais sem ocupação humana, como parques e áreas de difícil acesso, não chamam a atenção.
“Minha filha, nunca vi chuva tão forte em toda a minha vida!”, relatou minha mãe, moradora de Nova Friburgo, do alto dos seus 80 anos, ao se referir àquela chuva do dia 11 para 12 de janeiro de 2011. Ela tinha razão, os sistemas de medição do clima indicaram que de novembro de 2010 até meados de janeiro de 2011 o volume de chuva acumulado foi de 1.220 mm, quando a média anual de chuva na cidade é de 1.246 mm. Só naquela noite Nova Friburgo registrou precipitação pluviométrica de 182 mm, o que significa que recebeu a incrível quantidade de 182 litros de água por metro quadrado do terreno. Ou seja, durante dois meses e meio a água vinha se acumulando por infiltração no subsolo e, repentinamente, uma grande quantidade de água chegou para desequilibrar este sistema que já vinha se instabilizando lentamente.
Neste ponto vale inserir parênteses para citar o estratígrafo Derek V. Ager no seu livro “The nature of the stratigraphical record”, cuja primeira edição é de 1973: “…the history of any part of the Earth, like the life of a soldier consists of long periods of boredom and short periods of terror”. Ou seja, eventos contínuos e lentos podem ser repentinamente intercruzados com fenômenos devastadores e rápidos. E em termos de tempo geológico, ou tempo profundo, isto pode ser contado em milhares, milhões e/ou bilhões de anos, seguidos de uma brusca e repentina mudança. Basta lembrarmos a súbita extinção dos grandes dinossauros no final do Cretáceo.
E no caso dos movimentos de massa? Isto pode ser aplicado? Podemos dizer que sim. Situação com esta magnitude de 2011 não foi observada em tempos históricos na Região Serrana, apesar de a área exibir depósitos comprobatórios de ocorrências de movimentos de massa expressivos no tempo geológico. Vale lembrar que a ocupação da região se deu a partir da chegada da família real portuguesa em 1808. Somente 200 anos! Um flash, se comparados ao tempo dos lentos eventos geológicos.
Convido o leitor a observar a imagem de satélite disponível na página da internet do Google Earth para aquele janeiro de 2011 (a opção sugerida é buscar a cidade de Nova Friburgo e, daí, clicar em Visualizar -> Imagens Históricas e mover o cursor até a imagem disponível para 28 de janeiro de 2011). A distribuição dos movimentos de massa (de rocha, de solo e de rocha e solo) é muito clara para o observador atento. Eles estão organizados num padrão ortogonal, o mesmo das estruturas geológicas da região.
Explicando: as cicatrizes mostram o “caminho” que vem sendo tomado pela evolução da morfologia do terreno no tempo. A água da chuva encontra seu caminho de infiltração nas zonas de fraqueza das rochas e ensopa os poros entre os grãos minerais formadores dos solos e entre as paredes das fraturas na rocha. A pressão provocada pela presença de tanta água supera as forças que mantêm coesos os materiais. A gravidade completa o quadro e o conjunto se movimenta para baixo em um fluxo onde lama e rocha, ou somente lama, ou somente rocha, passam a ocupar um local abaixo daquele em que estavam instantes antes. Isto vai se repetindo no tempo: pequenos movimentos por ano e alguns bastante grandes e importantes em intervalos maiores.
Vamos analisar esta situação por outro ângulo: pela avaliação da paisagem do Rio de Janeiro, a nossa Cidade Maravilhosa. O relevo que encanta os visitantes, desde o relato dos naturalistas no Século XIX até os turistas de hoje, vem sendo moldado por sucessivos movimentos de rocha e solo. A formação do Pão de Açúcar, do Corcovado, da Pedra da Gávea, do Morro Dois Irmãos e da Serra do Mar que emoldura o fundo da Baía de Guanabara, entre outros, é fruto desta lenta evolução. Rochas com mais de 500 milhões de anos, formadas em grandes profundidades hoje estão expostas na superfície.
Um passeio pela área litorânea mostra montanhas de rocha mergulhando no mar junto a grandes blocos arredondados e lascas gigantes desprendidas do maciço. Isto nos remete a imagens de áreas devastadas no passado e mostram com clareza esta evolução.
A geologia nos manda um recado: a paisagem é fruto da lenta interação do clima e das rochas. Mas, repentinamente, pode seguir seu ciclo geológico por meio de rápidos e catastróficos eventos.
Feias cicatrizes foram escondidas pelo crescimento da vegetação… Foram apagadas da memória coletiva pela passagem do tempo e pelo clima que gera a verde cortina tropical. A maior parte destes movimentos aconteceu muito antes da ocupação europeia… No Rio de Janeiro, a paisagem, união de cidade, pessoas e natureza exuberante, foi reconhecida pela UNESCO em 2012 como Patrimônio da Humanidade na categoria de Paisagem Cultural. Nada mais justo!
A cidade cresceu, subiu as encostas abraçando os morros e desafiando a gravidade. Tem sobrevivido assim, apesar de tensos momentos de pavor, entre longos momentos de lenta e tediosa evolução, parafraseando D.V. Eger.
Por ironia, o “feio” é o caminho para o “belo”; e o evento poderoso de deslocamento gravitacional de milhares de toneladas de pedras hoje se traduz em monumentos rochosos caprichosamente arrumados e com equilíbrio delicado. Enchem nossos olhos com sua mais pura beleza estética.
José Newton já dizia: “Se subiu tem que descer”
(Raul Seixas)
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KÁTIA LEITE MANSUR, geóloga, professora do Departamento de Geologia da UFRJ e vice-diretora do Museu da Geodiversidade da UFRJ.
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