A obra de arte na era de sua reprodutibilidade turística*
Alexandre Sá
“O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta.”
Michel Foucault
Ao decidir fazer o Mestrado em Linguagens Visuais, sabia desde o começo que deveria desenvolver uma pesquisa que conseguisse gradativamente envolver uma questão teórica específica que abarcasse meu trabalho poético e que conseguisse auxiliar de certa forma, na continuidade deste e em sua fundamentação. Ao longo dos dois anos (junto com as aulas e as leituras), fui detectando uma série de questões que traziam mudanças consideráveis no legado benjaminiano, como por exemplo, a equiparação do valor de culto ao valor de exposição, a diluição da aura (tida como sinônimo de distância religiosa e existência única), o surgimento de uma aura outra (que paradoxalmente mantinha-se amparada na capacidade de exposição de uma determinada imagem), a potencialização do desejo utópico de eternidade, a diminuição considerável do ritual (que ainda assim, consegue sobreviver em alguns momentos muito específicos) e a presença incontestável de uma sensação de esvaziamento estético que é fruto de uma onipresença entrópica. Tais diferenças também englobam um aumento na velocidade e na quantidade de produção das imagens, além de um desejo de captura de realidades que sejam exóticas e distantes o suficiente para que provoquem um efeito potente no observador. Estas imagens, consideravelmente distantes, têm por objetivo a produção de um tipo de prazer ao serem observadas, ao deixarem-se invadir pelo olhar atento e não menos curioso do público, ávido por mais e mais imagens; num movimento cíclico e obviamente sem fim.
Mas se então estamos num momento de ultrapassagem desta reprodutibilidade técnica, onde a própria imagem se descobre dentro de um novo processo, como denominá-la? Como definir um momento onde o quê ocorre de fato, é um giro, uma mudança de grau na própria estética veiculada por esta imagem técnica? Como denominar um momento de trânsito incansável onde o deslocamento é regra e onde o prazer parece surgir como a mais forte justificativa? Como fundamentar uma experiência estética que parece ser estabelecida numa relação oblíqua de distância, aproximação e estranhamento? Escolhi então o termo turístico. E por chamar este momento de reprodutibilidade turística. Onde, mesmo sendo a técnica o eixo primeiro e fundamental, o quê se presentifica é a efemeridade do registro, a perecibilidade da experiência provocada e a ligeira certeza de que todas as coisas parecem satisfeitas quando banhadas em sua mais recôndita superficialidade. E se o turismo se baseia fundamentalmente na visita do desconhecido (ou daquilo que ainda lhe resta), no mergulho em elementos “pictográficos” que abarquem um determinado local, optei então para iniciar esta “viagem” através da hipótese de que hoje a público se situa no mesmo eixo que o estrangeiro (pois quando não especializado, desconhece grande parte dos códigos inerentes) e a obra, compreendida como metáfora do universo da cidade desconhecida a ser visitada / desvendada.
PORQUÊS TURÍSTICOS
Mas por que falarmos aqui de turismo? Porque sabemos que estamos vivendo numa época onde o hedonismo torna-se cada vez mais presente e o turismo é um dos elementos que satisfaz tal hedonismo. Além disso, podemos considerar a experiência turística como uma experiência também estética, pois se refere a sensibilidade, a recepção e a busca de uma experiência artística. O turista está à procura de sensações que estejam fora de todo o interesse utilitário e realiza suas experiências por prazer, para “ter” tais experiências, possuí-las e aproveitá-las da melhor maneira possível. [1]
“O quê é procurado no turismo é a distração, a evasão, a diversão, a sensação, o prazer : todas as coisas que se arrumam sob a rubrica prática do exotismo. O exotismo permite a fuga do cotidiano e de suas violências, de se desorientar. Ele deve permitir também a realização de encontros: encontro com outros homens, com outros hábitos, com outras maneiras de pensar e sentir. Com determinadas precauções e dentro das condições que proporcionam o encontro sem perigo, que amortecem o choque com o estranho. Através do exotismo, o turista procura o outro que não ele mesmo, de identidades diferentes da sua, onde o encontro lhe confere o sentimento de sair de si, deixando-o assim crer que ele sabe melhor aquilo que ele é.” [2]
O turista vive sob a égide do movimento incessante, sobre o prazer (na maioria esmagadora dos casos, amparado por descompassos econômicos) do descompromisso diante daquele que visita, para que assim possa, ao fim de sua viagem, descobrir melhor o que vem a ser ele mesmo e o outro. Uma das diferenças fundamentais entre o turista e o flâneur (produto direto da modernidade e de Baudelaire) é que o primeiro joga muito menos com o acaso, com a observação dos movimentos de passagem, embora ele possa obviamente experimentar acontecimentos casuais que aconteçam ao longo de sua viagem. O flâneur goza através dos vestígios, tentando decifrar o que a paisagem labiríntica e impenetrável tem para lhe oferecer [3]. O flâneur perde-se na massa, é o que está no centro do mundo – na multidão – e o que está, ao mesmo tempo, protegido, dissimulando-se, ao abrigo dos olhares. Seu desejo é dialético. Seu objetivo é aproximar-se daquilo que lhe escapa continuamente, fazendo com que assim persiga o alvo sem cessar. Seu alvo são as pequenas relíquias que a paisagem pode lhe oferecer para que, de alguma maneira, consiga anestesiar sua solidão inerente. “O flâneur procura um refúgio na multidão. A multidão é o véu, através do qual a vida familiar se move para o flâneur, em fantasmagoria”. [4]
O turista por sua vez, tem objetivos mais claros e alvos mais diretos. Seu objetivo não é o de sumir na multidão, mas simplesmente de conseguir observá-la de fora, como se através de uma vitrine. O turista sabe que jamais fará parte da sociedade a qual visita (embora em alguns casos seja movido por este desejo utópico). Tal distância é desejada para que assim consiga discernir melhor o que define os dois pólos (visitante e visitado). Seu repertório é ausência de um comprometimento diante do futuro. O turista de massa esbarra, tropeça em novas paisagens, em outras personagens exóticas e inimagináveis. Por outro lado, seu “outro” e seu “outro-lugar” estão sempre a serviço dele próprio. É importante que ele “se sinta em casa” para que possa mais tarde, caso deseje, retornar ao local visitado e assim auxiliar na movimentação de capital, mesmo que para isto a cidade tenha que usar os mais diversos recursos para então propiciar as mais estranhas ilusões. Há no turismo algo de construção involuntária que é bastante interessante, pois dentro de uma época de consumo de massas, tudo de uma cidade deve estar preparado para servir de base a este encontro com o estrangeiro. E obviamente, a ficção pode também fazer parte deste jogo.
A OBRA COMO CIDADE
O movimento turístico se sustenta pela separação semântica intransponível e pela distância absoluta entre aquele que visita e aquele que é visitado. Que pelo exotismo do ambiente e de seu conteúdo, projeta uma imagem ‘monumentalizada’ do outro (sempre do outro), mantendo-se o mesmo, em eterno processo de reverberação. Se pensarmos que a cidade é a construção de uma realidade não-natural, em virtude dos seus desejos de comunicação, fruto da produção humana, e composta por uma trama inesgotável de signos e variações estéticas, poderemos então aproximar a imagem da cidade da própria imagem da obra de arte. A obra como cidade, em imagem de construção e desconstrução.
Ou como nos diz G.C. Argan:
“Não é difícil compreender como, para todas as correntes artísticas de vanguarda, a problemática do objeto de arte, aliás do objeto simplesmente, se tenha estendido à cidade: a cidade está para a sociedade assim como objeto está para o indivíduo. A sociedade se reconhece na cidade como o indivíduo no objeto; a cidade portanto é um objeto de uso coletivo. Não só isso, a cidade também é identificável com a arte porquanto resulta objetivamente da convergência de todas as técnicas artísticas na formação de um ambiente tanto mais vital quanto mais rico em valores estéticos. Quando se fala em crise da arte, fala-se na realidade, em crise da cidade; e a crise da cidade é um dos fenômenos mais graves e perigosos do mundo moderno.” [5]
Podemos também pensar que o quê monumentaliza a obra é a visita / viagem esporádica daquele que é estrangeiro à sua poética. Ou seja, o público. Seria então este fluxo transitório de “forasteiros” que tornaria possível um refluxo diante do esvaziamento da condição da obra, do próprio artista e da história? Seriam a velocidade e a quantidade da exposição deste trânsito entre público e obra, os responsáveis pela instauração de uma nova sensação de obra e de presença?
Será que em tempos de marketing inevitável, de grandes exposições midiáticas, de museus-armazéns, um dos fatores responsáveis pela consolidação da obra como tal, é (além de outros elementos sistêmicos) o olhar daquele que a desconhece de fato (exatamente por ser estrangeiro à poética da mesma) e que, em certas ocasiões, visita-a por curiosidade? Ou seja, o público (a audiência) como turista, em afã de pesquisa de campo direcionado à experiência estética?
A REPRODUTIBILIDADE TURÍSTICA. TENTATIVAS INGÊNUAS DE CAPTURÁ-LA
“Estamos aqui deslocados da mesma maneira que fotógrafos, turistas voyeurísticos em mundos representados sobre os nossos pés.” [6]
O que chamo de era da reprodutibilidade turística é um momento onde a imagem (mesmo que saibamos que seja esta sua sina) utiliza os mais diversos recursos para a produção de uma força visual arrebatadora e não menos violenta. Onde por vezes o caminho escolhido é o da explicitação representativa de sua superfície esquelética e nada além disto. O alvo desta imagem é o estranhamento, o fetiche do exótico e do distante através de um método de pseudo-aproximação que satisfaça ao espectador. A superficialidade desta era é a comunicação imediata, direta, sedutora, sem nenhum mistério e sem nenhuma reflexão. Sagaz, veloz e certeira; são estas suas características. Arrebatamento; é este seu método de catequização. Dissipar; é este seu verbo. Cobiçar mais e mais mercadorias; é esta sua linha de ação.
Por outro lado, é um momento de absoluta velocidade na comunicação, na transmissão de dados, nos contatos entre pessoas e entre países. De rizomas e hipertextos. É um momento onde pela quantidade enorme de dados em trânsito, geralmente nos sentimos perdidos. É uma era de acessibilidade, de diluição de fronteiras e de expansão de territórios. É um momento de intenso deslocamento e de pouco estabelecimento. Momento de destruição de tabus, de transformação de valores estéticos e morais.A imagem é o eixo norteador da reprodutibilidade turística pois é precisa em sua superfície, fácil de imprimir-se na memória e repleta de vontade de potência. “Agora as imagens, que são o passado da realidade, começam a revelarem-se em direção a duração, o tempo presente da experiência espacial imediata.” [7]
Além disso, podemos detectar também um aumento inevitável da perda de naturalidade, um inelutável hábito de imitação de si mesmo que parecem comuns. Basta pensarmos na fotografia digital (e na quantidade cada vez mais surpreendente de máquinas deste tipo, presentes inclusive em telefones celulares) e na internet, onde o papel é eliminado e a imagem se estabelece por meios virtuais. Ou melhor, onde a imagem aproxima-se mais daquilo que deseja: virtualidade. A fotografia digital termina diminuindo os custos, possibilitando o aumento da produção destas imagens. E se tais imagens aumentam, o processo de captura de tais fotos também aumenta. Aumenta também uma carga de inautenticidade, além de um desejo constante de tornar-se todo-imagem, bem como a experiência da morte (afinal toda fotografia implica num ato de objetivar o seu sujeito) e da desertificação de si próprio.
Se pensarmos ainda que vivemos numa época a qual Deleuze se refere como sociedade de controle, que seria um desdobramento da sociedade disciplinar bastante discutida por Michel Foucault, fundamentaremos ainda a importância desta imagem na reprodutibilidade turística, já que a sociedade de controle é uma sociedade de vigilância intermitente que utiliza como um dos seus vários métodos, o elemento imagético como meio de policiamento e de indução de significância. Este tipo de sociedade tem como estratégia fundamental o esvaziamento da imagem como poética e o preenchimento da imagem como fonte de informação, deslocando-a de sua função, fazendo com que a compreendamos como a própria expressão dos acontecimentos. A era da reprodutibilidade turística faz-se valer disso, onde a imagem antes mesmo de detectar uma informação a ser veiculada, quer se auto-afirmar como um olhar onipresente de vigilância incansável.
REFLUXOS
Contudo, é necessário esclarecer que não há aqui nenhum desejo de negação absoluta da imagem. Muito pelo contrário. Nosso desejo é o de detectar problemáticas que auxiliem na descoberta de outros fluxos. Temos consciência de que as imagens são fundamentais para o processo de auto-conhecimento de uma cultura dentro de uma determinada época e os artistas hoje, procuram fazer com que ela seja um instrumento a ser utilizado a favor de suas respectivas práticas artísticas. [8]
Relembrando ainda Walter Benjamin, “A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida” [9].O emblema (ao avesso, como antídoto) da reprodutibilidade turística então se revela: reproduzir-se, copiar-se, descobrir-se passível de investimento, gerar capital, aprimorar eternamente a imagem e aprofundar aquilo que a constitui, ser efêmero sem ser volátil, reinventar (quando necessário) todo o ritual possível, aproveitar, fazer uso de recursos, movimentar-se sem intermitência, desbravar novos habitantes que carreguem ainda algo de original, experimentar novas situações plásticas, obter prazer, não deixar-se pasteurizar, procurar as exceções, satisfazer-se.
Numa era de imagens, o que talvez reste aos artistas é exatamente a produção incansável de muito mais imagens, que consigam por sua vez, serem contrapostas à quantidade inesgotável de imagens públicas que são veiculadas diariamente. Projetar novas imagens sobre o mundo que se apresenta, já que na reprodutibilidade turística a possibilidade de invenção de novos mundos (em diversas camadas de significância) é uma de nossas novas linhas de fuga que se anuncia. Então, a figura do artista hoje, ressurge bem próxima daquilo que Hans Belting nos diz sobre a condição de Sísifo:
“Para Camus ele é a figura-símbolo de uma revolta que expressa na criação artística a experiência de um mundo absurdo. Sísifo sabe sobre a inutilidade de sua revolta, e só esse saber lhe restitui a autonomia pessoal que, do contrário, ele perderia ou teria perdido. Os artistas fazem um gesto de auto-afirmação, embora saibam que eles nada alterarão no mundo, mas eles podem se conscientizar de seu estado. ‘Nisso consiste a alegria secreta de Sísifo. Seu destino pertence agora a ele só. A luta contra o cume pode preencher um coração humano. Temos de imaginar Sísifo como um homem feliz.” [10]
* É muito curioso voltar a este texto tanto tempo depois. Alguns anos se passaram e ainda não tinha tido a coragem, a disposição e o desejo de voltar a este texto de maneira justa. A partir do convite feito pelos editores da revista, precisei reler este conjunto de pensamentos que foram sendo estabelecidos antes mesmo dos selfies e de toda uma esfera de veiculação da imagem (seja ela qual for), produzida na encruzilhada entre o público e o privado. Curiosamente, o texto ainda parece vivo. E talvez agora tenha optado, mesmo quando perdido entre pastas e arquivos, por se tornar apenas uma imagem. Nada longínqua.
[1] MICHAUD, Yves. L’art à l’état gazeux. Essai sur le triomphe esthétique. Hachette Littératures. Paris ; 2003. p. 188
[2] Idem. p. 191.
[3] CANTINHO, Maria João. Modernidade e alegoria em Walter Bejamin. In: http://www.ucm.es/info/especulo/numero24/benjamin.html
[4]BENJAMIN, Walter. Écrits Français,“Paris, Capitale du XIXe siècle”, p. 301. citado por CANTINHO, Maria João. Idem.
[5] ARGAN, Giulio C. Argan. História da arte como história da cidade. Martins Fontes. SP; 1998. p. 255
[6] MORRIS, Robert. The present tense of the space.In Art in America (jan-fev de 1978).p. 80.
[7] Idem. p. 70
[8] Infelizmente aqui não podemos explicitar todo o raciocínio que compôs a tese e que eliminava essa ligeira presença iconoclasta.
[9] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Obras escolhidas vol. 1. Editora Brasiliense. SP; 1996. p. 171.
[10] BELTING, Hans. Sísifo ou Prometeu? Sobre arte e tecnologia hoje. In XXVI Bienal Internacional de São Paulo (catálogo). Fundação Bienal de SP. SP; 2004.
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ALEXANDRE SÁ vive e trabalha no Rio de Janeiro. É mestre e doutor em Linguagens Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ e licenciado em História da Arte pela UERJ. Profissional híbrido que trabalha com as mais diversas linguagens (instalações, performances, fotografias, objetos e vídeos), sua pesquisa plástica tem como preocupação estética as relações entre o texto, a imagem, a poesia, o corpo e a psicanálise. Uma de suas particularidades é o diálogo entre teoria e prática, pois também atua como crítico, escrevendo textos para revistas especializadas. É coordenador da graduação e professor do Instituto de Artes da UERJ e coordenador e professor do curso de Artes Visuais da Unigranrio. Integra a comissão editorial da revista Concinnitas (do Instituto de Artes da UERJ). Foi consultor de projetos artísticos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde atualmente é professor de História da Arte.
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