“Um pesquisador imagina algo que está no mundo e que tem a idade do próprio mundo. Como ponto de partida, ele pensa em um elemento que serve de base ou alicerce, ferramenta ou entrave, ponte ou parede, início ou fim. Revisando antigos documentos, intui algo que está no espaço e que sofre a ação do tempo. Não obstante, constrói um pensamento abstrato sobre um indício concreto, observando a imobilidade do peso e o volume de uma pedra. De outra forma, analisa a articulação entre os destroços e o inteiro. Reflete sobre algo que o organismo humano fabrica em seu interior ou que algumas máquinas podem lapidar. Olha para a opacidade ou para o brilho que ofusca e adorna mãos, braços e pescoços. Paralelamente, lembra de seus usos nos cárceres e navios. Admira as rudimentares máquinas de guerra. Projétil e escudo. Na história ou naquilo que a antecede, remete seus pensamentos ao fogo, ao suporte-parede, ao material-tinta, à lousa e ao livro. Retoma os mitos da escuridão, olhando para as catedrais que apontam ao céu. Na arquitetura antes da arquitetura, lembra do aposento, da escada, da estrada, do banco, da mesa e da cama. Estrutura que a fé transpõe e que a física estuda. E pensando na morte, vê em seu leito: uma tumba e uma lápide”. (trecho retirado do livro Formações)
Os integrantes mais antigos da seita Voz Sutil, fundada por Samael Bloont, em 1656, relatam que seu líder espiritual era um grande bloco de pedra bruta. Os nativos que o encontraram, em uma escavação, no ano de 1423, logo trataram de cunhar uma denominação que melhor o definisse: Professus.
Em pouco tempo, todos os habitantes da ilha haviam se rendido à sua retórica. Segundo as referências inscritas no Livro Amarelo, publicado em 1917 pelo pesquisador francês Jacques Caulin, a pedra não tolerava ser questionada, repudiando todos os pontos de vista que divergissem do seu. Quando contrariada, a grande pedra emanava uma energia que fazia o ar da ilha pesar. Equivalente ao pior discurso persuasivo que possa ter existido na Terra, essa energia lentamente impregnou os pensamentos de todos os habitantes da ilha. Em menos de dois anos, não havia divergência de ideias ou de conceitos. No plano teórico, o consenso reinava absoluto em toda a extensão de terra. Finalmente, os entes vivos e inertes da ilha poderiam selar acordos ideológicos entre si, atestando a boa convivência que sempre fora idealizada.
Todavia, estranhamente, as vozes dos mortos começaram a ser ouvidas por certos habitantes. E essas, não somente divergiam da grande pedra, como problematizavam algumas de suas principais questões. Rumores sorrateiros, ao cair da tarde, ecoavam nos vales e planos da ilha, trazendo à tona assuntos esquecidos ou temas abandonados. Rapidamente, o bloco de pedra bruta, lançou o decreto-lei nº. 5.289, instituindo o ritual Ordem e Disciplina: ato simbólico de encher a boca dos mortos com pequenas pedras.
Segundo imaginava-se, tal ritual evitaria a colocação de palavras na boca dos mortos.
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Michel Zózimo vive em Porto Alegre (RS), onde trabalha como Professor de Artes Visuais e desenvolve sua pesquisa em Poéticas Visuais no Curso de Doutorado pela UFRGS. Em 2012, participou de residência artística no Hangar – Barcelona, recebendo o Prêmio de Exposições do CCSP, Temporada de Projetos Paço das Artes, Rumos Itaú Cultural 2011-2013, Exposição Futuro do Pretérito [Galeria Mendes Wood]. Em 2011 foi selecionado entre os 30 finalistas do Prêmio Marcantonio Vilaça 2011-2012, participando da Third Biennal Codex International Book Fair & Symposium: Borders and Collaborations / [Curadoria de Martha Hellion. The Codex Foundation] – San Francisco, California, EUA. Em 2010, publicou o livro Estratégias Expansivas da Arte: Publicações de Artistas e seus Espaços Moventes, recebendo o Prêmio Bolsa de Estímulo a Produção Crítica em Artes Visuais da Funarte.
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