Moeda Social na Cultura
Helena Aragão, Luana Vilutis e Sergio Cohn
“O nosso coletivo, Cubo Mágico, começou com um estúdio de ensaio para as bandas que atuavam na cena musical independente de Cuiabá. Com o tempo, surgiu uma demanda das bandas para se apresentarem, e criamos o Cubo Eventos. Com muita dificuldade começamos a criar oportunidades. Com o Cubo Eventos, começou a aumentar o número de bandas, porque aquele público que ia assistir passou a montar bandas também. Começamos a perceber que era preciso divulgar melhor as bandas, e montamos a Cubo Comunicação. No fim do ano percebemos que as bandas precisavam gravar, e criamos um estúdio de gravação. Em um ano, criamos tudo isso. O que despertou um buxixo de que o Cubo Mágico estava crescendo muito e explorando os artistas que se apresentavam junto a ele. Daí surgiu a necessidade de arranjar uma forma de remuneração para as bandas. Em espécie, a gente não conseguiria pagar. Então pensamos em estabelecer uma troca solidária. A banda poderia se apresentar e depois trocar isso por ensaio, gravação ou assessoria de imprensa. As bandas começaram a receber o Cubo Card em troca dos shows. Com isso, as bandas começaram a entender a lógica do que estávamos fazendo e voltaram a militar com a gente. A partir daí foi um processo de consolidação do sistema”.
Assim Pablo Capilé lembra a criação do Cubo Card, em 2003, no Espaço Cubo, em Cuiabá, um marco na utilização de moedas sociais na cultura.
Para entender a importância desta iniciativa, é preciso lembrar que grande parte da produção cultural, não apenas no Brasil, possui uma parcela importante de trabalho colaborativo e muitas vezes voluntário. Isso, se permite ações criativas intermitentes, é tradicionalmente um dos grandes dificultadores da sustentabilidade dos projetos independentes. E, nesse processo, o trabalho não é, literalmente, valorizado. Em consequência, os agentes precisam dispersar o seu tempo em outras atividades para o sustento pessoal e dos projetos. E, na falta de tempo, estes últimos morrem.
Uma solução que tem se encontrado para essa questão no Brasil é exatamente a utilização de moedas sociais, baseadas na economia solidária. Isso é potencializado com o uso das ferramentas digitais e das novas tecnologias, tanto para realizar o controle das moedas quanto para expandir o circuito.
As moedas sociais são complementares às moedas correntes (no caso brasileiro, o Real), que possuem lastro em bancos comunitários ou circuitos de trocas solidárias. Elas servem, principalmente, para estimular a circulação de serviços e produtos em determinados sistemas, que podem ser caracterizados por localidades (bairros, cidades) ou redes de troca.
O lastro é um elemento fundamental desse sistema solidário, é o que garante a base e o fundamento das trocas, o que legitima o valor das moedas. Não apenas traz segurança aos seus usuários, como, ao manter um câmbio paritário com o Real, permite que diferentes moedas sociais integrem o mesmo circuito de trocas. A construção do lastro pode se dar das maneiras mais diversas. O Coletivo Puraqué, Ponto de Cultura de Santarém, no Pará, alavancou sua moeda social, a Muiraquitã, a partir da Feira Cultura Digital dos Bairros e Comunidades, evento que aliou a Economia Solidária à Cultura Digital. A ampliação do lastro foi garantida por meio de uma ação socioambiental, como explica Jader Gama, integrante do coletivo. “Como as pessoas poderiam adquirir a moeda? Como nós faríamos essa moeda ter um valor de troca? Um dos principais problemas das cidades é a questão do resíduo, então fizemos uma campanha incentivando as pessoas a fazerem a coleta seletiva. Conseguimos uma parceria com uma recicladora de garrafas pets e as pessoas começaram a trocar conosco. Cada quilo de plástico equivale a um Muiraquitã. Durante os três dias de feira conseguimos 2.200 kg de plástico para reciclagem, e o lançamento da moeda foi um sucesso”. Fabricada com argila, a moeda circula hoje em uma área de cerca de 40 mil habitantes. Ela é utilizada para troca de serviços como oficinas em cultura digital e software livre, manutenção de computadores, cobertura de eventos, dentre outros produtos e serviços oferecidos pela Produtora Colaborativa Livre do Coletivo Puraqué (www.puraque.org.br).
A questão do lastro é mesmo séria: ela requer um controle da circulação das moedas bastante rígido, para evitar o perigo de perda de credibilidade. O Cubo Card correu riscos nos primórdios justamente por causa disso, como lembra Capilé: “No começo, por sermos desorganizados, sem contato ainda com a economia solidária, não sabíamos o que era lastro – a gente achava que estava tendo uma ideia genial, que talvez não existisse em nenhum outro lugar. Por falta de pesquisa mesmo da nossa parte, no primeiro momento a gente distribuiu muito mais moedas do que poderia. Então, no início de 2004, rolou nosso subprime. Tínhamos 150 mil Cards na rua, e não tínhamos condições de pagar. Tivemos que trazer a iniciativa privada para perto, e aumentar o número de pessoas. Foi ali que percebemos a importância de trabalhar coletivamente”.
A frase de Capilé não é retórica. Depois disso, o Espaço Cubo originou e passou a integrar uma rede colaborativa maior, o Circuito Fora do Eixo – que, bem de acordo com o nome, agrega coletivos de produção cultural independente para trocar tecnologias sociais e ampliar sua participação na cadeia produtiva da cultura. O Circuito já contava com 106 Pontos Fora do Eixo, em 2011 espalhados por praticamente todos os estados brasileiros, e conquistando parceiros em outros países da América do Sul. Dentro dele, o intercâmbio é irrestrito. Envolve inteligência coletiva para preparar festivais, estimular a circulação de bandas em diferentes localidades e, claro, fomentar a troca de experiências sobre o uso de moedas sociais. Para isso, foi criado o Banco Fora do Eixo, núcleo de produção de conhecimento sobre economia solidária, com representantes de todas as moedas do circuito.
Além do pioneiro Cubo Card, compõem o núcleo o Goma Card (do Coletivo Goma, de Uberlândia-MG), o Marciano (do Massa Coletiva, de São Carlos-SP), a Lumoeda (do Coletivo Lumo, de Recife-PE) e a Patativa (da RedeCem, de Fortaleza-CE). A opção de contar com várias moedas diferentes não é à toa: estimula a descentralização do circuito e o fortalecimento das identidades dos coletivos, fator importante para a consolidação das parcerias e o controle da circulação das moedas. Em geral, as moedas são concebidas de forma coletiva, desde a definição do nome – que muitas vezes remete a personagens, locais ou objetos simbólicos da comunidade – até o seu desenho. No Coletivo Goma, as trocas de serviço já até aconteciam de maneira organizada, através de planilhas virtuais onde eram marcados os escambos. Mas, segundo Débora Bernardes, integrante do grupo, o surgimento do Goma Card em 2009 promoveu uma mudança simbólica no processo. “Com a moeda em papel ficou mais fácil para os colaboradores visualizarem a troca e para novos parceiros compreenderem o sistema”.
Além de valorizar o trabalho e difundir a rede, a moeda social também possibilita mensurar o custo real movimentado em uma produção cultural. Décio Coutinho, que enquanto trabalhava como coordenador de cultura do Sebrae de Goiás foi um importante parceiro do Circuito Fora do Eixo (hoje ele está na Secretaria de Cultura de Goiás), explica: “As moedas sociais, além de propiciar a troca, possibilitam o acesso aos números de determinados eventos. Por exemplo, se num evento como o Festival Calango, em Cuiabá, ou na Feira da Música em Fortaleza, houve uma circulação de 10 mil Cubo Cards, ou de 10 mil Patativas, com trocas que antes seriam voluntárias e gratuitas, podemos saber que rolou ali 10 mil reais em trocas. É possível medir o PIB daquele evento. Antes, isso era praticamente impossível. Então, se o movimento gerado ali foi feito através de uma moeda, pode-se ter acesso aos números. É óbvio que isso tem um desdobramento: com essa informação, é possível dialogar com o Estado ou uma instituição. Além do valor de troca, do valor de cooperação, do trabalho coletivo, criou-se uma forma de medir, de mensurar o real investimento em torno dos eventos culturais. Isso é algo inédito”.
Um exemplo pode ser visto no Sistema Marciano de Trocas, criado pelo Massa Coletiva, na realização do Congresso Regional do Circuito Fora do Eixo em São Carlos (SP), em 2010. O Congresso reuniu 70 pessoas e seus organizadores viabilizaram alimentação, hospedagem, transporte, material, internet e infra-estrutura para todos os participantes. O Massa Coletiva investiu quatro mil reais e 21 mil marcianos no evento. Esse valor em moeda social foi calculado em horas trabalhadas e na troca de serviços com parceiros. “As pessoas recebiam marcianos para gastar no almoço, a partir de uma parceria entre um restaurante e o Departamento de Apoio a Economia Solidária”, conta Rafaela Soldan, participante do Massa Coletiva, ressaltando a criação de uma rede de parceiros e colaboradores a partir da moeda e das trocas.
Cidade universitária com vocação para a vida cultural – e incentivo ao trabalho autogestionário, dado que seu departamento voltado a economia solidaria existe desde 2001 –, São Carlos tem coletivos, instituições e movimentos com tradição de criação independente que acabaram convergindo interesses comuns por meio do uso de moedas sociais. Além do Massa Coletiva, o Festival Contato, o coletivo Janela Aberta e a Incubadora Regional de Cooperativas Populares (Incoop), entre outros, formaram um grupo de trabalho em 2010 para discutir a viabilidade das moedas solidárias na cidade. O desdobramento foi além do Marciano, e alguns grupos criaram suas próprias moedas: “Achamos isso positivo, quanto mais moedas melhor, todas têm o valor de um real, então não é difícil trocar entre elas”, afirma Rafaela.
A parceria entre coletivos independentes e instituições de pesquisa e estímulo à economia solidária ganhou força com a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho e dirigida pelo economista Paul Singer. “A Senaes foi criada por decisão do Presidente Lula, em fins de 2002, atendendo pedido das principais entidades de economia solidária. Ela tem por função apoiar o desenvolvimento da economia solidária no Brasil mediante o emprego dos recursos políticos e materiais disponíveis ao governo federal”, lembra Singer. Durante o Governo Lula, a Senaes manteve diálogo próximo com o Ministério da Cultura, ajudando na elaboração de políticas de economia solidária na cultura. “A parceria com o Ministério da Cultura deu-se principalmente pelo apoio dado aos pontos de cultura, que se organizam sob a forma de empreendimentos de economia solidária, principalmente sob a forma de feiras conjuntas em que pontos de cultura e empreendimentos de economia solidária comercializam seus produtos. As moedas sociais têm papel importante nesses eventos, permitindo uma troca mais ampla de produtos e serviços”.
O valor dos serviços pode ser calculado pela quantidade de horas despendidas no seu processo de execução. A criação de um cardápio de produtos e serviços é um mecanismo que favorece a ampliação do sistema de trocas e a apropriação do processo produtivo pelo grupo, que passa a ser considerado um empreendimento econômico e solidário. Os meios digitais podem favorecer a circulação ampla desses saberes. “Criamos um blog com o cardápio”, conta Débora, do Coletivo Goma. “Todo mundo que aceita usar a moeda se cadastra no blog aceitogomacard.blogspot.com, aí pode olhar quanto custam os serviços, as outras pessoas que aceitam etc. Pelos nossos serviços costumamos cobrar menos que o valor de mercado, mas cada parceiro tem a liberdade de cobrar quanto quiser”. Uma visita ao blog mostra que muita gente prefere oferecer serviços em preços “em Gc$”, enquanto outros listam os valores, como cursos de pintura a Gc$ 15 a hora, produção de cenário a Gc$ 150 e até acupuntura a Gc$ 30 a hora.
A ampliação do uso da moeda é um dos principais desafios de todos os grupos. Em geral o desejo – e a necessidade – é que a partir dela a produção cultural se fortaleça junto a outros setores da sociedade. A moeda de argila muiraquitã está mobilizando até consórcio solidário. O coletivo Puraqué tem realizado sorteios mensais de laptops e equipamentos digitais, a partir da compra de um carnê de 50 muiraquitãs. Com isso, cada vez mais a moeda ganha credibilidade junto à população local. “Nosso desafio é fazer com que esse negócio colaborativo aumente seu lastro, que a moeda Muiraquitã vire uma espécie de banco solidário e financie micro-projetos para empreendedores colaborativos”, resume Gama, estudando ainda a criação de cartão de descontos para os usuários da moeda.
No Brasil há atualmente 52 bancos comunitários em todas as regiões do país. São organizações que promovem a inclusão financeira em comunidades onde os bancos convencionais não existem ou não alcançam necessidades específicas. As meninas dos olhos desses empreendimentos são as moedas sociais e o microcrédito. Eles têm a vantagem de concentrar as riquezas geradas na própria comunidade, mas nada impede que um produtor troque moeda social por reais no balcão da instituição. O Banco Palmas, um dos pioneiros da experiência de finanças solidárias, foi criado em Fortaleza em 1998. Para incentivar o uso da moeda, descontos são negociados com comerciantes e produtores da localidade. Como se vê, o sonho de Gama não é impossível.
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Este artigo foi produzido pela editora Azougue, por ocasião da Revista Pensamento Brasileiro, e gentilmente cedido para a quarta edição da Revista Carbono.
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