04 | Entrecorte

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Barranco e barraca, a Feira é uma modalidade de transporte

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Barranco e barraca, a Feira é uma modalidade de transporte

Raquel Versieux

 

(…) fica mais clara a natureza mesma da troca por dádivas, de tudo aquilo que chamamos prestações totais, e, entre estas o potlatch. Compreende-se logicamente, nesse sistema de ideias, que seja preciso retribuir a outrem o que na realidade é parcela de sua natureza e substância; pois, aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma; a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal, e não simplesmente por que seria ilícita, mas também por que essa coisa que vem da pessoa, não é apenas moralmente, mas física e espiritualmente, essa essência, esse alimento, esses bens, móveis ou imóveis, essas mulheres ou esses descendentes, esses ritos ou essas comunhões, têm poder mágico e religioso sobre nós. Enfim, a coisa dada não é uma coisa inerte. Animada, geralmente individualizada, ela tende a retornar ao que Hertz chamava seu ‘lar de origem’, ou a produzir, para o clã e o solo do qual surgiu, um equivalente que a substitua. (MAUSS 2003, pág.200)

O vale balançou, de um lado pro outro — uma chuva e o vale espreguiça-se.  E como se o fundo do vale pudesse ser além de vertente, um campo largo, aí se instalaria a feira, ficando as mercadorias estacionadas temporariamente entre seus estados definíveis, sendo a alternância entre as mãos que levam e as mãos que buscam.

Se a feira, e vamos chamá-la de A Feira da Incoerência, fosse uma feira de arte, como vimos tantas, nosso vale poderia ser o chão sem fundo escondido por baixo do imponente telheiro dos galpões alinhados do Píer Mauá, e andar por ali — encontrando, aos barrancos, obras que se acumulam aparentemente sem sentido, sobrepostas, obras de arte que jamais estariam ou poderiam estar no mesmo lugar — nos levaria a pensar que a feira por si só, pelas suas características de espaço-tempo constipados, imprime uma ordem de quase-curadoria, e ainda, uma quase-curadoria dinâmica, já que é comum que mesmo constipado, o espaço-tempo da feira de arte seja sempre alterado, na velocidade das vendas, como uma vitrine que muda de inverno pra verão em menos de 24 horas, ou como a cegueira que é sempre passageira.

Existem três opções de transporte que nos levam até a Feira da Incoerência: de carona num caminhão, descer rolando pelo morro até o fim do Vale da Incoerência ou fingir-se luz, sabendo que luz é matéria, e esperar até que seu corpo seja barrado pelo toldo de uma barraca.

O desembarque sempre nos parece natural, e em alguns poucos minutos já seguramos um pedaço de abacaxi atravessado por um espeto de bambu ou uma xícara de café espresso, reconhecemos o chão de cascalho solto quando ouvimos um carro que passa lentamente ao nosso lado — curioso pelas novidades do dia ou apenas verificando se ainda resta uma peça inteira de alcatra na barraca de carnes — e sabemos que estamos próximos.

Do fundo do vale é possível ver um ajuntamento de nuvens no alto do morro, logo deve cair uma boa água, o chão é quente e úmido e é quase possível ver um vapor de lama que ascende em direção às nuvens.

Encontramos o caminhoneiro que nos deu carona, ele está sentado junto com mais algumas pessoas num dos esparsos bancos de plástico ao lado de uma barraca da feira, todos concentrados segurando seus pratos descartáveis, embolados sob a única porção de sombra que faz ali às 13:30h. Passamos por ele, que nos acena e pergunta, tapando a boca com a mão, se estamos servidos.

O raio de luz que iluminava e fazia refletir a colher de plástico transparente que ele segurava com a mão que levou até à boca é substituído pela passagem de uma grande nuvem sobre o sol, porém veloz, e nossa pupila nos deixa em alguns instantes de escuro, e quase instantaneamente o sol volta a nos esquentar e fazer brilhar cabelos e colheres.

Um pouco mais adiante avistamos um vendedor ter seu avental branco tingido na luz azul que chega através da cobertura daquela estrutura, e a pausa do olhar para esse bloco iluminado, uma aquarela em movimento, é um refresco que nos convida e somos unânimes em parar e conferir os produtos expostos. Filtros de barro e bilhas, modelados e pintados a mão, um mergulho, e ele nos estende um copo de água fresca para que possamos conferir a eficiência das suas engenhocas de fazer a água ficar com o gosto bom. Sentimos vontade de colar o rosto à forma feminina, farta e viva daquele filtro de barro, um carinho com a parte de trás da mão nos foi suficiente.

Não demorou muito as nuvens desceram, e com elas uma grande onda de água que vinha colada aos morros redondos daquele vale antigo. Lonas se estendiam em estalos, o som crescente, e era som de pedra batendo na água que vinha, e muita gente saiu correndo procurando uma marquise no posto de gasolina, o córrego foi rio, nos abrigamos um no outro e formávamos juntos suor, chuva e o humor que convinha.

A chuva passou, o córrego ainda era rio. Um caminhão dava a ré e um carro precisou desviar rapidamente, passando por cima de uma grande poça e lançando um jorro circular de lama sobre uma senhora no exato momento em que ela respondia ao marido qual era seu plano pr’aquele agora quando, ainda mais, mudar de planos se tornava fundamental. Se não tivesse sido o carro derrapando na poça, o banho teria vindo da água acumulada no teto frágil, de fácil remoção e estendido com pouca precisão sobre a venda que insistia em querer manter-se fixa ao chão movente às enxurradas.

Buscando pelo que de mais humano havia entre as trocas que aí se traçavam, nesse desenho cada vez mais nítido da reciprocidade imposta às coisas em movimento, o que vimos poderia ter sido a antropologia de um lugar inexistente. Inexistente pois infixável, pois é fixo naquilo que é solúvel, naquilo que espraia.

A obrigatoriedade de dar e receber nos foi feita visível através do jogo de sacos e volumes embrulhados em papel e amarrados com barbante, buracos e sulcos lavados pela chuva e pelo vento, secos pelo sol e protegidos por lonas plásticas ou semeadura de capim gordura, e baús metálicos hermeticamente vedados por bordas emborrachadas, que seguiram pelas vias. Assim a Feira da Incoerência foi levada para novos vales, sempre novos, e sabemos que para voltarmos lá é preciso seguir os respingos no chão, com muito cuidado, pois o que a feira anuncia é inanunciável.

Apenas os merceólogos-mergulhadores, depois do fechamento do último porto, chafurdados no lamaçal escafândrico e mercante, serão os autorizados a vasculhar e inventariar o rastro daquela barraca que buscamos juntos, em emocionantes 6 horas e 20 minutos de deslocamento entre Copacabana e Cafubá, só porque vimos no anúncio que se tratava de uma barraca enferrujada e de teto laranja, era lá que estava e era essa que desejávamos.

Porém, o que nem o mais audaz dos merceólogos-mergulhadores será capaz de descobrir — nessa zona-de-arrastamento-da-memória-impregnante-da-feira-contida-num-rastro-de-barraca — é que naquele dia só fechamos o negócio porque o vendedor ficou feliz em saber que meu nome era o mesmo da sua mulher, a dona da barraca e que não estava ali, e que logo quando fomos embora ele nos chamou de volta até a grade do portão e disse, com olhos lacrimejantes, que teríamos muito sucesso, que sua mulher sempre vendia tudo na feira e que estaríamos acompanhados da sorte dela. Ninguém deve, simplesmente, esperar pela sorte — foi o que pensamos — e sorrimos silenciosamente pra ele, agradecidos, e ainda sem jeito pra carregar o novo volume, que dividiríamos tantas outras vezes até que seu peso fosse neutralizado, partimos de volta.

 

***

 

RAQUEL VERSIEUX é artista visual em perseguição de uma possível essência das erosões e do desejo de traçar uma via de acesso mais particular à história da paisagem, compreendendo paisagem como deslocamento. Mineira de Belo Horizonte, há dois anos mora no Rio de Janeiro, onde cursa mestrado em Linguagens Visuais pelo PPGAV EBA-UFRJ. Foi bacharel em Desenho pela UFMG (2011), fez intercâmbio em Fotografia na ENSAV La Cambre, em Bruxelas (2007-2008) e cursou Ciências Sociais na UFMG (2003-2006).

A construção desse texto para a Revista Carbono faz parte do processo criativo que leva à exposição “A Feira da Incoerência”, primeira individual da artista que acontece em outubro de 2013, na qual serão apresentadas obras em diversos formatos, frutos da prática incoerente e da aposta formal em uma quase-curadoria imposta pela constipação de uma feira de arte. Link para seu site http://www.versieux.com

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