O peso e a leveza
Débora Bertol
Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira ela é.
Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes.
O que escolher, então? O peso ou a leveza?
Milan Kundera
Como situar sua própria criação, em meio a toda carga de conhecimentos que já se produziu ao longo da História humana? Diante de tantas dúvidas e certezas, neste tempo em que tantas escolhas se impõem, onde a Arte encontrará sua pertinência? Perante aos inúmeros ramos de criação aplicada que não cessam de emergir, que contribuições poderá oferecer uma prática estética a priori sem utilidade?
Tais são alguns dos questionamentos que me levaram a me aproximar da Ciência. Por um lado, a História nos mostra que um dos principais méritos da Arte foi participar de um processo da modificação dos padrões de percepção e de relação com o mundo. Por outro, o que as mais importantes revoluções científicas nos revelaram, fundamentalmente, é que as coisas não são sempre aquilo que parecem. Ciência e Arte se aproximam, portanto, não tanto pela tecnicidade ou pelos processos de produção, mas por sua capacidade de quebrar paradigmas e de sugerir novos postulados.
E quais estratégias têm sido utilizadas no campo artístico contemporâneo para essa mudança de paradigmas? Édouard Glissant propõe a crioulização e o pensamento-arquipélago; Nestor Garcia Canclíni conceitua o hibridismo; Reinaldo Laddaga identifica a emergência; Carl Einstein e Walter Benjamin defendem o anacronismo; Aby Warbourg, o atlas. O que há em comum entre essas ideias é o fato de sugerirem que a aproximação de disciplinas, culturas e períodos resulta em um dado novo, imprevisível, que não é apenas soma dos elementos, mas uma nova ocorrência. Elas remetem, de certa forma, à imagem do coral de Darwin, a um contexto pós-disciplinar, onde diferentes saberes se articulam em favor do conhecimento e da criação.
De fato, dada a extensão da produção cultural e intelectual a que temos acesso hoje, parece-me que é impossível não levá-la em consideração durante um processo criativo. Nesse sentido, minha prática é, naturalmente, motivada pelos diferentes temas que permearam meu caminho. Arte, ciência, filosofia, literatura, deslocamento, devaneio, poesia, infinito, metafísica, matemática, cosmos, códigos, astronomia, história da arte, linguagem, crenças, arqueologia, sistemas, meditação, computação… Como em uma nuvem de palavras, as ideias se cruzam, se tocam, dialogam e se inspiram mutualmente, para permitir o surgimento de um novo evento: a obra de arte.
A chamada da revista Carbono apresentou-se assim como um desafio que veio ao encontro de minha pesquisa. O problema “gravidade”, interessante por sua complexidade material e conceitual, foi a oportunidade para uma reflexão sobre como articular ciência, arte e linguagem, em um espaço de múltiplas dimensões (a planaridade do texto, a profundidade da imagem e a temporalidade oferecida pelo suporte digital).
Das quatro forças fundamentais que regem o Universo, a gravidade é a mais fraca, mas aquela sem a qual a matéria (e, logo, a vida) seria impossível. Uma mesma lei que se aplica em todas as partes do Cosmos, palpável nas maiores e nas mais ínfimas coisas. Para nós, a primeira testemunha dessa força universal e misteriosa, capaz de unir e separar, que reside na intimidade de cada ser, é nosso próprio corpo. Mas como revelar esse fato invisível, evitando os clichês que, segundo Gaston Bachelard1 , brutalizam nossas forças imaginativas?
Este par de vídeos pretende mostrar as diferentes reações corporais provocadas pela força gravitacional de nosso planeta, de acordo com a posição da mão. Embora o corpo aplique uma atração recíproca à da terra, o vencedor deste embate é sempre o objeto maior. Desse modo, a circulação do sangue, fenômeno que deve ocorrer de maneira equilibrada e fluida, se vê permanentemente prejudicada por nossos movimentos, em particular se estamos de pé, inteiramente submetidos a nosso próprio peso, ou invertidos, concentrando-o na parte superior.
O que se observa é portanto uma luta entre força de atração e necessidade de irrigação. Em ambas as situações o sangue circula, mas a mão apontada para cima empalidece, esfria e desintumesce, enquanto a mão que aponta o solo se aquece, avermelhando-se e dilatando-se.
A mão, que aqui se transforma em suporte de experimentação, é também objeto estético. O estudo de mãos pertencente ao treinamento artístico de desenhistas, pintores e escultores adquire uma nova dimensão, proporcionada pela imagem em movimento. O gesto, quanto a ele, pode ser elemento de linguagem ou símbolo, entendido de diferentes maneiras, conforme a cultura de cada observador.
Qualquer que seja o ângulo de interpretação, a constatação parece ser sempre a mesma: estamos invariavelmente submetidos a uma certa tensão, a um estado paradoxal em que a estabilidade ideal e pretendida esquiva-se a cada instante. Diante da impossibilidade de viver em permanente equilíbrio, o que escolher, então?
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1. Gaston Bachelard, L’Air et les songes: essai sur l’imagination du mouvement, 2005, p. 228.
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Débora Bertol, artista plástica e pesquisadora. Mestranda em Arte e Ciências da Arte na Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, mestre em Artes e Linguagens pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em 2010, e bacharel em Artes Plásticas pela UFRGS em 2005. De 2010 a 2013 foi codiretora de gravitons, editora de livros sobre arte em formato digital.
Estabelecendo diálogos entre Arte, Literatura, Filosofia e Ciência, e apropriando-se de gestos e objetos do quotidiano, suas obras buscam revelar o que há de universal nas aparentes banalidades. Sua produção atual é conduzida por dois eixos principais: “Propostas para a representação do infinito” e “Meu céu é diferente do seu”. Essas problemáticas servem como leitmotiv para uma série de trabalhos que questionam o (não-)sentido da vida e a relatividade da percepção.
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