Sobre um homem que se ejetou de seu apartamento para o espaço
Maria Helena Bernardes
“Eu não o conhecia muito bem…”, relata o vizinho de um homem que desapareceu de casa tragado por um violento rombo no teto de seu apartamento.
A vítima teria anunciado a algumas poucas pessoas que um dia se lançaria rumo ao espaço cósmico e, de fato, em que pese a razoável descrença de todos, depois do episódio do teto nunca mais voltou a ser vista. Constatada sua desaparição completa, a ausência de corpo e de notícias, para a polícia só restaram planos, objetos e outros fragmentos deixados como testemunhos pelo desaparecido. No pequeno quarto – quase sem móveis e forrado de cima a baixo com cartazes de propaganda, (à guisa de papel de parede, explicou um vizinho) – vê-se uma maquete do bairro e, acima dela, o desenho do céu com o traçado de um percurso no ar.
É bastante difícil investigar a vida de um homem só.
Dois meses antes, o desaparecido se mudara para o prédio simples e, desde então, raramente era visto nas áreas coletivas da moradia, exceto para aquecer a água do chá. Era pobre e quieto, segundo os vizinhos. Testemunhas asseguraram que a porta de seu aposento só era aberta para receber dois tipos estranhos que traziam objetos e equipamentos, e logo voltava a ser fechada. O único morador que teve acesso ao quarto do desaparecido atestou que ele passava a maior parte do tempo dentro de casa, concentrado, à espera de determinado acontecimento cósmico, que, segundo ele, oportunizaria a passagem da Terra por uma enorme zona espacial de energia ascendente para o infinito. No momento dessa travessia, ele já estaria fora da atmosfera terrestre, vestido com uma espécie de roupa espacial, sua cápsula individual para o infinito. Em uma das rápidas visitas, o vizinho afirma ter visto cálculos astronômicos sobre a mesa, ao lado de desenhos que lhe pareceram relacionados à estranheza dos mecanismos de metal armazenados ali. “Ele não se sentia (…) um habitante da Terra, era como se não tivesse nascido aqui. Sem esperar pela morte, desejava partir para esse lugar onde supostamente já deveria estar”.
No corredor, ao lado da porta de entrada de seu quarto, encontram-se ainda dois casacos pendurados – indícios falsos de continuidade de uma rotina suspensa. “Procuraram pelo quarteirão inteiro, no caso de ele ter caído por aí – mas não o encontraram; isso acontece…”. A barreira de tábuas pregadas pela polícia, vetando a entrada no quarto, atesta que a cena permanecerá imóvel enquanto durar a investigação. Depois, seja qual for a conclusão do processo, o quarto do homem que desapareceu no espaço será desmontado definitivamente. Talvez, então, o quarteirão volte a levar uma vida normal.
Nesse momento, ainda é possível acercar-se da porta e dar uma olhada no interior, onde se vê a maquete com o plano de vôo do viajante em um dos cantos, alguns desenhos colados sobre as paredes, e uma estranha catapulta que elevou a única poltrona existente na peça até as bordas de um enorme buraco irrompido no teto. Tudo está coberto de estuque e pó, devido ao forte impacto dos explosivos que permitiram que o desaparecido transpassasse o concreto rumo ao céu.
Por esse buraco, olhando com mais frieza em uma segunda visita à bela instalação de Ilya Kabakov, pode-se ver partes dos panéis altos que cercam a pequena sala que abriga seu trabalho no Museu Nacional de Arte Moderna do Centro Georges Pompidou, de onde fomos ejetados durante um maravilhoso lapso de tempo.
Adendo:
A crônica acima é baseada no Relato de Nikolaïev, texto integrante da instalação L’Homme qui s’est envolé dans l’espace, pertencente à série Dix personnages, criada entre 1981 e 1988 pelo artista ucraniano Ilya Kabakov (1933).
A série reúne um conjunto de instalações cujo tema gira em torno de dez personagens diferentes, entre eles L’homme qui ne jetait jamais rien e L’Homme qui s’est envolé dans son tableau. As instalações são compostas por textos, desenhos e objetos reunidos em complexas situações espaciais e caracterizadas por um falso realismo. A cada um dos personagens da série corresponde uma instalação individual, cujo conjunto compõe uma instalação total.
• O excerto seguinte foi extraído do endereço
http://www.centrepompidou.fr/Pompidou/Divers.nsf/FichPedParEspace/1N4S14?OpenDocument: “L’Homme qui s’est envolé dans l’espace relata uma história, uma utopia, cujo texto, redigido pelo artista, é apresentado sobre uma prateleira [localizada na ante-sala da câmara principal]. O narrador é um vizinho, Nikolaïev, que faz o relato sobre um homem cujo projeto é alcançar o espaço cósmico e que terminou por realizar seu sonho.”
• Outras imagens de Dix personnages (Ronald Feldman Fine Arts, New York, 1988), buscar:
http://www.feldmangallery.com/pages/exhsolo/exhkab88.html
Excerto extraído do endereço acima: “Dez Personagens é uma instalação que consiste de dois grandes apartamentos comunitários, incluindo corredores e cozinhas. Dez inquilinos moravam nesses apartamentos, cada um no seu próprio quarto, desenvolvendo personalidades absolutamente distintas”.
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MARIA HELENA BERNARDES é formada em Artes Plásticas pela UFRGS e atualmente atua como cronista e professora. Leciona História e Teoria da Arte na Arena, associação dedicada à promoção de projetos independentes de artistas e à formação teórica em artes (Arena Cursos). Ao lado de André Severo, é coautora do Projeto Areal, por meio do qual publicou os livros: “Vaga em Campo de Rejeito”. (Documento Areal 02. São Paulo: Escrituras, 2003); “História de Península e Praia Grande/Arranco” (com André Severo, Documento Areal 07. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2009). “Dilúvio” (com André Severo, Documento Areal 10. Belo Horizonte: Ja.Ca, 2010). “A Estrada que não Sabe de Nada” (com Ana Flávia Baldisserotto, Documento Areal 11.Rio de Janeiro: Confraria do Vento) e “Ensaio” (com André Severo, Documento Areal 12. São Paulo: Panorama da Arte Brasileira, 2011). Em 18 de novembro de 2009, apagou todos os arquivos de registro formal de seu currículo, passando a utilizar-se dessa pequena biografia para informar sobre sua atuação.
ILYA KABAKOV nasceu em 30 de setembro de 1933 na União Soviética.Trabalhou em Moscou de 1950 até o final da década de 1980. Hoje mora e trabalha em Long Island, EUA.Foi nomeado pela ArtNews como um dos dez maiores artistas vivos em 2000. Recentemente ele criou istalações que evocam a cultura visual da União Soviética, embora este tema não seja o foco exclusivo de sua obra.
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