06 | Entrecorte

A+ A-

A Guerra vista por gente que escreve

Clique para ver a imagem maior

 A Guerra vista por gente que escreve

 Donaldo Schüller

Neste texto para a Revista Carbono, Donaldo Schüler seleciona trechos escritos por ele que estão nos respectivos livros que traduziu para o português: “Odisséia” de Homero, Porto Alegre: L&PM, 2011; “Os sete contra Tebas” de Ésquilo, Porto Alegre: L&PM, 2003; e “Finnegans Wake” de James Joyce, Ateliê Editorial, São Paulo: 1999 – 2003; São trechos que traçam ideias de guerra através desses autores com os quais Donaldo Schüler tem a intimidade da tradução. A partir deste recorte acerca da guerra, podemos percorrer algumas noções com as quais tais autores trabalharam em suas obras, em épocas diversas, partindo do olhar minucioso e poético de Donaldo Schüler.

 

Odisseia – Homero – O banho de Odisseu

A água não remove apenas as impurezas do corpo. Odisseu
deixa simbolicamente na banheira infrações de vinte anos.
Sai da água um novo Odisseu, que é o mesmo, o que há duas
décadas partiu para a guerra. A água, que não permitiu a
emergência dos corpos dos que saborearam a carne dos
bois de Hélio, deixa o navegador vitorioso no vestíbulo de
nova etapa. O banho do herói corresponde à limpeza
do palácio. Os cadáveres dos pretendentes mortos foram
todos removidos. Em lugar da baderna de todos os dias, o
silêncio da sala tratada com enxofre envolve o casal.

 

Os sete contra Tebas – Ésquilo

A guerra, que volta a nos atormentar, é o núcleo de Os
Sete contra Tebas. Ésquilo conheceu Atenas como imbatível
potência marítima. A imagética náutica não admira.
Tebas é um barco sacudido pelas águas em noite
tempestuosa. O exército comandado por Polinice lembra o
ataque persa à cidade de Atenas. Os espectadores
confrontam-se com os seus próprios conflitos. Eles sabem
que o orgulho do guerreiro pode precipitá-lo na ruína. O
homem é um enigma não decifrado. Nada garante que seja
confiável a máscara que para nós mesmos construímos.
Figuras prometeicas roubam, além do fogo, a glória dos
deuses. O esplendor desmedido destrói. Sacrifica o que é
no altar do que não é. O conhecimento de si vale mais que
o hábil manejo das armas.

 

Finnegans Wake (princípio) – James Joyce

Tristão, violeiro e violador (violate), violando Isolda,
rompeu os compromissos de fidelidade com o rei, tio, amigo,
bem-feitor, senhor. Em penisolate (penisoldada)
ressoa peninsular, isto é, as batalhas travadas por
ingleses e irlandeses na península ibérica sob o comando
do fálico Wellington contra as femininas forças francesas.
Penisolate lembra ainda as penas do guerreiro que pensa em
amor e guerra. A guerra interior, a erótica, isolada,
solitária, humaniza-o. Além de brandir a espada, ele
maneja o instrumento da paixão amorosa. Em penisolate,
soa o nome de Isolda. Guerra penetrante de quem
usa a pena, o pênis e a espada. Guerra de palavras, de
línguas, de culturas, de níveis… Guerra de quem veio
tão tarde (I so late) ou muito cedo. Guerra que perpassa
todos os que passam. Guerra que pende no fluir. Guerra de
vida e morte. Guerra de um guerreiro apaixonado, guerra da
paixão. Sem paixão não se travam guerras. Sem guerra,
não se ama; não, em Finnegans Wake. O amor aproxima e
separa, une e opõe. O isolamento ou o isoldamento de
Tristão é insuperável. Para quem sofre de amor não há
repouso. A união não se consolida.

Em resposta à trovoada no terceiro parágrafo, o coaxar das
rãs no quarto. A luta de wills contra wonts, de oystrygods
(ostragodos) contra fishygods (piscigodos) lembra as guerras
fratricidas das origens e de todos os tempos: Caim e Abel,
Esaú e Jacó, Shem e Shaun. Povos irmãos (ostrogodos e
visigodos) se guerreavam no território do Império Romano e
o dilaceravam. Roma despedaçou-se na queda como Humpty
Dumpty. Os combates de antanho evocam épicas refregas de
deuses (gods) e de gigantes. Deuses em conflito continuam
nas guerras religiosas contemporâneas. Refletem-se na
luta dos povos irmãos, conflitos ainda mais antigos, época
em que comedores de ostras agrediam comedores de peixes.
Alterando o nome de povos irmãos e rivais (Ostrogoths e
Visigoths), Joyce concentra na mesma frase refregas de
outros lugares e de outros tempos.

 

Finnegans Wake, p. 254 – 259

E El YaHWeHrra (El+YHWH+era+guerra). Era impregna guerra,
como wahr, al. (verdade) impregna war. And he war (Und er
war + And he was). A verdade não está além
d’El. El não reveste a verdade. El era a
verdade, El não é a verdade. O presente sugere o que não
se move. Como, entretanto, imaginar guerra sem ação? A
guerra é ação por sua própria natureza. A guerra não
foi, a guerra era, sem excluir a que se trava agora. No
momento em que pensamos nela, ela era. A exclusão não é
dela, é nossa, quando paramos. And he war… Podemos
esquecer o proverbial Wo es war… freudiano, derivado de
Nietzsche?

Guerra de quem? De Shaun contra Shem, de Shem contra Shaun.
Não são filhos? Filhos que não saem d’ El. A
guerra se trava sempre n’ El. Como nele se trava a
guerra entre duas línguas, o inglês e o alemão ou
hebraico e o português; ou, entre o substantivo war e a
forma verbal was, ou, entre o substantivo war e o adjetivo
wahr. A tradução agrava a guerra. HCE está a caminho em
guerra. Sem guerra, como se movimentariam n’ El
o manifesto e o oculto, o abismo e a visibilidade?
Estão n’ El. Guerreiam n’ El. Vivem
n’ El como o verso e o anverso em Babel e
Lebab, como morte e vida.

 

***

DONALDO SCHÜLLER é doutor em Letras e livre-docente pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É professor emérito da UFRGS. Hoje oferece cursos, profere palestras e conferências em várias instituições. Foi consultor acadêmico e membro da equipe curatorial de Fronteiras do Pensamento até 2013. Além de tradutor de diversas obras importantes, Donaldo Schüler também escreveu obras de não-ficção, ficção, poesia e literatura infanto-juvenil, tendo ganhado diversos importantes prêmios em seu percurso.

 

Todos os direitos reservados.

Baixar o artigo em formato PDF