06 | Dossiê

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Guerras da ciência. Hermenêutica breve.

Guerras da ciência. Hermenêutica breve.

Luís Timóteo Ferreira

I believe the intellectual life of the whole of western society is increasingly being split into two polar groups… Literary intellectuals at one pole – at the other scientists, and as the most representative, the physical scientists. Between the two a gulf of mutual incomprehension – sometimes (particularly among the young) hostility and dislike, but most of all lack of understanding.
Charles Percy Snow (1959). The Two Cultures.

 

Parece paradoxal que alguém formado em filosofia e história, com um mestrado nesta coisa diáfana chamada educação e inovação pedagógica, e ainda numa outra coisa quase indefinível chamada currículo, escreva um artigo sobre as guerras da ciência numa revista onde abundam excelentes textos de excelentes cientistas sobre muitos, porém não exclusivos, temas de ciência. O paradoxo se adensa na medida em que o tema do artigo, estendendo o da revista, coloca questões que fariam correr muita tinta: A história é ciência? A pedagogia é ciência da educação? O currículo é uma ciência da instrução? Enfim, que conhecimentos merecem o epíteto de ciência?

Na Antiguidade ainda o cisma e a guerra não se tinham operado e na noção de episteme (ἐπιστήμη) ainda conviviam o conhecimento (das coisas humanas e da dimensão ética e estética) e a ciência (das coisas naturais e físicas). Na Idade Média, de certa forma também, com as sete artes liberais: o trivium era o nome dado ao conjunto da gramática, lógica e retórica; o quadrivium, a aritmética, geometria, astronomia e música.

Se empreendermos um olhar descuidado sobre o passado, sempre à procura dos precursores, um passado linear e não problemático que caminha inexoravelmente para o nosso presente, onde vislumbramos a emancipação da razão – emancipada do mito, primeiro, e da religião, depois – é grande o risco de, como o fez Auguste Comte (1798 – 1857), nos deixarmos seduzir por generosas filosofias da história, da inevitabilidade da ordem e do progresso, por grandes narrativas épicas triunfais, que tanto têm de inócuas utopias como de trágicos totalitarismos. O positivismo, ortodoxo o de Comte, heterodoxo o do fenómeno cultural e civilizacional inaudito da cientificação crescente da realidade, iniciou no séc. XIX uma guerra que reverbera ainda hoje e infelizmente está para durar.

Foi no ano de 1996 que a revista Social Text, publicação da Duke University Press, lançou um número especial dedicado às guerras da ciência (http://www.jstor.org/stable/i220077). Neste número, um físico, Alan D. Sokal, submetera um artigo intitulado Transgressing the Boundaries: Toward a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity . Neste artigo, Sokal escreveu no jargão pós-modernista dos estudos culturais que então abundava na revista, dissertou imprecisões e erros crassos no campo da física e ainda produziu enunciados gramaticalmente aceitáveis embora sem qualquer significado. O texto foi aceite, publicado e comentado. Entretanto, no mesmo mês da publicação, numa outra revista, Sokal revelava que escrevera uma farsa, facto que ficou então conhecido como Sokal Affaire ou Sokal Hoax. No ano seguinte, Alan Sokal e Jean Bricmont (1998), um físico e filósofo belga, lançam em França o livro Impostures Intellectuelles (Fashionable Nonsense: Postmodern Intellectuals’ Abuse of Science), um ataque cerrado a muitos intelectuais franceses pós-modernos e pós-estruturalistas, que estavam na moda nos EUA e no mundo. As repercussões da polémica na Europa e Américas ainda se fazem sentir (Ashman & Baringer, 2001; Carrier, Roggenhofer, Kuppers, & Blanchard, 2004; Santos, 2004; Segerstråle & Olofsdotter, 2000).

Que sentidos atribuir a esta controvérsia à escala planetária? E às incidências nacionais, onde se jogam as astúcias tácticas e estratégicas de interesses vários? Uma rápida busca pela internet revelará uma diversidade de críticos e apologistas e ainda os que cuidam de manter a polémica bem registada para memória futura, sobretudo o próprio Sokal (http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/index.html). Há mesmo, desde então, um suceder de escândalos que não se confinam às ciências sociais e humanas. Um dos mais recentes foi noticiado pela revista Nature (http://www.nature.com/news/publishers-withdraw-more-than-120-gibberish-papers-1.14763): um programa informático desenvolvido no MIT produziu dezenas de artigos científicos que entretanto foram publicados.

O fenómeno é já social, ou seja, se alguma vez foi apenas um problema estritamente filosófico (epistemológico, ontológico, ético, lógico ou estético) ou estritamente metodológico (clarificação do método científico), deixou de o ser, ou melhor, revela a estreita ligação do problema filosófico e científico com as perspectivas que uma sociedade tem sobre o seu passado, a formação dos seus jovens, as suas opções políticas. O texto científico do sábio não raras vezes convive, legitimamente, mas ainda assim em confusão, com o seu texto ideológico.

Assim, deparamo-nos com mais um paradoxo: para compreender o sentido do fenómeno social – e mediático – que dá pelo nome de guerras da ciência é preciso admitir que há guerras pela ciência e guerras contra a ciência, que dificilmente encontraremos apenas dois lados, a luz da razão e as trevas do obscurantismo, e que a própria compreensão deste fenómeno, por ser também histórico além de social, dificulta o uso dos métodos consagrados por esta mesma ciência que luta contra os que a querem denegrir. Ora, então é legítimo perguntar: a única maneira de compreender a vitória e o sucesso da ciência – entendidos como visão de mundo e acção técnica no mundo hegemónicas – pode não depender da aplicação dos seus métodos? Sendo assim, a epistemologia das ciências só pode ser uma ciência humana interpretativa que é capaz de fazer, como o demonstrou o médico, historiador e epistemólogo Georges Canguilhem (1977), a “história das relações de evicção do inautêntico pelo autêntico”, ou seja, a epistemologia como ciência humana desvela os acréscimos de positividade da ciência que suplanta a não-ciência, mas só o faz e compreende quando interpreta o seu devir no tempo histórico. Neste caso, história, epistemologia e hermenêutica se equivalem (Gadamer, 1999; Tort, 1983). Mas esta interpretação, no tempo, não utiliza o método consagrado pela ciência.

A guerra seria, então, como a citação de C. P. Snow (1961) em epígrafe sugere, entre as ciências ditas físicas e naturais e as ciências ditas sociais e humanas. Em boa verdade, sabe-se que esta guerra não é nova. Para Auguste Comte a sociologia é uma física social; ter-se-ia, segundo ele, chegado ao momento definitivo da cientificação da realidade que mais escapava à ciência: a sociedade. Marx e Engels, partilhando o mesmo Zeitgeist, creram cientificar a própria história da humanidade, o materialismo histórico. Herbert Spencer aproveitou-se da teoria de Darwin para dar credibilidade acrescida ao seu evolucionismo liberal. Ernst Hackel e o seu monismo naturalista tentam não só fundir as ciências físicas com as ciências humanas, mas também com a religião, sob a égide das primeiras, é claro. Ricardo Jorge (1858 – 1939), higienista português contemporâneo de Oswaldo Cruz, caracterizou assim estes tempos, sobretudo após o famoso manifesto pan-germanista dos 93 sábios (http://en.wikipedia.org/wiki/Manifesto_of_the_Ninety-Three): “A ciência proclamava-se invulnerável e infalível; não tinha actos de fé porque os demonstrava, não tinha mistérios porque os desvendava, não sonhava mitos porque só realidades e certezas alcançava, não pregava dogmas, mas leis naturais, estas sim infractas e infrangíveis… mas ao divinizá-la como deusa Ísis moderna, amesquinharam-na a afrontaram-na…”.

Assim, no auge do cientismo triunfante – entendendo por cientismo o postulado da unidade absoluta do método científico, a negação de qualquer possibilidade de conhecimento fora dele e a arbitrariedade radical de qualquer julgamento de valor – Wilhelm Dilthey (1833 – 1911) é o primeiro a reactualizar um questionamento profundamente enraizado na cultura alemã desde o séc. XVIII sobre as bases filosóficas do que mais tarde viria a ser chamado de ciências sociais e humanas em função da crescente divisão entre as Geisteswissenschaften (ciências do espírito) e as Naturwissenschaften (ciências naturais). A genealogia de oposição ao positivismo, primeiro o de Comte, no séc. XIX, e depois o do positivismo (ou empirismo) lógico do círculo de Viena e da escola de Cambridge e Oxford, já no século XX, feita por filósofos ou sociólogos, é extensa e multifacetada, bem como a diversidade de posições, teóricas e metodológicas, dos próprios cientistas sobre o escopo da ciência.

Além de Dilthey (hermenêutica), os opositores ao positivismo – entendido como uma atitude intelectual e um fenómeno cultural do Ocidente que é anterior à designação comteana e que não se apresenta como uma doutrina filosófica específica, ainda que na verdade o seja, justamente por negar ser uma doutrina ou uma filosofia (Kolakowski, 1972) – foram Edmund Husserl (fenomenologia), Max Weber e Georg Simmel (sociologia), George Herbert Mead (psicologia social) e uma plêiade de outros intelectuais, historiadores, etnógrafos, antropólogos.

Ao longo do séc. XX, sobretudo até aos anos de 1960, a guerra transferiu-se também para o interior do campo das ciências sociais e humanas, na medida em que, e apesar da tradição interpretativista, ou seja, baseada na hermenêutica e na fenomenologia, a metodologia das ciências sociais tenderá a ser influenciada pelos modelos quantitativos, matemáticos e estatísticos. A reacção à exclusividade metodológica ocorreu um pouco por toda a parte: na escola sociológica de Chicago, na escola histórica francesa dos Annales. Nos anos de 1960 a escola filosófica de Frankfurt, com maior ou menor distanciamento do marxismo, operou uma leitura multifacetada da modernidade e renovou muitos dos problemas da filosofia, sobretudo no que toca ao positivismo lógico e à filosofia da ciência, reactualizando a crítica ao positivismo e refundando as condições de possibilidade das ciências sociais, que será continuada por Habermas, principal representante da segunda geração da Escola de Frankfurt (Wiggershaus, 1998). Este debate procurou matizar a hegemonia empírico-analítica das concepções das ciências sociais, então dominada pelo positivismo lógico, com os contributos das tradições fenomenológicas, etnometodológicas, linguísticas e hermenêuticas (Habermas, 1988). Saída na mesma década, a obra de Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, um físico e historiador da ciência, causou enorme controvérsia nas décadas seguintes e foi uma cartilha onde perspectivas relativistas e sócio-construtivistas, no feminismo ou na questão racial e colonial ou no strong programme da sociologia do conhecimento científico da escola de Edinburgo, por exemplo, abriram a caixa de Pandora da crítica veemente ao objectivismo e ao realismo científico.

Não há dúvidas de que muito do que foi e é escrito sob a chancela da pós-modernidade e do pós-estruturalismo, na sua referência à ciência, sobretudo à física quântica, revela um conhecimento superficial, em segunda ou terceira mão, influenciado por fenómenos de moda que surpreendentemente também aparecem nos contextos académicos e que remetem para lógicas sociais de funcionamento de um mercado editorial e de financiamento institucional das universidades e de centros de investigação. Todavia, não menos verdade é que a persistência de um desejo de explicar toda a realidade cultural e social a partir do reducionismo biológico revela uma deriva ideológica com questionável fundamento científico: é o que se depreende de todo o persistente debate (Alcock, 2001; Segersträle, 2000; Tort, 1985) dos últimos 40 anos acerca da sociobiologia e da obra de Edward O. Wilson (1975), Sociobiology: The New Synthesis.

Concluindo esta hermenêutica breve, talvez não seja exagerado lembrar algumas marcas da civilização e do pensamento ocidentais que parecem ser esquecidas em tempos de guerra. Cépticos e relativistas existiram desde a Antiguidade e mesmo estes entendiam o conhecimento, possível e contingente, de forma bem mais alargada do que o positivismo e o cientismo da contemporaneidade. Na erradamente apelidada de Idade das Trevas, no chamado renascimento dos séculos XII-XIII, entre teólogos como Abelardo, Guilherme de Ockham, Alberto Magno e tantos outros que seria fastidioso nomear, homens de uma cultura enciclopédica onde a química andava misturada à alquimia e a astronomia à astrologia, algo que ainda se pode encontrar em muitos renascentistas como Johannes Kepler, naquele tempo em que a dialéctica e a retórica fizeram uma escola de pensamento fundamental para o ulterior desenvolvimento da ciência ocidental – é este o sentido tão preconceituosamente depreciado da escolástica –, naquele tempo circulava um lugar-comum, um adágio, um jargão, extremamente popular: diversi sed non adversi. O que é diverso e distinto não é contrário e adversário. Na cultura ocidental, as controvérsias geradas pela diversidade de perspectivas ou opções teóricas só com a modernidade conheceram a tendência para a eliminação dos adversários, ou seja, para a recusa da diferença e afirmação da unicidade (Gil, 1986), que as reiteradas tentativas de imposição intolerante de um critério único de cientificidade são hoje sintoma. A máxima medieval representa a um só tempo o reconhecimento da diferença, a tolerância em relação a ela e a possibilidade dialógica da compreensão do sentido. Tudo que a simples ideia e valorização da guerra negam. Ouçamos a moral de Darwin, com atenção, no capítulo V de The Descent of Man and Selection in Relation to Sex: o aparecimento da cultura e da civilização comporta uma lógica reversiva em relação à selecção natural e querer aplicá-la às sociedades humanas civilizadas – “We civilised men, on the other hand, do our utmost to check the process of elimination” – é um erro que não se fará sem “deterioration in the noblest part of our nature.” (Darwin, 2009, pp. 168-169).

Se há guerra por causa da prevalência cultural das humanidades na formação dos jovens – este ponto é um tema fundamental da minha especialidade porque é um tema educacional, pedagógico e curricular – a tal clássica carência de formação científica que Snow denunciou em The Two Cultures, trata-se no fundo da falta de cultura humanista dos cientistas e da falta de cultura científica dos humanistas. É o problema da extrema especialização a que o nosso desenvolvimento intelectual e institucional nas universidades nos levou. Quão longe estamos do homem antigo, medieval ou renascentista. Homo sum, humani nihil a me alienum puto (Terêncio) – Sou homem, nada do que é humano me é estranho.

 

Referências bibliográficas:

Alcock, J. (2001). The Triumph of Sociobiology. New York: Oxford University Press.
Ashman, K. M., & Baringer, P. S. (Eds.). (2001). After the Science Wars. London: Routledge.
Canguilhem, G. (1977). Ideologia e Racionalidade nas Ciências da Vida. Lisboa: Edições 70.
Carrier, M., Roggenhofer, J., Kuppers, G., & Blanchard, P. (Eds.). (2004). Knowledge and the world: challenges beyond the science wars. Berlin Heidelberg: Springer-Verlag.
Darwin, C. (2009). The Descent of Man and Selection in Relation to Sex (Vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press.
Gadamer, H.-G. (1999). Verdade e Método. Petrópolis: Editora Vozes.
Gil, F. (1986). Provas. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Habermas, J. (1988). On the logic of the social sciences. Cambridge, MA: The MIT Press.
Kolakowski, L. (1972). Positivist Philosophy. From Hume to the Viena Circle (3ª ed.). London: Penguin Books.
Kuhn, T. S. (1996). The Structure of Scientific Revolutions (3 ed.). Chicago: The University of Chicago Press.
Santos, B. d. S. (Ed.). (2004). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez.
Segersträle, U. (2000). Defenders of the truth. The battle for science in the sociobiology debate and beyond. Oxford: Oxford University Press.
Segerstråle, U., & Olofsdotter, C. (2000). Beyond the Science Wars: The Missing Discourse About Science and Society. New York: State University of New York Press.
Snow, C. P. (1961). The Two Cultures and Scientifc Revolution (7 ed.). New York: Cambridge University Press.
Sokal, A. (1996). Transgressing the Boundaries: Toward a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity. Social Text(46/47 Spring – Summer), 217-252.
Sokal, A., & Bricmont, J. (1998). Fashionable Nonsense: Postmodern Intellectuals’ Abuse of Science. New York: Picador.
Tort, P. (1983). La Pensée Hierarquique et l’Évolution. Paris: Aubier Montaigne.
Tort, P. (Ed.). (1985). Misère de la Sociobiologie. Paris: PUF.
Wiggershaus, R. (1998). The Frankfurt School: Its History, Theories, and Political Significance (3ª ed.). Cambridge, Massachusetts: MIT Press.

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LUÍS TIMÓTEO FERREIRA, 46 anos, é carioca, de mãe capixaba e pai português. Emigrou durante a presidência de José Sarney, sendo a terceira geração a cruzar o Atlântico, agora em sentido contrário. É licenciado e pós-graduado em história contemporânea pela Universidade de Coimbra. É professor de história e de português no Funchal, ilha da Madeira. Tem um mestrado em inovação pedagógica pela Universidade da Madeira e é doutorando na área de currículo pela mesma universidade.

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