06 | Dossiê

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Guia para exigir o impossível

Guia para exigir o impossível

 

A Agência Transitiva surgiu em janeiro de 2013 como um espaço-veículo para ações e estudos não-convencionais em arte, política e história das ideias. A Agência Transitiva é nós. Nós somos uma composição de tipos móveis. Nós nos amassamos lateralmente. Nós conjugamos verbos no presente e no futuro. Nós coletamos. Nós nos apropriamos. Nós intercedemos. Nós cozinhamos. Nós não estamos sozinhos. Facilitamos serviços de tradução, abordagens, convivências e reações em cadeia. Aceitamos e encorajamos trocas e investimentos.

Em março de 2013 finalizamos a tradução do “Guia para exigir o impossível ” e, de maio a outubro, imprimimos e distribuímos gratuitamente aproximadamente mil cópias em protestos, colóquios, festas e encontros.

 

Esta publicação foi escrita num redemoinho de três dias, em Dezembro de 2010, entre o primeiro e o segundo dia de ação dos estudantes britânicos contra os cortes do governo, a fim de refletir sobre a possibilidade de novas formas criativas de ação nos movimentos atuais. Foi distribuída inicialmente no Long Weekend (Fim-de-semana Prolongado), um evento em Londres para reunir artistas e ativistas e planejar ações para os dias seguintes, que incluíram uma aula-protesto durante a entrega do Turner Prize na Tate Britain, a escritura coletiva de um manifesto na National Gallery e a versão britânica da publicação.

 

“Eu não vejo a arte como algo que tenha, realmente, afetado o rumo dos assuntos humanos.”

Clement Greenberg

 

Arte é inútil, é isso que nos dizem. No momento em que ela realmente afeta o mundo, a arte perde seu status de arte. (Nunca se sabe, ela pode acabar detonando algo imprevisível, se tornar instrumental, propaganda ou coisas ainda piores!) O estranho é que os que nos dizem isso são, geralmente, as mesmas pessoas que dão à arte o uso instrumental mais brutal: o mercado de arte. Talvez o que eles queiram dizer é que: arte é inútil quando não tem o propósito de gerar lucro. Talvez seja a mesma lógica que diz que educação não serve pra nada a não ser nos encaixar neste mundo mutilado de trabalho e consumo. Este guia é para aqueles que suspeitam que a arte tem outras utilidades, para aqueles que estão preparados para buscá-las.

“Arte” sempre foi útil para alguém. Quando ela se torna um objeto-produto, subordinado aos limites do mercado, ela funciona como um amplificador estético para os valores do status quo, enquanto sua “arte política” é seguramente contida num museu e se torna uma máscara cultural bacana sobre a catástrofe que é o capitalismo.

 

“Arte não é uma noção, mas uma ação. Não importa o que a arte é e sim o que a arte faz.”

Gilles Deleuze

 

Mas existe uma outra história da arte. Uma que escapa das prisões do mundo da arte, esquece seu nome, derruba os egos estrelados e se torna um movimento coletivo de criatividade aplicada ao material da vida cotidiana. Em momentos como esse, a arte ingressa em outras relações, outros tipos de fazer acontecem. Livre das demandas do mercado, a arte começa a refazer a vida que está entre nós. Transformando o modo como nos relacionamos e fazemos arte, como nos recusamos e nos rebelamos, como amamos e comemos. Quando isso é feito num caldeirão de luta, numa ocupação, num movimento social, num protesto, novas amizades são tecidas, novas formas de viver se tornam possíveis. Este tipo de cultura nos aproxima, ao invés de nos separar, e permite que a gente se encontre por entre os escombros. Estes momentos, que costumavam carregar o nome “arte”, re-produzem os sentimentos e excitam os sentidos, eles constroem desejos e mundos diferentes, alguns que talvez até diziam ser impossíveis. Esta é a arte que não mostra o mundo pra gente, e sim o transforma. Esta arte de movimento social tem sua própria história secreta de performances rebeldes, imagens sutis, invenções insurrectas e sons sedutores. Nosso desafio hoje não é apenas relembrar este segredo da história da arte, mas descobrir e criar tendências no presente que tragam caminhos alternativos para a crise atual.

Este guia não é um mapa rodoviário ou manual de instruções. É um fósforo aceso no escuro, uma multi-ferramenta caseira para ajudar a abrir sua própria trilha através das ruínas do presente, aquecido por histórias e estratégias daqueles que levaram as palavras de Bertold Brecht a sério: “Arte não é um espelho da realidade, e sim um martelo para modelá-la.

 

 

 

AQUI AGORA

 

 

A melhor mídia é o presente. Como disse Joseph Beuys, “Não espere pra começar, use o que você tem.” Comece de onde você está. Caramba, você já começou. Quais são as ferramentas e as tendências em sua volta? Dentro de você, ao seu lado? Você poderia começar com seu próprio corpo. É o ecossistema que você conhece melhor, a fonte da maior parte dos seus conhecimentos e sonhos. A arte dos movimentos sociais frequentemente começou com performances coletivas que usavam o corpo como seu primeiro e mais abundante recurso.

Quando Sylvia Pankhurst desistiu de sua graduação na Royal College of Art para aplicar sua criatividade no movimento das Sufragettes (mulheres que exigiam o direito de voto no começo do século XX na Grã Bretanha e nos EUA), foi o potencial performativo dos corpos femininos que deu gás para suas ações. Ela projetou ações onde corpos bloqueavam e sabotavam as injustiças do sistema. A imagem de mulheres usando anáguas (um tipo de roupa de baixo da época) e tomando atitudes radicais aterrorizou as autoridades. A performance delas contou um nova história, desconfortável para aqueles no poder.

Mas o que mais temos em mãos? Tinta? Soldas? Máquinas de xerox? O que você poderia fazer com essas coisas? O que “mais” você poderia fazer com essas coisas? Quando os estudantes de arte ocuparam as faculdades em Paris, durante a rebelião de 1968, eles tomaram as salas de gravura e produziram milhares de cartazes. Recuperando a arte revolucionária do cartaz, que havia se perdido na França, em grande parte devido às leis que proibiam colar cartazes, os estudantes cobriram as paredes da cidade com simples imagens icônicas. A criatividade deles venceu a lei. Como dizia um dos cartazes: “il est interdit d’interdire” (é proibido proibir).

 

 

 

LEVANTE AS PÁLPEBRAS
Estique as orelhas

 

Para desmantelar e reinventar instituições ou sistemas, nós temos que começar pela raiz, com a cultura que as apoia. Cultura é o substrato material da política, é o alicerce lamacento sobre o qual ela é construída, mas esse alicerce não pode ser mudado da mesma forma com que se desfaz uma lei – ele se transforma ao ser infiltrado em nível molecular, através de linhas tortas, poros e buracos, como se fosse escavado por uma velha toupeira abrindo milhões de passagens potenciais e pluridirecionais. Pra sua sorte, é aí que você já está.

Conheça seu inimigo – como ele se move, reage, reconfigura, mente. Conheça seu material – as pessoas e os movimentos à sua volta, o lugar que você ocupa, os desejos que você guarda. Você terá olhado tanto para o seu material que você poderá navegar nele com os olhos fechados. Como diz a toupeira sobre o rio em ‘The Wind in the Willows’, “Eu vivo nele, com ele, ao lado dele”. Viva naquilo que você transforma, flua com ele até que a relação se torne homogênea. Sinta seus padrões e redes tão profundamente até que eles, de alguma forma, se tornem você.

Olhe ao redor. Nós estamos num espaço entre certezas, em um momento histórico onde a sociedade está mais maleável que o normal, onde o potencial tem poder e formas de vida mudam rapidamente. Durante a Comuna de Paris (o primeiro governo proletário da história), os impressionistas fugiram da cidade insurgida e foram para os subúrbios atrás de tranquilidade. Porém, Gustave Courbet largou seus pincéis e fez uma imersão na Comuna. “Estou na política até o pescoço” ele escreveu, de uma Paris que ele descreveu ser um paraíso sem a polícia. Com sua imaginação corajosa, ele planejou o festival que veio a derrubar a Coluna da Praça Vendôme – o odiado monumento público do império e da hierarquia. A rebelião coletiva se tornou sua tinta, e a cidade sua tela.

 

 

DESERTE

 

 

Quando você conhecer bem seu material e seu lugar… é hora de fugir. Tudo começa com um salto. Não é deserção como fuga, mas como engajamento. Se você se opõe à lógica de transformar arte ou educação em um mercado, você já se opõe à forma com que esta lógica define você: você não é o artista, estudante ou trabalhador que o capital precisa. Isso significa que você já começou a se abolir. “O fato de que eu me devoro a mim mesmo apenas demonstra que eu existo”, declarava o manifesto que acompanhava as pinturas preto e branco de Rodchenko em 1919. Este autoabolir-se, ou recusa da parte da sua identidade que se entregou às demandas do capital, significa agir diferente, se comportar de formas que talvez nem tenham nome ainda. E sem sua identidade você está livre, o que você faz se torna mais importante do que quem você é, e o que você faz pode ser qualquer coisa. Você pode se surpreender como a arte que esquece seu nome pode se infiltrar em espaços inesperados. Mover-se em outros tipos de fazer, outros tipos de relacionamentos, significa abandonar, ao menos parcialmente, as páginas da história da arte e suas instituições. E você não seria o primeiro fantasma a assombrar a escola de arte.

A negação radical dos Dadaístas, que se recusavam à guerra, ao trabalho, à arte, à autoridade, à seriedade e à racionalidade, catalisou formas criativas de resistência inéditas ao se juntar com o núcleo dos movimentos antiguerra e anticapitalismo de Berlim, na época da República de Weimar. Vestidos como soldados de infantaria, eles desfilaram pelas ruas balindo como carneiros, como se conduzidos para o abate da Primeira Guerra Mundial. Ao fundar “Christ ltd” (Cristo Ltda.), eles emitiram certificados oficiais de Cristandade para cidadãos que queriam ser marcados como inabilitados para o alistamento. Presentes inusitados foram enviados aos soldados na frente de batalha, “duas frentes de camisa, uma branca e outra florida, um par de algemas, uma delicada calçadeira, um conjunto de amostras de chá que, de acordo com as etiquetas escritas à mão, deveriam elevar a paciência, os doces sonhos, o respeito pela autoridade e a fidelidade ao trono.” Dadá nos lembrou que um SIM de tirar o fôlego poderia estar enrolado em volta de um sonoro NÃO, e também que podemos sentir uma alegria constrangedora enquanto criamos comunidades de recusa.

O crítico de arte Brian Holmes reconhece que muito da tal “arte política” do mundo da arte só finge fazer política. Ela é, na maioria, um conjunto de “imagens políticas”, representações de ação política. Abandonar o campo da representação no mundo da arte é criar problemas para você. No ano passado, o Labofii – Laboratory of Insurrectionary Imagination (Laboratório de Imaginação Insurgente) foi convidado a ministrar oficinas de arte e ativismo na Tate Modern. Eles chamaram estas oficinas de ‘Desobediência faz história’. Os curadores da Tate queriam que as oficinas terminassem com uma intervenção performática pública. Quando o Labofii soube, através de um email dos curadores, que nenhuma intervenção contra os patrocinadores do museu poderia ser feita (no caso, a British Petroleum), o grupo decidiu usar este email como material para a oficina. Projetando a mensagem na parede, eles perguntaram aos participantes se eles deveriam ou não desobedecer as ordens da curadoria.

Apesar da tentativa de sabotagem por parte da equipe da Tate, os participantes acabaram fazendo uma ação contra o patrocínio da BP e depois montaram uma exposição coletiva dedicada a libertar a Tate dos barões do petróleo.  Poucos meses depois, o coletivo virou notícia pelo mundo ao derramar centenas de litros de melado preto dentro e fora do museu, durante a festa de 20 anos do patrocínio da BP, festa que aconteceu enquanto óleo vazava no Golfo do México.

O Labofii, obviamente, nunca mais será convidado pela Tate, mas a deserção deles libertou o grupo para continuar suas ações descompromissadas, já que elas nunca dependerão do cortejo de favores do museu de novo.

 

 

 

ENSAIE O FUTURO

 

“Tome cuidado com o presente que você cria, pois ele deve se parecer com o futuro dos seus sonhos”. Assim escreveu, à mão e em letras gigantes, o coletivo de arte anarco-feminista Mujeres Creando em um muro antigo de La Paz. Elas sabem, assim como muitos artistas ativistas, que o futuro não está logo ali, esperando para chegar como um trem apocalíptico. É algo que fazemos agora, no presente – e a responsabilidade para com o presente é a única responsabilidade séria para com o futuro.

Uma passeata de A até B com cartazes, slogans repetitivos entoados por um coro rouco de vozes, pessoas protestando no frio por horas a fio, multidões escutando um barbudo declamando, faixas sem graça penduradas nos prédios, panfletos cheios de estatísticas desanimadoras… Estes atos se parecem com o futuro que queremos? De que outra forma podemos manifestar nossos desejos e demandas? Como essas ações podem ser feitas e sentidas?

Imaginando a arte do futuro, Alan Kaprow acreditava que “Nós podemos ver o sentido geral da arte mudar profundamente – de ser um fim para se tornar um meio, de carregar a promessa de perfeição em algum outro reino para a demonstração de uma forma de vida significativa aqui mesmo”. Propagador de Happenings – as performances que erradicaram as divisões entre observador e criador nos anos 60, ele entendeu que a arte carrega em si o potencial de criar imagens do futuro que podem ser ensaiadas no aqui e agora. As ações políticas mais bem sucedidas fazem o mesmo. Elas não apenas exigem ou bloqueiam algo, elas colocam nossos sonhos à mostra. Elas não dizem apenas NÃO, mas mostram de que outra forma poderíamos viver.

As festas Reclaim the Streets (Recupere as Ruas) nos anos 90 não apenas libertaram as ruas do tráfego poluente. O mais importante é que elas encheram as ruas de corpos dançantes, música e uma visão de mundo onde política é prazer, e não sacrifício. Tinha a ver com incorporar a mudança, ao invés de esperar que uma revolução a trouxesse. Quando estudantes de todo o país ocupam as salas de aula de suas universidades e lá praticam formas alternativas de educação, eles estão se recusando e construindo ao mesmo tempo. Alguns alunos da Goldsmith (Universidade de artes, humanidades e ciências sociais londrina) recentemente levaram esse espírito “sim e não” para lugares inesperados. Eles fizeram sua própria instituição: The University of Strategic Optimism (A Universidade de Otimismo Estratégico) e, ao invés de aceitar a mercantilização da educação, eles começaram a educar o mercado dando palestras que ocupavam e redefiniam espaços de consumo – o hall de um banco, os corredores de um supermercado – como espaço de convivência e discussão.

Em meados da década de 60, artistas e atores exilados em São Francisco que se chamavam de Diggers (Escavadores) abriram uma loja, ‘The Free Store’ (A Loja Grátis). Produtos podiam ser deixados, trocados ou levados. Os papéis também eram trocáveis. Uma placa na loja dizia “Se uma pessoa perguntar pelo gerente, diga que ela é o gerente”. A loja virou um lugar onde aqueles que fugiam do alistamento para o Vietnã conseguiam uma muda de roupa e documentos com selos “oficiais”, e deixavam seu uniforme militar na prateleira. Comida grátis era servida por uma janela amarela gigante para quem vinha de longe todos os dias, clínicas de saúde de atendimento gratuito foram montadas… Tudo podia ser grátis, eles diziam, e mostravam como isso podia ser feito através do que eles chamavam de “atuação-na-vida”, onde a arte estava no modo de vida que alguém leva, e não o contrário. Apesar da polícia ter fechado a loja, a tática criativa deles se espalhou nos EUA e, recentemente, uma Non-Commercial House Free Store (Casa Não-Comercial Loja Grátis) abriu na Commercial Street, no leste de Londres.

Mais informação não vai nos motivar a agir, nem as representações ou as imagens de política. O que nos faz mover é provar o gosto dos sonhos, daquilo que poderia ser, é entrar nas rachaduras por onde outro mundo surge à vista.

 

 

 

CONSTRUA MÁQUINAS PÓS-CAPITALISTAS

 

Todos podemos ser engenheiros da imaginação. Marx disse que nosso “intelecto geral”, todo o conhecimento e habilidade coletivos que usamos ao fazer coisas são tirados de nós e incorporados em máquinas do nosso trabalho. O que aconteceria se, de alguma forma, nós reconstruíssemos essas máquinas, se nós fizéssemos o que Guy Debord defendeu e iniciou, “produzindo a nós mesmos… e não as coisas que nos escravizam”.

Dentro de quais máquinas você trabalha? Placas de rua e outdoors? Redes sociais e internet? As roupas que veste? Lojas chiques? Telefonia celular? Assim como a “saboteur” (sabotadora) original, que jogava seu tamanco – seu “sabot”, na máquina da fábrica para que ele prendesse as engrenagens e produzisse tempo livre para ela, ao invés de lucros para seu patrão, nós podemos fazer engenharia-reversa no mundo à nossa volta. Em Buenos Aires, depois de uma anistia para os ditadores que fizeram milhares “desaparecerem”, o Grupo de Arte Callejero (Grupo de Arte de Rua) projetou lições visuais de arte conceitual e instalou placas de rua que apontavam para as casas de generais genocidas.

Na virada do século 21, artistas ativistas de Barcelona nomearam seu grupo de Yo-mango, subvertendo a marca de moda ‘Mango’ e criando um trocadilho que quer dizer “eu furto” na gíria espanhola. O objetivo deles era reconstruir o comprar, “nós não devemos renunciar aos nossos desejos por coisas, e sim furtá-las”, eles declararam. Eles fizeram do furto às lojas uma forma de arte social e uma marca desejável em si mesma, o buraco feito no bolso de trás de uma calça jeans ao se arrancar o dispositivo antifurto foi promovido como sendo muito mais legal do que uma etiqueta da Levis. Eles deram oficinas onde compartilhavam técnicas eficazes de furto, fizeram sacolas e roupas bacanas que desarmavam os alarmes das lojas ou que tinham bolsos gigantes para esconder coisas, e transformaram o que normalmente é uma atividade sorrateira em uma performance carnavalesca de questionamento do consumo de massa. Quando um de seus vestidos roubados foi mostrado no Museu de Arte Moderna de Barcelona, os burocratas da cidade se enfureceram.

Em Berlin, mais ou menos ao mesmo tempo, Umsonst fez uma campanha publicitária que usava cartazes e panfletos de aparência oficial que anunciavam entrada gratuita em um museu público que havia recentemente começado a cobrar ingresso. Nos EUA, o Centre for Tactical Magic (Centro para Magia Tática) conseguiu uma van de sorvetes e a transformou em uma máquina para distribuição de literatura radical (de diversos sabores, é claro), máscaras de gás e gostosos sorvetes durante protestos.

Qual máquina pós-capitalista está esperando pra ser imaginada na sua cabeça?

 

 

 

PROJETE A DISSIDÊNCIA

 

Durante a primeira metade do século vinte, alguns russos desistiram do nome “artista” para se descreverem como construtivistas ou engenheiros. Eles tentaram imaginar e desenhar objetos que iriam produzir emoções e relações sociais diferentes das do capitalismo. “Você que é forte e jovem… Livre-se do toque das autoridades dominantes”, anunciou Kazimir Malevich, “limpe, encontre e construa o mundo consciente do seu dia”. Mas o estado marxista ortodoxo logo baniu a criatividade dele e de outros colegas de espírito livre. Gulags e suicídios se seguiram, tudo que restou foi uma nota de rodapé melancólica na história da arte. Mas a ideia de redesenhar objetos de dissidência não desapareceu.

Para o Carnival Against Capitalism (Carnaval Contra o Capitalismo) de 1999, que chacoalhou distritos financeiros em todo o mundo, 8000 máscaras multifuncionais foram feitas para o evento londrino. Elas combinavam instruções para uma espontânea dispersão dos manifestantes para confundir a polícia assim como os protegiam das câmeras de circuito fechado. As máscaras fizeram com que o carnaval fosse tanto belo como eficiente.

Em recentes manifestações em Roma, estudantes carregaram escudos para se defenderem dos cassetetes da polícia, com capas de livros pintados neles. Parecia que a própria cultura se defendia dos golpes. Durante os protestos do Climate Camp (Acampamento do Clima) de 2007, surgiram escudos com gigantes retratos fotográficos de refugiados vitimados por mudanças climáticas. As câmeras de TV mostraram a polícia batendo com cassetetes nestes rostos para conter a multidão. Tal reengenharia pode ser diretamente funcional e também simbolicamente poderosa. Em meados dos anos 90, em Londres, o Reclaim the Streets inventou a “barricada inteligente”. Três barras de andaimes foram montadas em triângulo, com um manifestante ágil empoleirado no topo. Estes tripés humanos fechavam as ruas para os carros, mas as abriam para as pessoas.

No último inverno, o Labofii, trabalhando junto com o Climate Camp, reuniu artistas, engenheiros de bicicletas, mecânicos e filósofos para reimaginar os (des)usos de uma bicicleta para desobediência civil (eles haviam sido inicialmente financiados pelo Centro de Arte Contemporânea de Copenhague, mas eles desistiram quando ficou claro que a desobediência civil seria real). Desenhos foram feitos durante oficinas abertas na Galeria Arnolfini em Bristol, depois o projeto viajou para o Copenhagen Climate Summit (Cúpula do Clima de Copenhague) onde centenas de bicicletas abandonadas da cidade foram transformadas. Organizadas em dois grupos, havia bicicletas-altas, uma soldada em cima da outra e outra soldada ao lado para formar plataformas que carregassem projetores, banheiros e pessoas; havia bicicletas com megafones que gritavam instalações sonoras bizarras em cinco canais através da multidão em movimento, e bicicletas com pequenas modificações que poderiam ser conectadas para formar barricadas improvisadas.

Os velhos e chatos rituais de protesto são fáceis de conter, mas um pouco de imaginação vale muito quando aplicada para projetar dissidências.

 

 

 

(DES)ATUE

 

Ninguém sabe o que o corpo é capaz de fazer. E desobediência civil é exatamente isso: des-atuar a sua identidade como civil. Uma de nossas maiores armas é a surpresa e o absurdo. Então, é hora de agir. No início dos anos 60, os Provos (famosos por inventar os percursos para aquilo que ficou conhecido como bicicletas Boris, as bicicletas pintadas de branco que foram deixadas pela cidade e que estavam disponíveis gratuitamente) mudaram de happenings-artísticos para happenings-políticos, começando com uma onda de experimentação criativa de demonstrações em massa; mill-ins, die-ins, kiss-ins, zaps, flashmobs, e mais. Performances desobedientes que se recusavam a ser enquadradas por qualquer palco.

Qual tipo de relação você seria capaz de (re)atuar em momentos de coragem? Quando Rosa Parks se recusou a dar seu assento no ônibus para uma pessoa branca ela estava (des)atuando seu papel subjugado de “pessoa de cor”. Quando Gregory Green botou um outdoor com instruções para se fazer uma bomba, (rapidamente arrancado pela polícia) ele estava (des)atuando o papel de artista público. Quando o Yes Men falsificou sua entrada em uma conferência têxtil internacional fingindo serem representantes da Organização Mundial de Comércio, suas (des)atuações pareciam autênticas até eles inflarem um falo dourado gigante que celebrava ironicamente a crueldade das confecções.

O “artista ativista” não é tão diferente do bobo de carnaval tradicional. Posicionado entre mundos e identidades, reivindicando legitimação e sendo negado, nem o artista nem o ativista e sim os dois ao mesmo tempo, resistindo e criando. O poder de trabalhar neste limiar veio à tona quando a desobediência civil e a antiga arte dos palhaços foram combinadas pelo Clandestine Insurgent Rebel Clown Army – C.I.R.C.A. (Exército Clandestino Insurgente e Rebelde de Palhaços). Subvertendo o personagem do palhaço separado da sociedade pela arena do circo, e quebrando o papel do protestante racional e sério, o C.I.R.C.A. usou palhaçadas e confusão como arma. Durante a Guerra do Iraque, palhaços treinados em modos militares marcharam para os escritórios de recrutamento pedindo para se alistarem, forçando-os a fechar as portas com sua estupidez. Eles então montaram suas esfarrapadas barracas de recrutamento C.I.R.C.A. do lado de fora.

Durante um frio Natal londrino no final dos anos sessenta, um membro do coletivo King Mob se vestiu de Papai Noel e distribui presentes “grátis” para as crianças em uma loja de departamentos. Logo o Papai Noel foi preso e a polícia retirou os brinquedos das crianças transtornadas.

Uma década depois, em uma Itália à beira da revolução, os Metropolitan Indians (Índios Metropolitanos) marcharam em formação de flecha e com machados de borracha, usando suas fantasias para fazer exigências irônicas “mais igrejas menos casas!!”. Eles também fizeram atos de “autorredução” onde, para resistir às medidas de austeridade, decidiram coletivamente e junto aos compradores, qual deveria ser o preço dos bens, recusando-se a pagar os preços normais das lojas.

Mais recentemente, em 20 de dezembro de 2002, no primeiro aniversário da revolta popular argentina, a Yo Mango Tango foi anunciada em Barcelona. Casais bem-vestidos começaram a dançar tango numa filial das lojas Carrefour na época de compras de Natal. Em cada mergulho estilizado, eles agarravam uma garrafa de champanhe que rapidamente era tirada da loja. Ativistas de mídia filmaram e projetaram a cena ao vivo na parede de fora, enquanto uma multidão se juntava.

Existem coisas que nossos corpos querem fazer, coisas que você sabe que são certas, mas ainda assim as normas sociais conseguem moldar nossos corpos ao “bom comportamento”, rígido e arregimentado. (Des)atuar é simplesmente ter a coragem (do francês coeur que significa literalmente do coração) de deixar nossos corpos fazer o que quiserem.

 

 

COMECE PEQUENO
PENSE GRANDE

 

É fácil se sentir paralisado pelas complexidades do mundo, sentir que nada do que você faz vai fazer diferença algum dia. Aqueles que estão no poder querem que a gente se sinta dessa forma, mesmo que eles tendam a ser a minoria. Mas quando relembramos momentos da história, podemos ver que cada movimento, cada mudança na sociedade, começou com um pequeno grupo de amigos tendo uma ideia que parecia impossível na época.

A ideia de uma abolição do movimento escravagista no Reino Unido era sonhada por algumas pessoas que se encontraram numa pequena livraria no coração do Império Britânico. Vinte e cinco anos depois, o Parlamento aprovou uma lei contra o comércio, e em vinte anos a escravidão foi oficialmente abolida, algo que pareceria utópico quando alguns amigos se sentaram ao redor de uma mesa para conspirar. Quando vinte e poucos ativistas dos direitos gays foram espancados e presos pela polícia na Trafalgar Square em 1965, eles não imaginavam que ainda enquanto estivessem vivos dezenas de milhares de pessoas passariam pela mesma praça na Marcha do Orgulho Gay, incluindo policiais gays assumidos. Uma das faíscas que acendeu a chama dos movimentos que derrubaram o Muro de Berlim começou com um punhado de artistas poloneses, o Orange Alternative (Alternativa Laranja). Uma noite, sob a influência de várias substâncias psicotrópicas, eles decidiram convocar uma reunião de “Gnomos”, para exigir os direitos dos “Gnomos”. Protestos haviam sido proibidos na Polônia, então sob regime militar, mas quando os soldados se depararam com milhares de jovens vestidos com chapéus de gnomos cor de laranja, eles não sabiam o que fazer e os generais não enviaram seus tanques.

Pela primeira vez desde que a lei marcial fora declarada, uma massa de pessoas tomou de volta o espaço público, se divertiu ao fazê-lo, e conseguiu espalhar uma sensação de confiança por muitos quilómetros. Em poucos anos, todo o Leste Europeu estava nas ruas.

Artistas ativistas são bons em encontrar os pontos de acupuntura, aquelas rachaduras em um sistema que podem ser escancaradas. A teórica de sistemas Donella Meadows demonstra em seu ensaio ‘Leverage Points: Places to Intervene in a System’(Pontos de Influência: Lugares para Intervir em um Sistema) que cadeias lineares de causa e efeito raramente existem em sistemas complexos, mas existem vários pontos onde “pequenas alterações podem produzir mudanças no todo”. Dos doze pontos listados, ela afirma que os três mais transformadores são: o objetivo do sistema, o paradigma do sistema e, o mais importante, nosso poder de transcender este paradigma. O que significa que é preciso pensar utopicamente, para apresentar novos valores e empoderar as pessoas com esperança e confiança. Três coisas que estão presentes nas estratégicas do ativismo artístico.

Começar pequeno e dar um passo de cada vez muitas vezes significa que podemos aprender com nossos erros. Mas assim que ganhamos confiança, vale a pena arriscar coisas maiores. Para os protestos contra a maior feira de armas da Europa nas docas de Londres recentemente, The Space Hijackers (Os Sequestradores de Espaço), depois de algumas cervejas, decidiram comprar um tanque. Levando a sério o lema do artista rebelde Jean Jacques Lebel: “A revolução deve ser divertida, até mesmo o seu planejamento”, eles montaram tendas na badalada Brick Lane onde anunciavam “Nós precisamos de num tanque” e vendiam camisetas para arrecadar dinheiro. Três meses depois, em uma coletiva de imprensa, eles contaram à Sky News que estavam cansados de ser ameaçados por policiais e que iriam levar um tanque para as manifestações anti-armas durante a feira. Dias depois eles surpreenderam a todos aparecendo com não só um, mas dois tanques – mas isso já é uma outra história…

 

 

 

DANE-SE A LEI

 

Tudo aquilo que achamos normal: o final de semana, direitos gays, contraceptivo, mulheres usando calças, o direito de greve, de formar um sindicato, de imprimir um zine independente. Todas essas coisas foram conquistadas pela desobediência, por pessoas que quebraram as leis que acreditavam ser injustas. Em seu ensaio, imaginando um futuro sem governo onde todos tivessem a liberdade de serem artistas da própria vida, Oscar Wilde sugere que a “Desobediência, nos olhos de qualquer pessoa que tenha lido história, é a virtude mais original do ser humano. Só pela desobediência e rebelião o progresso foi feito.” Ele sabia que somente ao seguir os instintos mais profundos, mesmo que pudessem levá-lo à cadeia temporariamente, ele seria totalmente livre.

Quando a polícia e a mídia criminalizam a nossa desobediência, “jamais devemos esquecer”, como nos lembra Martin Luther King Jr. em uma carta escrita na prisão, “de que tudo que Adolf Hitler fez na Alemanha era considerado ‘legal’ e que a maioria das ações feitas pela liberdade, assim como os lutadores da resistência, eram considerados ‘ilegais’”. Artistas sempre dobraram e quebraram leis, não só as regras da arte. Em 1950, durante o dia de Páscoa na Igreja de Notre Dame em Paris, dois poetas letristas vestidos como padres subiram até o púlpito e começaram a dar um sermão para uma igreja lotada. “Deus está morto” eles declararam antes de serem presos e quase linchados pelo povo. Uma década depois, o poeta travesso Abbie Hoffman publicou o livro ‘Roube este Livro’.

Dezenas de milhares de pessoas foram às livrarias e fizeram exatamente isso, conseguindo assim o que viria a ser um manual para a geração dos anos 60, que listava ações criativas e maneiras de viver de graça. O grupo Electronic Disturbance Theatre (Teatro do Distúrbio Eletrônico) desenvolveu um programa de computador no final dos anos 90 que permitia a realização de sit-ins virtuais. Milhares de usuários de internet, sem nenhuma habilidade hacker específica, podiam, com um simples click, acessar um site ofensivo e bloquear o acesso para seus servidores.

As melhores surpresas ocorrem quando uma lei é quebrada para evidenciar uma injustiça e o tribunal absolve os “quebradores da lei”. Em 1996, um grupo de mulheres do Ploughshares Movement (Movimento das Enxadas), andou calmamente até uma base militar e causou um estrago equivalente à 10 milhões de libras em um jato de combate que seria exportado para a Indonésia, para bombardear civis no Timor Leste. Cercadas por flores espalhadas no local, e deixando um vídeo na cabine (evidência na cena do crime) documentando o uso de jatos de combate contra vilarejos, elas esperaram para serem presas. Quando elas apareceram no tribunal, meses depois, o júri as absolveu: o crime delas preveniu que um crime ainda maior (genocídio) fosse cometido.

Casos similares ocorreram com ativistas do meio-ambiente ao desativarem usinas à carvão, pois o tribunal entendeu que essas ações impediriam um crime ainda maior – de mudança climática. Não tema a lei, apenas a conheça e a use com sabedoria, lembrando que muitas das nossas atividades normais diárias foram direitos conquistados por pessoas que quebraram as regras e leis de seu tempo.

 

 

É UMA COISA LINDA

 

Nós podemos parecer fora de moda ao escolhermos lados, rejeitando a postura desencanada, cínica e bacana do pós-modernismo. Alguns podem ainda nos chamar de ingênuos, românticos, sonhadores utópicos, mas sabemos que limitar as demandas ao que parece “realista” é uma forma garantida de reduzir o possível.  Sabemos também, como diz o coletivo Freee Art Collective (Coletivo de Arte Livreee), que “Protesto é Lindo”. É lindo porque quebra e rompe com as rotinas de espaço e tempo, permite que o inimaginável floresça, é lindo porque, no fundo, é esperança, esperança de que, como os Surrealistas sabiam tão profundamente, sonho e ação podem ser reunificados.

Se estética é sobre abrir nossos sentidos, nossos corpos, nossas percepções de mundo, então não precisamos de muito para perceber que esse mundo não faz muito sentido. O capitalismo capturou a beleza e a imaginação, nós precisamos tomá-las de volta, recuperá-las para a vida e não para o lucro.

A beleza do protesto não é simplesmente pela forma com que ele se apresenta, pela diversão e o prazer que ele suscita em nossos corpos mas, tão importante quanto, é pelo seu sucesso.

Resistência criativa não é simplesmente criar truques e movimentos visuais arrojados para a mídia cobrir, é muito mais do que isso, é sobre fazer as coisas funcionarem, imaginar situações que ao mesmo tempo derrubam mecanismos de poder e nos mostram nossos próprios poderes, nosso próprio potencial de conectar e criar. A beleza está em seu uso eficiente, e nada é mais bonito do que vencer.

 

 

 

 

 

 

Esta publicação foi escrita num redemoinho de três dias, para ser distribuída no Long Weekend (Fim-de-semana Comprido), um evento em Londres para reunir artistas e ativistas e planejar ações contra os cortes do governo. Agradecemos a todo o pessoal das escolas de arte ocupadas ou que logo serão ocupadas, que nos inspiraram a produzir e distribuir este texto.

A fonte tipográfica usada no original é a Calvert, de Margret Calvert, quem desenhou as placas das ruas inglesas. Quando ela desenhou a placa das crianças atravessando a rua, ela fez um esforço consciente em colocar a garota na frente do garoto.

 

Texto: Gavin Grindon & John Jordan

Illustrações: Richard Houguez

Desenho gráfico: Malcolm Naylor

Produzido pelo Labofii, Laboratory of Insurrectionary Imagination, Londres, Dezembro de 2010.

www.labofii.net

 

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A AGÊNCIA TRANSITIVA está produzindo este ano uma nova tradução, encomendada pelo artista mexicano Juan Pablo Macías, para a primeiro volume de seu projeto editorial WORD+MOIST PRESS. Essa tradução é a versão do português para o inglês do livro “A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos”, de José Oiticica, originalmente publicado em 1925, em fascículos, no jornal A Lanterna no Rio de Janeiro. O projeto de Juan Pablo Macías é comissionado e produzido com o apoio do Angelika Stepken da Villa Romana (Florença) em colaboração com Zirkumflex (Berlim).

 

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