08 | Dossiê

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Superando o Turismo

Superando o Turismo

Hakim Bey, texto

Michael Hughes, imagens

 

Nos Velhos Dias o turismo não existia. Ciganos, Tinkers [1] e outros nômades de verdade até hoje vagam por seus mundos à vontade, mas ninguém iria por isso pensar em chamá-los de “turistas”.

O turismo é uma invenção do século XIX – um período da história que algumas vezes parece ter se alongado em uma duração não natural. De várias formas, nós ainda estamos vivendo no século XIX.

O turista procura Cultura porquê – no nosso mundo – a cultura desapareceu no bucho do Espetáculo, a cultura foi destruída e substituída por um shopping ou um talk-show – porquê a nossa educação é nada mais que a preparação para uma vida inteira de trabalho e consumo – porquê nós mesmos cessamos de criar. Embora os turistas pareçam estar fisicamente presentes na Natureza ou na Cultura, na verdade pode-se chamá-los de fantasmas assombrando ruínas, sem nenhuma presença corpórea. Eles não estão lá de verdade, mas sim movem-se por uma paisagem mental, uma abstração (”Natureza”, ”Cultura”), coletando imagens mais que experiências. Muito frequentemente suas férias são passadas em meio à miséria de outras pessoas, inclusive somando-se aquela miséria.

Recentemente algumas pessoas foram assassinadas no Egito só por serem turistas. Contemple… o Futuro. Turismo e terrorismo – qual é mesmo a diferença?

série 'Souvenir', de Michael Hughes
Das três razões arcaicas para viagens – chamemos elas “guerra”, “troca” e “peregrinação” – qual deu a luz ao turismo? Alguns responderiam automaticamente que deve ser a peregrinação. O peregrino vai “lá” para ver, o peregrino normalmente traz na volta algum souvenir; o peregrino “dá um tempo” na vida diária; o peregrino tem objetivos não-materiais. Assim, o peregrino antecipa o turista.

Mas o peregrino passa por uma mudança na consciência, e para o peregrino essa mudança é real. A peregrinação é uma forma de iniciação, e iniciação é uma abertura para outras formas de cognição.

Podemos detectar algo da diferença entre o peregrino e o turista, contudo, comparando seus efeitos nos lugares que visitam. Mudanças em um local – uma cidade, um santuário, uma floresta – podem ser sutis, mas pelo menos podem ser observadas. O estado da alma pode ser uma questão de conjectura, mas talvez possamos dizer algo sobre o estado do (aspecto) social.

Locais de peregrinação como Meca podem servir como grandes bazares para troca. E eles podem até servir como grandes centros de produção, (como a indústria da seda em Benares) – mas seu “produto” primário é baraka, ou maria. Essas palavras (uma árabe, outra polinésia) são usualmente traduzidas como “benção”, mas elas também carregam uma carga de outros significados.

O dervixe [2] errante que dorme em um santuário para sonhar com um santo morto (um do “Povo das Tumbas”) procura iniciação ou avanço no caminho espiritual; uma mãe que leva uma criança doente a Lurdes [3] procura cura; uma mulher sem filhos no Marrocos espera que o Marabout [4] a torne fértil se ela amarrar um trapo na velha árvore que cresce sobre a cova; o viajante para Meca anseia pelo próprio centro da Fé, e quando a Cidade Sagrada entra no campo de visão das caravanas o hajj entoa “Labbaika Allabumma!”, “Eu estou aqui, Ó Senhor!”

Todos esses motivos são reunidos pela palavra baraka, que às vezes parece ser uma substância palpável, mensurável em termos de aumento de carisma ou “sorte”. O santuário produz baraka. E o peregrino leva embora. Mas benção é um produto da Imaginação – e assim não importa quantos peregrinos levem-na embora, sempre há mais. Na verdade, quanto mais eles levam, mais benção o santuário pode produzir (pois um santuário popular cresce com cada prece atendida).

Dizer que baraka é “imaginária” não é chamá-la de “irreal”. Ela é real o bastante para aqueles que a sentem. Mas bens espirituais não seguem as regras de oferta e demanda como os bens materiais. Quanto maior a demanda por bens espirituais, maior a oferta. A produção de baraka é infinita.

Em contraste, o turista não deseja baraka, mas diferença cultural. O peregrino – podemos dizer – deixa o “espaço secular” do lar e viaja para o ”espaço sagrado” do santuário para experimentar a diferença entre “secular” e “sagrado”. Mas essa diferença permanece intangível, sutil, invisível ao olhar “profano”, espiritual, imaginário. A diferença cultural, contudo, é mensurável, aparente, visível, material, econômica, social.

A imaginação do “primeiro mundo” capitalista está exaurida. Ela não pode imaginar nada diferente. Então o turista deixa o espaço homogêneo do “lar” pelo espaço heterogêneo dos “climas estrangeiros” não para receber uma “    benção”, mas simplesmente para admirar o pitoresco, a mera visão ou instantâneo da diferença, para ver a diferença.

O turista consome diferença.

série 'Souvenir', de Michael Hughes
Mas a produção de diferença cultural não é infinita. Ela não é “meramente” imaginária. Tem raízes na linguagem, paisagem, arquitetura, costume, gosto, cheiro. É muito física. Quanto mais ela é desgastada ou levada embora, menos sobra. O social pode produzir só certa quantia de “significado”, só certa quantia de diferença. Quando ela acaba, acaba.

No decorrer dos séculos, talvez, um dado lugar sagrado tenha atraído milhões de peregrinos – e ainda assim, de algum modo, apesar de toda a contemplação e admiração e reza e compra de souvenirs – o lugar reteve seu significado. E agora – depois de 20 ou 30 anos de turismo – esse significado se perdeu. Aonde ele foi? Como isso aconteceu?

As verdadeiras raízes do turismo não se encontram na peregrinação (ou mesmo na troca “justa”), mas na guerra. Estupro e pilhagem foram as formas originais de turismo, ou melhor, os primeiros turistas seguiram diretamente rumo à agitação da guerra, como urubus humanos procurando em meio à carniça do campo de batalha por um butim imaginário – por imagens.

O turismo surgiu como um sintoma de um Imperialismo que era total – econômico, político e espiritual.

O que é realmente incrível é que tão poucos turistas tenham sido assassinados por tal mísero punhado de terroristas. Talvez uma cumplicidade secreta exista entre esses reflexos opostos. Ambos são gente sem lugar, soltos de todas as âncoras, à deriva num mar de imagens. O ato terrorista exista apenas na imagem do ato – sem a CNN, sobrevive apenas um espasmo de crueldade sem sentido. E os atos do turista existem apenas nas imagens desse ato, os instantâneos e souvenirs; de outro modo nada resta a não ser as cobranças em cartas de companhias de cartão de crédito e um resíduo de “milhas grátis” de alguma companhia aérea em colapso. O terrorista e o turista são talvez os mais alienados de todos os produtos do capitalismo pós-imperial. Um abismo de imagens os separa dos objetos de seu desejo. De uma forma estranha, eles são gêmeos.

Nada nunca toca realmente a vida de um turista. Todo ato do turista é mediado. Qualquer um que já tenha testemunhado uma falange de americanos ou japoneses que encheriam um ônibus avançando sobre alguma ruína ou ritual deve ter notado que até o olhar coletivo deles é mediado pelo meio do olho multi-facetado da câmera, e que a multiplicidade de câmeras, videocâmeras e gravadores forma um complexo de brilhantes e clicantes escamas, uma armadura de mediação pura. Nada orgânico penetra essa carapaça insetóide que serve tanto como casca protetora quanto como mandíbula predadora, abocanhando imagens, imagens, imagens. No seu extremo essa mediação toma a forma do passeio guiado, em que toda imagem é interpretada por um especialista licenciado, um condutor de almas ou guia dos Mortos, um Virgílio virtual no Inferno da ausência de sentido – um funcionário menor do Discurso Central e sua metafísica da apropriação – um cafetão de êxtases não-corpóreos.

O verdadeiro espaço do turista não é a locação do exótico, mas sim o lugar-sem-lugar (literalmente a “utopia”) do espaço mediano, espaço limiar, entre-espaço – o espaço da própria viagem, a abstração industrial do aeroporto, ou a dimensão maquinal do avião ou ônibus.

Então o turista e o terrorista – esses fantasmas gêmeos dos aeroportos da abstração – sofrem uma fome idêntica pelo autêntico. Mas o autêntico se retira sempre que eles se aproximam. Câmeras e armas ficam no caminho daquele momento de amor que é o sonho escondido de todo terrorista e turista. Para sua miséria secreta, tudo o que eles podem fazer é destruir. O turista destrói significado, e o terrorista destrói o turista.

O turismo é a apoteose e a quintessência do “fetichismo da mercadoria”. É o Cargo Cult [5] definitivo – a adoração de “bens” que nunca chegarão, porque foram exaltados, elevados à glória, deificados, adorados e absorvidos, tudo no plano do espírito puro, além do fedor da mortalidade (ou moralidade).

Você compra turismo – você leva nada além de imagens. Turismo, como a Realidade Virtual, é uma forma de Gnose, de desprezo-ao-corpo e transcendência do corpo. A “viagem” turística definitiva terá lugar no Cyberespaço, e será CyberGnose – uma ida e volta ao parinirvana no conforto de sua própria “central de trabalho”. Pluga aí, deixa a Terra pra trás!

O modesto objetivo desse livrinho é se dirigir ao viajante individual que decidiu resistir ao turismo.

Ainda que no fim nós descubramos ser impossível “purificar” nós mesmos e nossa viagem de toda mancha e traço do turismo, ainda sentimos que uma melhora pode ser possível.

Nós não apenas desdenhamos o turismo por sua vulgaridade e sua injustiça, e por isso desejamos evitar qualquer contaminação (consciente ou inconsciente) por sua virulência viral – nós também ousamos entender a viagem como um ato de reciprocidade mais que de alienação. Em outras palavras, nós não desejamos meramente evitar as negatividades do turismo, mas ainda mais atingir a viagem positiva, que visualizamos como uma relação produtiva e mutuamente aperfeiçoadora entre eu e outro, hóspede e anfitrião – uma forma de sinergia inter-cultural em que o todo excede a soma das partes.

Nós gostaríamos de saber se a viagem pode ser realizada de acordo com uma economia secreta de baraka, de acordo com a qual não apenas o templo mas também os peregrinos tenham “bênçãos” a aspergir.

Antes da Era da Mercadoria, nós sabemos, houve uma Era do Presente, da reciprocidade, do dar e receber. Nós aprendemos isso dos contos de certos viajantes, que encontraram restos do mundo do Presente entre certas tribos, na forma de potlach [6] ou trocas rituais, e registraram suas observações de práticas tão estranhas.

Não há muito tempo atrás ainda existia um costume entre ilhéus do Mar do Sul de viajar vastas distâncias por canoas apoiadas por bóias, sem compasso ou sextante, com o fim de trocar presentes valiosos e inúteis (objetos de arte cerimoniais ricos em mana) de ilha a ilha num padrão complexo de reciprocidades sobrepostas [7].

Suspeitamos que muito embora a viagem no mundo moderno parece ter sido apropriada pela Mercadoria – muito embora as redes de reciprocidade convival pareçam ter sumido do mapa – muito embora o turismo pareça ter vencido – ainda assim – nós continuamos a suspeitar que outros caminhos ainda persistem, outras estradas, não-oficiais, não marcadas no mapa, talvez até mesmo “secretos” caminhos ainda ligados a possibilidade de uma economia do Presente, rotas de contrabandistas para espíritos livres, conhecidos apenas pelas guerrilhas geomânticas [8] da arte da viagem.

Na verdade, nós não apenas “suspeitamos” disso. Nós sabemos disso. Nós sabemos que existe uma arte da viagem.

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Talvez os maiores e mais sutis praticantes da arte da viagem tenham sido os sufis, os místicos do Islã. Antes da era dos passaportes, imunizações, linhas aéreas e outros impedimentos à viagem livre, os sufis perambulavam descalços em um mundo onde fronteiras tendiam a ser mais permeáveis que hoje em dia, graças ao transnacionalismo do Islã e à unidade cultural do Dar al-Islam, o mundo islâmico.

Os grandes viajantes islâmicos medievais, como Ibn Battuta e Naser Khusraw, deixaram registros de várias jornadas – da Pérsia ao Egito, ou mesmo do Marrocos a China – que nunca saíam de uma paisagem de desertos, camelos, praças de caravana, bazares, e diligência. Alguém sempre falava árabe, embora mal, e a cultura islâmica permeava os mais remotos lugarejos, embora superficialmente. Ler os contos de Sinbad o Marujo (das 1001 Noites) nos dá a impressão de um mundo onde até a terra incógnita era estática – apesar de todas as maravilhas e estranhezas – de algum modo familiar, de algum modo islâmica. Dentro dessa unidade, que ainda não era uma uniformidade, os sufis formavam uma classe especial de viajantes. Não guerreiros, não mercadores, e não muito bem peregrinos ordinários também, os dervixes representam a espiritualização do nomadismo puro.

De acordo com o Corão, a Grande Terra de Deus e tudo nela são “sagrados”, não apenas como criações divinas mas também porquê o mundo material está cheio de “indicadores”, ou sinais de realidade divina. Ainda mais, o próprio Islã nasce entre duas jornadas , a hijra de Maomé (ou “vôo” de Meca a Medina) e sua hajj, ou viagem de volta. A hajj é o movimento em direção a origem e ao centro para cada muçulmano até hoje, e a peregrinação anual tem cumprido papel vital não apenas na unidade religiosa do Islã, mas também em sua unidade cultural.

O próprio Maomé exemplifica cada tipo de viagem no Islã: sua juventude com as caravanas do Verão e do Inverno, de Meca, como mercador; suas campanhas como guerreiro; seu triunfo como um humilde peregrino. Embora um líder urbano, ele também é o profeta do beduíno e ele mesmo é um tipo de nômade, um “hóspede temporário” [9] – um “órfão”. Dessa perspectiva a viagem quase pode ser vista como um sacramento. Toda religião santifica a viagem em algum grau, mas o Islã é virtualmente inimaginável sem ela.

O Profeta disse: “Procure o conhecimento, mesmo longe como a China”. Desde o início o Islã eleva a viagem sobre todo o utilitarismo “mundano”e dá a ela uma dimensão epistemológica ou até mesmo gnóstica. “A jóia que nunca deixa a mina nunca é polida”, diz o sufi Saadi. “Educar” é “indicar a saída”, dar ao pupilo uma perspectiva além da paroquialidade e mera subjetividade.

Alguns sufis podem ter feito todas as suas viagens no Mundo Imaginário dos sonhos arquetípicos e visões, mas um grande número deles tomou as exortações do Profeta bem literalmente. Até hoje dervixes perambulam por todo o mundo islâmico – mas até o século XIX eles perambulavam em verdadeiras hordas, centenas ou até milhares de uma vez, e cobriam vastas distâncias. Todos em busca de conhecimento.

Extra-oficialmente existiam dois tipos básicos de perambulação sufi: o tipo “cavalheiro acadêmico” e o dervixe mendicante. A primeira categoria inclui Ibn Battuta (que colecionou iniciações sufi da forma que alguns cavalheiros ocidentais já colecionaram graus maçônicos); e – num nível muito mais sério – o ”Maior Xeque” Ibn Arabi, que circulou lentamente pelo século 13 de sua nativa Espanha através do norte da África, pelo Egito até Meca e finalmente até Damasco.

Na verdade Ibn Arabi deixou registros de sua procura por santos e aventureiros na estrada, que puderam ser coletados de seus volumosos escritos para formar um tipo de rihla, ou “texto de viagem” (um gênero reconhecido da literatura islâmica), ou autobiografia. Acadêmicos comuns viajaram à procura de textos raros sobre teologia ou jurisprudência, mas Ibn Arabi procurou apenas os mais altos segredos do esoterismo e as mais elevadas “aberturas” para o mundo da iluminação divina; para ele toda “jornada aos horizontes exteriores” era também uma “jornada aos horizontes interiores” da psicologia espiritual a da gnose.

Apenas das visões que experimentou em Meca ele escreveu um trabalho de 12 volumes (As revelações de Meca), e também deixou esboços preciosos de centenas de seus contemporâneos, dos maiores filósofos da época a humildes dervixes e “loucos”, mulheres anônimas, santos e “Mestres Escondidos”. Ibn Arabi gozou de uma relação especial com Khzer, o imortal e desconhecido profeta, o “Homem Verde”, que algumas vezes aparece para sufis andarilhos em dificuldade, para resgatá-los do deserto ou para iniciá-los. Khzer, de certa maneira, pode ser chamado de santo padroeiro dos dervixes viajantes – e seu protótipo. (Ele apareceu pela primeira vez no Corão como um andarilho misterioso e companheiro de Moisés no deserto).

O Cristianismo já incluiu umas poucas ordens de mendicantes andarilhos (de fato, São Francisco organizou uma depois de encontrar com dervixes na Terra Sagrada, que podem tê-lo presenteado com uma “túnica de iniciação” – a famosa túnica de retalhos que ele usava quando voltou à Itália), mas o Islã gerou dúzias, talvez centenas dessas ordens.

Enquanto o Sufismo cristalizava da frouxa espontaneidade dos primeiros dias para uma instituição com regras e graus, a “viagem por conhecimento” também foi regularizada e organizada. Manuais elaborados de deveres para dervixes foram produzidos, incluindo métodos para tornar a viagem numa forma de meditação muito específica. Todo o próprio “caminho” sufi foi simbolizado em termos de uma viagem intencional.

Em alguns casos itinerários eram fixados (por exemplo, a Hajj); outros envolviam espera pela aparição de “sinais”, coincidências, intuições, “aventuras” como aquelas que inspiraram as viagem dos cavaleiros arturianos. Algumas ordens limitavam o tempo gasto em um lugar a 40 dias; outras fizeram uma regra de nunca dormir duas vezes no mesmo lugar. As ordens severas, como a dos Naqshbandis, transformaram a viagem em um tipo de coreografia em tempo integral, na qual todo movimento era pré-ordenado e feito para aperfeiçoar a consciência.

Em contraste, as ordens mais heterodoxas (como a dos Qalandars) adotaram uma “regra” de total espontaneidade e abandono – “desemprego permanente”, como um deles chamava – uma distração de proporções boêmias – um “cair fora” ao mesmo tempo escandaloso e completamente tradicional. Vestidos de maneira colorida, carregando suas tigelas de esmola, machados e estandartes, devotos da música e da dança, despreocupados e alegres (algumas vezes ao ponto de serem dignos de repreensão!), ordens como a dos Nematollahis da Pérsia do século XIX cresceram a proporções que alarmaram sultões e teólogos – muitos dervixes foram executados por “heresia”. Hoje, os verdadeiros Qalandars sobrevivem principalmente na Índia, onde seus desligamentos da ortodoxia incluem a apreciação pela maconha e o sincero ódio ao trabalho. Alguns são charlatães, alguns são simplesmente mendigos – mas um número surpreendente deles parece ser gente de sucesso… como posso colocar isso?… gente de auto-realização, marcada por uma distinta aura de graça, ou baraka.

Todos os diferentes tipos de sub viagem que descrevemos são unidos por certas forças estruturais e vitais compartilhadas. Tal forças pode ser chamada de uma visão de mundo “mágica”, uma percepção da vida que rejeita o “meramente” aleatório em favor de uma realidade de sinais e maravilhas, de coincidências cheias de significado e “descobertas”. E qualquer um que já tenha experimentado isso testemunhará, a viagem intencional imediatamente expõe uma pessoa a essa influência “mágica”.

série 'Souvenir', de Michael Hughes
Um psicólogo poderia explicar esse fenômeno (com adoração ou com desdém reducionista) como “subjetivo”, enquanto o crente pio o tomaria como literal. Do ponto de vista do Sol nenhuma interpretação domina a outra, nem é suficiente em si mesma, para explicar as maravilhas do Caminho. No sufismo, o “objetivo” e o “subjetivo” não são considerados opostos, mas complementos. Do ponto de vista do pensador bi-dimensional (científico ou religioso) tal paradoxo cheira a proibido.

Outra forças subjacente a todas as formas de viagem intencional pode ser descrita pela palavra árabe adab. Em um nível adab significa simplesmente ”boas maneiras”, e no caso de viagem essas maneiras são baseadas nos costumes antigos dos nômades do deserto, para quem perambulação e hospitalidade são atos sagrados. Nesse sentido o dervixe compartilha tanto os privilégios quanto as responsabilidades do hóspede.

A hospitalidade beduína é uma nítida sobrevivente da economia primordial do Presente – uma relação de reciprocidade. O andarilho deve ser aceito (o dervixe deve ser alimentado) – mas por isso o andarilho assume o papel prescrito pelo costume antigo – e deve dar algo em troca ao anfitrião. Para o beduíno essa relação é quase uma forma de “freguesia”: o partir do pão e a partilha do sal constituem uma forma de relação familiar. Gratidão não é uma reação suficiente a tal generosidade. O viajante deve consentir em uma adoção temporária – menos que isso seria uma ofensa ao adab.

A sociedade islâmica retém no mínimo uma ligação sentimental com essas regras, e por isso cria um nicho especial para o dervixe, o do hóspede em tempo integral. O dervixe retribui o presente da sociedade com o presente da baraka. Na peregrinação comum o viajante recebe baraka de um lugar, mas o dervixe reverte o fluxo e trazbaraka a um lugar. O sufi pode pensar em si mesmo (ou si mesma) como um peregrino permanente – mas para o povo comum e caseiro do mundo cotidiano o sufi é um tipo de santuário (per)ambulante.

Agora o turismo em sua própria estrutura quebra a reciprocidade entre anfitrião e hóspede. Em inglês, um “hospedeiro” (host) pode ter hóspedes – ou parasitas. O turista é um parasita – pois nenhuma quantia de dinheiro pode pagar por hospitalidade. O verdadeiro viajante é um hóspede e por isso serve a uma função muito real, até hoje, em sociedades nas quais ideais de hospitalidade ainda não desapareceram da “mentalidade coletiva”. Ser um anfitrião, nessas sociedades, é um ato meritório. Então, ser um hóspede é também conferir mérito.

O viajante moderno que “pega” o espírito simples dessa relação será perdoado dos muitos lapsos no intrincado ritual do adab (Quantas xícaras de café? Onde se põe os pés? Como ser divertido? Como demonstrar gratidão?, etc), peculiar a uma cultura específica. E se alguém se der ao trabalho de dominar algumas das formas tradicionais do adab, e empregá-las com sinceridade vinda do coração, então tanto hóspede como anfitrião ganharão mais do que colocaram na relação, e esse mais é o sinal inconfundível da presença do Presente.

Outro nível de significado da palavra “adab” a conecta com cultura (já que cultura pode ser vista como a soma de todas as “maneiras” e costumes); na utilização moderna o Departamento de “Artes e Letras” em uma Universidade seria chamado de Adabiyyat. Ter adab, nesse sentido, é ser “polido” (como aquela gema bem viajada) -, mas isso não tem nada a ver necessariamente com “belas artes” ou com ser letrado, ou com ser um urbanóide ou mesmo “culto”. É uma questão do “coração”.

“Adab” é algumas vezes resumido pela palavra cisma. Mas modos insinceros (ta’arof, em persa) e cultura insincera são igualmente evitados pelos sufi – “Não há ta’arof no Tasssawuf (Sufismo)”, como os dervixes dizem; ”Darvishi” é um adjetivo sinônimo de informalidade, a qualidade relaxada do povo do Coração – e para adab espontâneo, por assim dizer. Os verdadeiros hóspedes e anfitriões nunca fazem um esforço óbvio para cumprir as “regras” da reciprocidade – eles podem seguir o ritual criteriosamente ou podem mudar os modos criativamente, mas em qualquer caso eles darão a suas ações uma profunda sinceridade quem se manisfesta como graça natural. “Adab” é um tipo de amor.

Um complemento dessa “técnica” (ou ”Zen”) das relações humanas pode ser encontrado na maneira como os sufis se relacionam com o mundo em geral. O mundo “cotidiano” – da falsidade social e negatividade, das emoções usurárias, da consciência inautêntica (“mauvaise conscience”), grosseria, má vontade, desatenção, reação impulsiva, falso espetáculo, discurso vazio, etc, etc – tudo isso não mais guarda interesse para o dervixe viajante. Mas aqueles que dizem que o dervixe abandonou “esse mundo”, a “Grande Terra de Deus” – estão enganados.

O dervixe não é um gnóstico dualista que odeia a biosfera (que certamente inclui a imaginação e as emoções, assim como a própria “matéria”). Os primeiros muçulmanos ascetas certamente se fecharam para tudo. Quando Rabiah, a santa de Basra, foi convocada para sair de sua casa e “testemunhar as maravilhas das criações de Deus”, ela respondeu: “Venham para dentro da casa e vejam-nas”, isto é, venham para dentro do coração da contemplação, da unidade que está acima da pluralidade da realidade. “Contração” e “Expansão” são ambos termos sufi para estados espirituais. Rabiah estava manifestando a Contração: um tipo sagrado de melancolia que foi metaforizado como a ”Caravana do Inverno”, do retorno à Meca (o centro, o coração), da inferioridade e do ascetismo ou auto-negação. Ela não era uma dualista que odiava o mundo, nem mesmo uma puritana moralista inimiga da carne. Ela estava simplesmente manifestando um certo tipo de graça específica.

O dervixe viajante, contudo, manifesta um estado mais típico do Islã em suas energias mais exuberantes. Ele de fato procura a Expansão, alegria espiritual baseada na verdadeira multiplicidade da generosidade divina na criação material. (Ibn Arabi tem uma divertida “prova” de que esse mundo é o melhor mundo – pois, se não fosse, então Deus não seria generoso – o que é absurdo. Q.E.D.[10]). De modo a apreciar os múltiplos indicadores da Grande Terra precisamente como o desenvolvimento dessa generosidade, o sufi cultiva o que pode ser chamado de olhar teofânico: a abertura do “Olho do Coração” às experiências de certos lugares, objetos, pessoas, eventos, como locações da “passagem do brilho” da Luz divina.

O dervixe viaja, por assim dizer, tanto no mundo material como no “Mundo da Imaginação”, simultaneamente. Mas para o olho do coração esses mundos se interpenetram em alguns pontos. Pode-se dizer que eles se revelam ou “desvelam” mutuamente. No fim, eles são “um” – e só nosso estado de desatenção hipnotizada, nossa consciência mundana, nos impede de experimentar essa identidade “profunda” a todo momento. O propósito da viagem intencional, com suas ”aventuras” e seu desenraizamento de hábitos, é arrebatar o dervixe de todos os efeitos hipnóticos da ordinariedade. A viagem, em outras palavras, é para induzir um certo estado de consciência, ou “estado espiritual” – o da Expansão.

Para o andarilho, cada pessoa que se encontra age como um “anjo”, cada templo que se visita pode destrancar algum sonho iniciático, cada experiência da Natureza pode vibrar com a presença de algum “espírito ou lugar”. De fato, até o mundano e ordinário pode de repente ser visto como elevado (como no grande haiku de viagem do poeta Zen japonês Bashô) – um rosto na multidão ou uma estação de trem, corvos em fios telefônicos, brilho do sol em uma poça…

Obviamente ele não precisa viajar para experimentar esse estado. Mas a viagem pode ser usada – isto é, uma arte da viagem pode ser adquirida – para maximizar as chances de atingir tal estado. É uma meditação em movimento, como as artes marciais taoístas. A Caravana do Verão seguia em frente, para fora de Meca, para as ricas tradições da Síria e do Iêmen. Do mesmo modo o dervixe está “movendo-se para fora” (é sempre “dia da mudança”), indo para a frente, partindo, em “feriado perpétuo”, como um poeta expressou, com um Coração aberto, um olho atento (e outros sentidos), um desejo por significado, uma sede de conhecimento. Deve-se ficar alerta, já que qualquer coisa pode de repente revelar-se como um sinal. Isso soa como um tipo de “paranóia” -embora “metanóia” talvez seja um termo melhor – e de fato encontra-se “loucos” entre os dervixes, “os atraídos”, inundados por influxos divinos, perdidos na Luz. No Oriente os insanos são cuidados e admirados como santos indefesos, porque a “doença mental” algumas vezes pode aparecer como um sintoma de muita santidade mais que de pouca “razão”. A popularidade da maconha entre os dervixes pode ser atribuída ao seu poder de induzir um tipo de atenção intuitiva que constitui uma insanidade controlada: – metanóia herbal. Mas a viagem em si pode intoxicar o coração com a beleza da presença teofânica. É uma questão de prática – o polimento da jóia – de remoção do musgo da pedra rolante.

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Nos velhos dias (que ainda estão acontecendo em algumas partes remotas do Leste) o Islã pensava em si mesmo como um mundo inteiro, um mundo vasto, um espaço com grande latitude, dentro do qual o Islã abraçava o todo da sociedade e da natureza. Essa latitude aparecia em nível social como tolerância. Havia espaço o bastante, até para tais grupos marginais como dervixes loucos andarilhos. O próprio sufismo – ou pelo menos sua ortodoxia austera e seu aspecto “sóbrio” – ocupava uma posição central no discurso cultural. “Todo mundo” entendia a viagem intencional pela analogia com a chuva de granizo – todos entendiam os dervixes, mesmo que os desaprovassem.

Hoje em dia, entretanto, o Islã vê a si mesmo com um mundo parcial, cercado de infiéis e hostilidade e sofrendo rupturas internas de toda sorte. Desde o século 19 o Islã perdeu sua consciência global e o senso de sua própria vastidão e completude. Por isso o Islã não pode mais achar facilmente um lugar para todo indivíduo e grupo marginalizado, em um padrão de tolerância e ordem social. Os dervixes agora aparecem como uma diferença intolerável na sociedade. Todo muçulmano deve agora ser o mesmo, unido contra todos os forasteiros e gerados do mesmo protótipo. Claro que os muçulmanos sempre “imitaram” o Profeta e viram Sua imagem como a norma – e isso agiu como uma poderosa forças unificadora para o estilo e substância dentro do Dar al-Islam. Mas “hoje em dia” os puritanos e reformadores esqueceram que essa “imitação” não foi dirigida apenas a um mercador do início da Idade Média chamado Maomé, mas também ao insan al-kamil (o “Homem Perfeito” ou “Humano Universal”), um ideal de inclusão mais que de exclusão, um ideal de cultura integral, não uma atitude de pureza em perigo, não uma xenofobia disfarçada de piedade, não o totalitarismo, não a reação.

O dervixe é perseguido hoje em dia na maior parte do mundo islâmico. O Puritanismo sempre abraçou os aspectos mais atrozes do modernismo em sua cruzada de despir a Fé de “adesões medievais” como o sufismo popular. E certamente o caminho do dervixe andarilho não pode prosperar em um mundo de aviões e poços de petróleo, de hostilidades nacionalistas/chauvinistas (e por isso de fronteiras impenetráveis), e do puritanismo que suspeita de toda diferença como de uma ameaça. Esse puritanismo triunfou não só no Leste, mas bem perto de casa também. Ele é visto no “tempo da disciplina”do capitalismo muito tardio moderno, e na rigidez porosa da hiperconformidade consumista, e também na reação hipócrita e na histeria sexual da “Direita Cristã”. Onde, em tudo isso, podemos encontrar espaço para a poética (e parasitária!) vida da Perambulação Sem Rumo – a vida de Chuang Tzu (que cunhou esse slogan) e seus frutos taoístas – a vida de São Francisco e seus devotos descalços – a vida de (por exemplo) Nur All Shah Isfahani, um poeta sufi do século 19 que foi executado no Irã pela horrível heresia do dervixismo andarilho?

Aqui está o outro lado do “problema do turismo”: o problema do desaparecimento da “perambulação sem rumo”. Possivelmente os dois estão diretamente relacionados, de modo que quanto mais o turismo se torna possível, mais o dervixismo se torna impossível. Na verdade, podemos muito bem perguntar se esse pequeno ensaio sobre a deliciosa vida dos dervixes possui o menor traço de relevância no mundo contemporâneo. Poderá esse conhecimento nos ajudar a superar o turismo, mesmo dentro da nossa própria consciência e vida? Ou é meramente um exercício de nostalgia por possibilidades perdidas – uma indulgência fútil de romantismo?

Bem, sim e não. Claro, eu confesso que sou um romântico sem cura sobre a forma da vida dervixe, ao ponto de que por um tempo eu virei minhas costas ao mundo cotidiano e a segui eu mesmo. Porque claro, ela não desapareceu realmente. Decadente sim – mas não desaparecida para sempre. O pouco que eu sei sobre viagens aprendi naqueles poucos anos – tenho um débito com as “adesões medievais”que nunca conseguirei pagar – e eu nunca vou me arrepender do meu “escapismo” por um momento sequer. Mas eu não considero a forma do dervixismo como a resposta para o “problema do turismo”. A forma perdeu sua eficácia. Não há sentido em tentar “preservá-la” (como se fosse um picles, ou um espécime de laboratório) – não há nada tão patético quanto a mera “sobrevivência”.

Mas: por baixo das charmosas formas exteriores do dervixismo está a matriz conceitual, por assim dizer, que nós chamamos de viagem intencional. Nesse ponto nós não deveríamos sofrer nenhuma vergonha da “nostalgia”. Nós nos perguntamos se queremos e vamos superar “o turista interior”, a falsa consciência que nós separa da experiência dos sinais da Grande Terra. O caminho do dervixe (ou do taoísta, ou do franciscano, etc.) nos interessa – finalmente – não só na medida que pode nos prover com uma chave – não A chave, talvez – mas… uma chave. E claro – ele provê.

Uma chave fundamental para o sucesso na Viagem é, claro, a atenção. Nós chamamos de “paying attention” em inglês e “prêter attention” em francês (em árabe, contudo, “dá-se atenção”), sugerindo que somos tão avaros com nossa atenção quanto somos com nosso dinheiro. Muito frequentemente parece que ninguém está “prestando atenção”, que todo mundo está poupando sua consciência – o quê? poupando pros tempos difíceis? – e jogando água no fogo do conhecimento por medo de todo o combustível disponível seja consumido em um único holocausto de saber intolerável.

Esse modelo de consciência parece suspeitamente “capitalista”, contudo – como se de fato nossa atenção fosse um recurso limitado, que uma vez esgotado fosse irrecuperável para sempre. Uma usura de percepção agora aparece: cobramos juros no nosso “pagamento de atenção”, como se ela fosse um empréstimo mais que um gasto. Ou como se nossa consciência fosse ameaçada por um entrópico heat-death, contra o qual a melhor defesa deve consistir em um desinteressante estado hipnótico de meia-atenção hesitante – uma miséria de recursos psíquicos – uma recusa de perceber o inesperado ou de saborear a miraculosidade do ordinário – uma falta de generosidade.

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Mas e se nós tratássemos nossas percepções como presentes em vez de pagamentos? E se nós déssemos nossa atenção em vez de pagá-la (paying it)? De acordo com a nova lei da reciprocidade, o presente é retribuído com um presente – não há gasto, nem falta, nem débito de capital, nem penúria, nem punição por dar nossa atenção e nem fim para a potencialidade da atenção.

Nossa consciência não é uma mercadoria, nem é um acordo contratual entre o ego cartesiano e o abismo do Nada, nem é simplesmente uma função de alguma máquina de carne com uma garantia limitada. Verdade, eventualmente nós nos desgastamos e quebramos. Em um certo sentido, a poupança das nossas energias faz sentido – nós nos “poupamos” para os momentos realmente importantes, as descobertas, as “experiências de pico”.

Mas se nós vermos a nós mesmos como bolsas de moeda vazias – se nós bloquearmos as “portas da percepção” como camponeses amedrontados pelos uivos de lobos boreais – se nós nunca “prestarmos atenção” – como iremos reconhecer a proximidade e o advento desses momentos preciosos, dessas aberturas? Nós precisamos de um modelo de cognição que enfatize a “mágica” da reciprocidade: – dar atenção é receber atenção, como se o universo de alguma maneira misteriosa retribuísse nossa cognição com um influxo de graça natural. Se nós convencêssemos que a atenção segue uma regra de “sinergia” mais que uma lei de investimento, nós poderíamos começar a superar em nós mesmos a banal mundanidade da desatenção cotidiana, e a nos abrir a ”estados mais elevados”.

Em qualquer caso, é o fato que, a não ser que aprendamos a cultivar tais estados, a viagem nunca vai significar mais que turismo. E para aqueles de nós que ainda não são adeptos da viagem Zen, o cultivo desses estados demanda de fato um gasto inicial de energia. Nós temos inibições a reprimir, hesitações a conquistar, hábitos de introversão e apego aos livros a quebrar, ansiedades a sublimar. Nossa consciência caseira de terceira classe parece segura e aconchegante comparada com os perigos e desconfortos da Estrada, com sua novidade eterna, sua constante demanda pela nossa atenção. O “medo da liberdade” envenena nosso inconsciente, apesar de nosso consciente desejo por liberdade na viagem. A arte que estamos procurando raramente ocorre como um talento natural. Ela deve ser cultivada – praticada – aperfeiçoada. Nós devemos conjurar a vontade da viagem intencional.

É um truísmo reclamar que a diferença está desaparecendo do mundo – e é verdade, também. Mas algumas vezes é incrível descobrir o quão auto-regenerativo e orgânico o diferente pode ser. Mesmo na América, terra dos shoppings e TVs, diferenças regionais não apenas sobrevivem mas sofrem mutações e prosperam nos interstícios, nas fissuras que zigue-zagueiam no monolito, por baixo da atenção do Olhar da Mídia, invisível até para a burguesia local. Se todo o mundo está se tornando unidimensional, nós precisamos olhar entre as dimensões.

Eu penso na viagem como fractal em sua natureza. Ela tem lugar fora do mapa como texto, fora do consenso oficial, como aqueles padrões escondidos e encravados que se aninham dentro das infinitas bifurcações das equações não-lineares, no estranho mundo da matemática do caos. Em verdade o mundo não foi completamente mapeado, porque as pessoas e suas vidas cotidianas foram excluídas do mapa, ou tratadas como “estatísticas sem rosto”, ou esquecidas. Nas dimensões fractais da realidade não-oficial todos os seres humanos – e até vários grandes lugares – continuam únicos e diferentes. “Puros” e “não corrompidos”? Talvez não. Talvez ninguém e lugar nenhum já tenham sido realmente puros. A pureza é um fogo-fátuo, e talvez até uma forma perigosa de totalitarismo. A vida é gloriosamente impura. A vida erra.

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Nos anos 50 do século 20 os situacionistas franceses desenvolveram uma técnica para viagem que chamam de derive, a “errância”. Eles estavam enojados consigo mesmos por nunca deixarem a rotina usual e os caminhos de suas vidas dirigidas pelo hábito; eles perceberam que nunca haviam visto Paris. Começaram a desenvolver expedições aleatórias e sem estrutura pela cidade, caminhando durante o dia, bebendo à noite, abrindo seus próprios mundinhos rígidos para uma terra incógnita de favelas, subúrbios, jardins e aventuras. Eles se transformaram em versões revolucionárias do famoso flaneur de Baudelaire, o caminhante ocioso, o sujeito desterrado do capitalismo urbano. A perambulação sem rumo deles virou uma prática de insurreição.

E agora, alguma coisa permanece possível – perambulação sem rumo, a errância sagrada. A viagem não pode ser confinada ao permissível (e agonizante) olhar do turista, para quem o mundo inteiro é inerte, um caroço de pitoresquidade, esperando para ser consumido – porque toda a questão da permissão é uma ilusão. Nós podemos emitir nossos próprios vistos de viagem. Nós podemos nos permitir participar, experimentar o mundo como uma relação viva e não como um parque temático. Nós carregamos dentro de nós mesmos os corações de viajantes, e não precisamos de experts para definir nossas complexidades mais que fractais, para “interpretar” por nós, para mediar nossas experiências por nós, para nos vender de volta as imagens de nossos desejos.

A errância sagrada é renascida. Mantenha-na secreta.

 

 

[1] Grupo étnico de andarilhos oriundo da Irlanda.

[2] A palavra dervixe descreve um sufi que está à porta da iluminação. Um sufi é um membro masculino da ordem dos dervixes rodopiantes, famosos em todo mundo. É um místico. A palavra sufi vem da palavra-raiz grega ‘sophos’ que significa sabedoria. (Segundo o Xeque Abdullah Khalis El-Mevlevi, “…a palavra sufi…[vem] da palavra árabe Sûf, que significa lã. Outra palavra para sufis é tassawwuf que significa ‘de lã’.”)

[3] Lourdes (em gascão Lorda; em português Lurdes) comunidade francesa situada no departamento dos Altos Pirineus, região do Midi-Pyrénées Um dos maiores centros de peregrinação do mundo católico junto a Fátima, Roma, Czestochowa, Guadalupe e Aparecida.

[4] Um santo ou hermitão muçulmano, especialmente no norte da África.

[5] Movimento religioso nativo encontrado na Melanésia que defende que, na virada do milênio, os espíritos dos mortos retornariam e trariam com eles cargas de bens modernos para distribuir entre seus parentes.

[6] Festa cerimonial certos povos nativos do noroeste da costa do Pacífico em que o anfitrião distribui presentes de acordo com o status de cada visitante.

[7] Para mais informação Malinowiski, Bronislaw Os Argonautas do Pacífico Sul Ocidental

[8] Relativo a “geomancia” – representação de divindado por linhas e formas, ou por características geográficas.

[9] Quod erat No “original”, sojourner.

[10] demonstrandum, (“que era pra ser demonstrado”).

 

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HAKIM BEY significa ‘O Senhor Juiz’ em turco. Acredita-se que seja o pseudônimo de Peter Lamborn Wilson (New York, 1945), teórico libertário, escritor e poeta norte-americano com notórias pesquisas em torno do sufismo, do anarquismo e das organização piratas. Em 1985, lançou o livro-manifesto T.A.Z. – Temporary Autonomous Zone (Zona Autônoma Temporária), obra que elogia o combate aos poderes estabelecidos a partir da criação voluntária e não-dogmatizada de espaços de ativismo efêmero, em constante processo de levante e dissolução. É considerado o pai ideológico dos hackers.

MICHAEL HUGHES estudou história em Londres, mas logo descobriu sua paixão pela fotografia. No início dos anos 80, foi morar em Berlim, onde trabalhou em diferentes projetos autorais assim como para renomados veículos como Stern, Spiegel, The Times e The Guardian. Mais tarde, ingressou no time da National Geographic. Em 1999, iniciou o projeto Souvenirs enquanto fotografava para um jornal finlandês em Mainz, Alemanha. As primeiras imagens produzidas foram então disponibilizadas no Flickr e, desde então, a série não parou de crescer. Em pouco tempo, os Souvenirs  de Michael se viralizaram e hoje a série já conta com mais de 10 milhões de acessos.

 

Traduzido por hudz (eu_hudz2@hotmail. com), com revisão de Felippe Schultz Mussel.