02 | Dossiê

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É possível matematizar a biologia?

É possível matematizar a biologia?

Gregory J. Chaitin, Bolsista CAPES (HCTE/UFRJ)
Virginia M. F. G. Chaitin, UFRJ
Ricardo Silva Kubrusly, UFRJ

Publicado originalmente no 12º Seminário Nacional de História da Ciência e da 
Tecnologia & 7º Congresso Latino-Americano de História da Ciência e da Tecnologia 
[Simpósio 11 – Estudos de história da filosofia da natureza dos séculos XVII e XVIII], 
em 2010.

 

Apesar de ainda estar aberto o conflito conceitual entre a filosofia mecânica dos séculos XVII e XVIII, coroada pela obra Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica (1687), e as ciências da vida, pode-se dizer que este conflito foi parcialmente resolvido pela Teoria da Evolução de Darwin. Em seu On the Origin of Species (1859), Darwin aproxima-se conceitualmente da mecânica estatística de Boltzmann (Vorlesungen über Gastheorie, 1896) uma vez que credita à aleatoriedade um papel fundamental no processo da vida. Outro exemplo de aproximação entre a física e a biologia é dado pela Termodinâmica (Rudolf Clausius, 1865) e seu conceito de entropia. Os organismos vivos reduzem sua entropia, aumentando a entropia do seu meio-ambiente.

Contudo, esta conciliação conceitual é parcial porque falta uma prova matemática de que o Design Inteligente não é necessário para explicar a diversidade e sofisticação que se vê na biosfera, ou seja, sua complexidade. Uma tentativa de preencher esta lacuna seria de criar uma biologia teórica que teria o mesmo estatuto matemático da física teórica.

Comparemos e contrastemos, inicialmente, o impacto, o grau de utilidade ou as possibilidades de emprego da matemática no desenvolvimento da física e da biologia. Na física, há equações simples que representam leis fundamentais. Na biologia não existem tais leis, não há uma equação simples para um organismo vivo. Na biologia todas as regras têm exceções, os organismos são extremamente complicados. As equações diferenciais ordinárias (leis da mecânica newtoniana) e parciais (leis dos campos eletromagnético de Maxwell, gravitacional de Einstein e psi-quântico de Schrödinger) têm grande utilidade na física.

Embora este tipo de matemática possa ser usado na biologia para descrever fenômenos tais como alterações de tamanho de população e variações na freqüência de determinados genes, o segredo da vida não está numa equação diferencial. Não há uma equação diferencial para descrever um organismo nem tampouco para a inovação que ocorre na evolução, ou seja, para a criatividade biológica.

No nível conceitual filosófico (epistêmico), a questão é se mutações aleatórias combinadas à pressão da seleção natural são suficientes, como acredita Darwin, para explicar a sofisticação e diversidade da vida no planeta, como ilustrado na sofisticação e biodiversidade amazônica, por exemplo. E esta questão remete à possibilidade de utilização do padrão-ouro da ciência moderna, uma prova matemática, para respondê-la. À primeira vista, esta possibilidade parece inalcançável dada a dificuldade de sequer formular esta questão matematicamente, que dirá respondê-la.

Contudo a tentativa de recorrer a uma prova matemática talvez não seja em vão. Recordemos as discussões sobre um novo conceito fundamental na biologia, o conceito de informação biológica e de como esta informação está representada no ADN. Recordemos também a metáfora do ADN como uma linguagem de programação, um programa, ou seja, um software digital para a vida. Estas idéias não empregam a matemática desenvolvida nos séculos XVII e XVIII nem tampouco equações diferencias, porém remetem a três áreas da matemática contemporânea: as teorias da computação, informação e complexidade.1

De um ponto de vista epistemológico a diferença mais notável entre a física e biologia é a enorme complexidade do campo da biologia. Os físicos ainda esperam por uma “teoria de tudo” que unificaria todo o conhecimento do campo da física num pequeno conjunto de equações simples e belas. E no que concerne à matemática? Como esta se compara à biologia?

Uma conexão básica e conceitual entre a biologia e a matemática surge dos trabalhos do famoso lógico matemático austríaco Kurt Gödel em 1931 (Teorema da Incompletude) e do não menos famoso cientista da computação inglês Alan Turing em 1936 (Problema da Parada).Combinando essas idéias com as da teoria da informação é possível mostrar o surpreendente resultado de que o campo da matemática também exibe uma altíssima complexidade, tal como o campo da biologia. A complexidade biológica já é bastante elevada porém a da matemática é ainda maior, por ser infinita. Para ilustrar, o genoma humano tem complexidade da ordem de 3 bilhões de bases que correspondem a 6 bilhões em bits (0,75 Gigabyte), enquanto os bits do valor numérico da probabilidade de parada Ômega, descoberta pela primeiro autor,3 são um exemplo de complexidade infinita e irredutível na matemática pura.

Esta é uma conexão básica entre a matemática e a biologia porque diz de algo fundamental que as duas compartilham, sua enorme complexidade. Mas, isso não é suficiente. O que dizer matematicamente sobre a evolução biológica? Para discutir a evolução matematicamente, para inaugurar um novo nível do diálogo entre a matemática e a biologia, propomos a “metabiologia”. 4, 5 e 6

Trata-se de uma tentativa de capturar matematicamente os princípios biológicos mais básicos da vida segundo Darwin, sem entrar em detalhes de morfologia e funcionamento dos organismos vivos nem tampouco no detalhamento de suas interações com o meio-ambiente. O que se pretende é modelar conceitos biológicos fundamentais matematicamente, ou seja, modelar os conceitos de evolução por mutações aleatórias e seleção natural. Como se trata de um trabalho em progresso, diversos modelos metabiológicos estão em processo de formulação, dentre os quais apresentamos o seguinte:

1a. Em lugar de modelar a evolução de organismos vivos, estuda-se um modelo da evolução de software mutante. Assim, o organismo é representado por um programa.

2a. A evolução aleatória ocorre devido a um desafio que exige criatividade matemática ilimitada porque o programa tem que resolver um problema cuja solução não pode ser obtida mecanicamente.

3a. O espaço de desenho dos organismos (organismos possíveis no modelo), equivale ao espaço de software, ou seja, de todos os algoritmos possíveis. Isto garante uma variabilidade mais que suficiente para modelar as mutações do genoma humano. Espera-se que o modelo não realize uma busca exaustiva em todas as possibilidades de algoritmos (genomas) porque somente uma fração infinitesimal das possibilidades de combinações do genoma humano (4 bases elevadas a 3 bilhões) poderiam haver ocorrido na superfície da Terra, no tempo de existência de vida (aproximadamente 4 bilhões de anos).

4a. A métrica desse espaço de possíveis desenhos é dada pela distância de mutação entre os organismos, ou seja, a diferença entre os códigos dos respectivos programas.

5a. Os organismos (programas) mutantes descrevem um caminho aleatório no espaço de software porém cada nova mutação só é válida se sua aptidão for maior que a da mutação anterior. A aptidão é dada pela resolução de um problema matemático cuja solução exige criatividade. Esta característica do modelo representa, de modo bastante simplificado, a competição e a adaptação ao ambiente.

Empregando esta abordagem metabiológica, é possível provar o teorema de que a evolução por mutações aleatórias frente a um desafio levará a uma quantidade ilimitada de criatividade matemático-biológica e a organismos-algoritmos com níveis de complexidade cada vez mais elevados.Ademais, o processo evolutivo não reinicia ab initio. Esta evolução com aptidão cada vez mais elevada é cumulativa, ou seja, tal como os seres biológicos, os organismos de software mutante contém sua história. E esta cumulatividade se manifesta quando somente um pequena parte do espaço de organismos possíveis é de fato percorrida. Isto porque, para nossa surpresa, apesar de o processo evolutivo ser aleatório, a exigência de aptidão crescente força o sistema a se autoorganizar, gerando a emergência de um tipo de inteligência. Este tipo de inteligência resulta num sistema que evolui mais rapidamente que uma busca aleatória exaustiva, que incluiria todas as possibilidades de organismos, porque o sistema além de memória tem inteligência para utilizá-la.

Em outra variação do modelo, também é possível provar o teorema de que a evolução por mutações aleatórias frente a um desafio levará a organismos-algoritmos com crescentes níveis de estruturação hierárquicas. Este teorema é importante porque diz respeito à estrutura hierárquica (intra e multicelular), uma característica fundamental e notória dos seres vivos.

Há dois processos em andamento aqui: o que vemos na história das idéias é, de um lado, uma maior aproximação metodológico-conceitual entre a física, a química e a biologia e, do outro, a migração para a matemática do conceito biológico fundamental da complexidade. Pode-se argumentar que estes resultados matemáticos nada dizem de organismos biológicos e que se referem apenas a estes estranhos modelos de organismos-algoritmos propostos pelos autores. Não concordamos. Acreditamos, isto sim, que o grau de extensão destes modelos a organismos vivos merece reflexão e discussão adicionais.

Além do mais, ressaltamos que a metabiologia tem o seu foco na criatividade biológica modelada pela criatividade matemática, enquanto a versão tradicional da teoria da evolução põe sua ênfase sobre a competição e sobrevivência do mais apto e, em suas versões matemáticas (Fisher-Wright-Haldane), discute a mudança na freqüência de genes e não o surgimento dos novos genes.

O fato de que a matemática contemporânea permite provar os resultados discutidos, sugere que o momento é propício para uma diálogo cada vez mais intenso entre a matemática e a biologia nos seu nível fundamental. Imaginamos que esses sejam apenas os primeiros passos numa longa caminhada mas acreditamos que há motivos para estarmos otimistas.

 

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Referências

1. CHAITIN, G. J., Thinking about Gödel and Turing: Essays on Complexity, 1970 – 2007, Singapore: World Scientific, 2006.

2. _________, COSTA, N., DORIA, F.A., Gödel’s Way: Exploits into an Undecidable World, CRC Press, 2012.

3. _________, Meta Mat! Em Busca do Ômega, São Paulo: Perspectiva, 2009.

4. _________, Evolution of Mutating Software, Bulletin of the European Association for Theoretical Computer Science 97, February 2009, pp. 157-164.

5. _________, Metaphysics, Metamathematics and Metabiology, em ZENIL, H., Randomness Through Computation, Singapore: World Scientific, 2011.

6. _________, Capítulo III: La Información Algorítmica como Concepto Fundamental en Física, Matemáticas y Biología em Matemáticas, Complejidad y Filosofía: Conferencias pronunciadas en Canadá y Argentina, Valparaíso: Midas, 2011.

7. _________, Proving Darwin: Making Biology Mathematical, New York: Pantheon, 2012.

 

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GREGORY CHAITIN é um argentino-americano matemático e cientista da computação. Durante anos foi pesquisador na IBM Thomas J. Watson Research Center. Atualmente é bolsista CAPES pelo Programa Professor Visitante Especial (PVE) no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – HCTE – UFRJ.

VIRGÍNIA CHAITIN é doutora em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – HCTE – UFRJ, onde atualmente cursa o pós-doutorado na área de Metabiologia.

RICARDO KUBRUSLY é matemático, poeta, professor, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – HCTE – UFRJ.

 

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