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On Subjectivity: reedição e ativação de arquivos na arte contemporânea

On Subjectivity:
estratégia de reedição e ativação de arquivos na arte contemporânea

Paula Alzugaray

 

 

O artista espanhol Antoni Muntadas é um arguto observador de paisagens midiáticas. Esse conceito foi cunhado por ele no final dos anos 1970, em alusão aos diversos suportes comunicativos que ele vê surgir e se desenvolver com rapidez naquele momento. Residente nos Estados Unidos desde 1971, ali ele se posiciona estrategicamente para observar a amplitude que a informação começa a ganhar, na passagem das mídias impressas às audiovisuais. Desde o início de sua atividade artística, portanto, ele se dedicaria a reler os jornais, as revistas semanais, a televisão, e outros sistemas de comunicação visual de grande circulação e penetração, até o aparecimento da internet. Suas releituras – que se traduzem na forma de instalações, vídeos, livros, intervenções urbanas e outros projetos – invariavelmente evidenciam a opacidade com que a informação opera estratégias de manipulação política, econômica ou mental dos espectadores. Atuante em um momento em que as artes visuais questionam o papel do espectador, retirando-o da posição passiva e atribuindo-lhe participação e co-autoria na obra de arte, Muntadas desloca essa discussão ao âmbito das mídias de comunicação.

Além de questionar as estratégias dos meios de comunicação tradicionais, Muntadas também propõe novas estruturas comunicativas, que funcionam como modelos alternativos de intercâmbio de informação. Esse é o caso de Cadaqués – Canal Local (1974) e de Barcelona Distrito Uno (1976), que foram experiências de televisão comunitária e ilegal, realizadas em parceria com habitantes do balneário da costa catalã e da cidade de Barcelona. Mas suas proposições de participação na obra de arte e nas mídias encontrariam forma mais complexa e sofisticada em On Subjectivity (1978).

Ao longo de um ano, entre junho de 1977 e 1978, Muntadas enviou fotografias por correio para 250 pessoas “envolvidas no mundo das imagens”. Em carta, solicitava que elas lhe mandassem de volta uma interpretação para essa imagem, que havia sido apropriada do livro The Best of Life, publicação com as melhores imagens da revista norte-americana Life, e cuja legenda havia sido removida pelo artista. Desprovidos de quaisquer outras informações ou textos explicativos sobre a imagem recebida, os colaboradores de Muntadas foram confrontados ao potencial discursivo da imagem per se. As mensagens dessas imagens consistiam em situações de guerra, conflito ou transformação social; grandes aglomerações de pessoas; oficiais em poses autoritárias; soldados erguendo bandeiras etc – um tipo de iconografia que no século 20 se fez habitual, graças ao avanço e à sofisticação dos meios de comunicação. Em carta, o artista descrevia as regras do jogo proposto:

Cinqüenta fotografias desse livro foram selecionadas para o projeto. Cada uma delas está sendo enviada para várias pessoas. As legendas para cada fotografia serão impressas anonimamente em uma publicação editada pelo Visual Language Workshop do MIT, quando o trabalho estará finalizado. Os nomes dos participantes serão listados, em ordem alfabética. (Muntadas, 2011: 61).

Segundo ele, o trabalho se completaria quando o respondente confrontasse sua legenda com as demais no livro de artista1. Para o crítico Jose Roca, curador da reedição do projeto On Subjectivity na Colômbia em 2010, o trabalho de 1978 constitui um momento fundamental do corpo da obra do artista, porque afirma-se como uma espécie de declaração de intenções e estratégias que serão utilizadas por ele ao longo das décadas seguintes: a desconstrução das mensagens dos meios de comunicação; a reflexão sobre os processos nos quais a informação pública passa por filtros de percepção e interpretação pessoal; e o jogo dialético entre subjetividade e objetividade.

Além das intenções apontadas por Roca, On Subjectivity conta também com um modus processual, coletivo e aberto, freqüente na maior parte da obra de Muntadas, na medida em que suas instalações sempre assimilam colaboradores locais e incorporam novos elementos, provenientes dos contextos onde são montadas. On Translation, por exemplo, é um projeto in progress desde 1990. Já ganhou diversas versões e também pode ser visto como continuidade e reação a Between the Frames (1983) e The File Room (1994).

De acordo com esse mesmo princípio de obra aberta e em movimento, o artista propõe, no prefácio de On Subjectivity, que um novo circulo de abordagens, leituras e interpretações seja “aberto aos novos leitores desta publicação” (Muntadas, 2001: 61). Dessa forma, a prática de releitura das mídias, instaurada pelo artista desde suas primeiras ações, agora é deslocada e atribuída ao participante de seu trabalho, convidado a registrar seu olhar pessoal sobre a produção fotojornalística. A obra foi reeditada em 2010 – uma resposta a esse convite – no contexto da cidade de Medellín, na Colômbia, a partir de uma seleção de fotos da revista Semana.

A instalação Semana…On Subjectivity (Colombia expuesta) pode ser vista como uma tradução intercultural do projeto original e funciona como um novo ciclo de leituras propostas pelo projeto. A liberdade de reedição se oferecia, afinal, como premissa e condição inerente à proposição original. Então, se por um lado, a fabricação coletiva desse trabalho faz dele uma obra aberta, que convida a ciclos de interpretações, por outro, mesmo depois de editado, o trabalho não termina e pode ser reeditado em novos contextos. Esse estado permanente de vir a ser nos leva ao conceito de inacabamento ou incompletude, enfatizado pela crítica Cecília Almeida Salles como condição inerente tanto aos processos de criação como ao conceito de rede.

Para além da centralidade que On Subjectivity tem na poética de Muntadas, portanto, o projeto se apresenta como indicial e representativo de importantes estratégias da arte contemporânea, por articular e discutir alguns de seus procedimentos centrais e impulsos dominantes, a saber: a acumulação e organização de imagens e informações recolhidas dos circuitos midiáticos; a reativação de arquivos; a problematização da memória; a constituição de memórias coletivas; a aspiração a práxis artísticas em rede; a discussão sobre arquiteturas da informação; e a ativação de procedimentos de crítica da imagem.

Além disso, por aludir à estrutura do pensamento digital e das dinâmicas de criação e comunicação em rede, hoje possibilitadas pelas novas mídias interativas, a obra On Subjectivity constitui uma ponte para a análise comparativa entre as práticas da “arte arquivista” e de uma “estética do banco de dados”.

 

Reedição – arquivos e a problematização da memória

Duas lógicas regem as práticas de arquivos. A primeira e mais antiga delas se pauta pelo critério do “princípio de procedência”, o que implica diretamente em formatos homogêneos, lineares e contínuos. O arquivo, tal como foi concebido em meados do século 19, na França, na Bavária e na Alemanha, tem um caráter físico relacionado à cultura objectual e à lógica dos sistemas de memória materiais. Segundo a historiadora Anna Maria Guasch, à diferença das bibliotecas, o modus do arquivo não se baseia em uma ordem semântica ou temática, mas no “princípio de procedência” (Provenienzprinzip), que estipula que os documentos devem estar dispostos em concordância com a ordem conforme foram acumulados no lugar de origem. Trata-se de um princípio de armazenamento no qual “a origem deve privilegiar a procedência mais que ao significado” (Guasch, 2011: 15). Graças a essa lógica de armazenamento, freqüentemente atribui-se ao arquivo a estrutura de um repositório inerte, onde se guardam documentos de acordo com as condições em que eles foram criados2.

A segunda lógica do arquivo surge em resistência à racionalidade hierárquica do “arquivo de procedência” e idealiza o arquivo como sistema aberto que facilita sistemas de relações múltiplas entre seus documentos – de forma que, mais que sequenciais e lineares, estes estejam dispostos a possibilidades recombinatórias. Esse outro modus, dotado de pulsões de heterogeneidade e descontinuidade, é o que vem pautando diversas práticas de arquivos realizadas nos campos da arte, da história da arte, do cinema e da literatura. Entre as quais, se destacam Mnemosine Atlas (1923 – 1929), de Aby Warburg; Passagens (1927– 1940), de Walter Benjamin – Atlas, de Gerhard Richter, e Histoire(s) du cinéma (1988-1998), de Jean-Luc Godard.

Nas 60 pranchas do projeto que ficou inconcluso com sua morte, Aby Warburg concebeu um novo modelo discursivo para a história da arte e um novo modelo cultural para a edição de imagens – diverso à fotomontagem, praticada por seus contemporâneos. Em iniciativa inédita e controversa, criou um sistema iconográfico de escritura da história da arte. Controversa porque, afinal, como aponta Arlindo Machado, “a história das imagens esteve quase sempre associadas às atividades marginais ou clandestinas” (Machado, 2001: 13).

Naquele início do século 20, Warburg estava sintonizado com a eloqüência de métodos iconográficos adotados pela ciência do século 19 – métodos que consideravam a imagem não como mera ilustração, mas como escritura. Aponta Arlindo Machado, baseado no texto Écriture et iconographie (1973), do pensador francês François Dagnonet, que naquele momento as ciências da natureza buscavam superar imprecisões e excessos retóricos do discurso verbal por meio de escrituras alternativas, como diagramas, mapas, proposições lógicas, equações matemáticas e fórmulas químicas. O Mnemosine Atlas de Warburg se inclui claramente entre essas iniciativas.

Guasch aponta que Warburg organiza as pranchas do Atlas utilizando como referência as teorias científicas sobre a memória realizadas pelo biólogo evolutivo Richard Semon Wolfgang (segundo as quais, em qualquer organismo vivo, todo estímulo ou experiência externa ou interna deixa uma “marca mnemica” – ou “engrama” – no material celular predisposto a tal inscrição).

Warburg cunhou o conceito de engrama cultural, entendendo os engramas como marcas ou símbolos, nesse caso visuais, que ficam registrados ou arquivados na memória de cada cultura. Conseqüentemente, a memória cultural não é uma memória inerte, senão ativa, que pode recuperar as marcas ou engramas do passado. (Guasch, 2011: 24).

 

Arquivos em Muntadas: do arquivo fotográfico à tecno-imaginação

A fotografia e o filme são os principais veículos das práticas arquivísticas, desenvolvidas contexto da arte contemporânea. Talvez a proximidade entre a lógica fotográfica e a lógica do arquivo explique esse fato. A fotografia é, em si, um material de arquivo. Desde o seu surgimento, é tida como, simultaneamente, evidência documental e registro arquivistico da existência de um fato. O crítico Okwui Enwezor argumenta que a câmera é literalmente uma máquina de arquivamento e, portanto, toda fotografia e todo filme são, a priori, objetos arquivísticos. “O desejo de fazer uma fotografia, de documentar um evento, de compor statements como eventos únicos, é diretamente relacionado à aspiração de produzir um arquivo” (Enwezor, 2007: 13).

Quando o catalão Antoni Muntadas (1942) muda-se para Nova York, em 1971, encontra nos Estados Unidos um contexto artístico fortemente orientado para operações de desprogramação de mensagens dos meios de comunicação de massa. Dez anos antes de Muntadas chegar aos EUA, em 1961 Andy Warhol começara a trabalhar com notícias apropriadas do jornalismo impresso e iniciara sua longa trajetória de exploração da iconografia midiática, pintando capas de tablóides – antes de se lançar ao silkscreen. Nas obras feitas com base em manchetes de jornal, Warhol não fazia apenas uma transcrição. Como aponta Holland Cotter, critico do jornal  The New York Times, sobre exposição atualmente na National Gallery of Art, de Washington, ao apropriar conteúdos midiáticos ele se tornava editor, reescritor e inventor.

Ao expropriar textos e tipografias de seu meio jornalístico, Warhol já entendia, então, o predomínio que a palavra exerce sobre a imagem em nossas sociedades do espetáculo. Nos anos 1970, nos EUA, essa tensão entre os meios visual e textual se tornaria central entre os artistas conceituais e entre aqueles dedicados à acumulação, repetição e serialização da fotografia e outras categorias de informação e produção cultural, derivadas das novas tecnologias. Nesse contexto, as poéticas de artistas como John Baldessari e Ed Ruscha podem ser particularmente analisadas em relação às proposições de Muntadas. O primeiro, pela ênfase que deu às relações entre imagem e texto e por suas construções com materiais apropriados dos meios de comunicação – oferecidas ao espectador com possibilidades de reordenação e recombinação da informação. O segundo, por sua atividade de editor, tendo publicado, entre 1963 e 1978, 16 livros de serializações fotográficas. Em qualquer um desses casos, o arquivo fotográfico era organizado como “base de dados”, ou seja, como define Sven Spieker, em The Big Archive, dentro de um conceito modular, em que os elementos pudessem ser reagrupados.

A relação texto-imagem é, portanto, fundamental para o entendimento não apenas da obra de Muntadas, mais de toda uma geração de artistas norte-americanos. Em Filosofia da Caixa Preta, Vilém Flusser apontaria na relevância dessa tensão “para a compreensão da história do Ocidente”.

Textos são mediações tanto quanto o são as imagens. Seu propósito é mediar entre homens e imagens. Ocorre, porém, que os textos podem tapar as imagens que pretendem representar algo para o homem. Ele passa a ser incapaz de decifrar textos, não conseguindo reconstituir as imagens abstraídas. Passa a viver não mais para se servir dos textos, mas em função destes. Surge a textolatria, tão alucinatória quanto a idolatria. (Flusser, 1983: 8,9)

A exemplo de Warburg, que organizou vasta quantidade de material histórico – reproduções fotográficas extraídas dos livros de sua biblioteca – sem qualquer comentário textual além de um título invariavelmente sugestivo para cada prancha, Ruscha enfatizou a ausência de texto para acompanhar as imagens de qualquer um de seus livros. Já Muntadas, em On Subjectivity: 50 Photographs from “The Best of Life”, extraiu a legenda da imagem jornalística e convidou o colaborador de seu trabalho a reescrevê-la. Na edição em forma de livro de artista, cada uma das 50 imagens foi acompanhada de cinco legendas interpretativas, formuladas em diversos idiomas, onde os participantes puderam expressar sua “subjetividade crítica”.

Em email enviado em 2010 para o crítico Guy Brett, o autor descreve On Subjectity como “uma espécie de manifesto pela aceitação da subjetividade, após muitos anos de trabalho sobre o tema da objetividade” (Brett, 2012: 97). Nesse trabalho, ele não apenas contribui para atenuar o predomínio que a palavra normalmente tem sobre a imagem jornalística, como também subverte a pretensão objetiva da fotografia. “Pelo conceito de subjetividade crítica pretendo referir-me à dimensão crítica que pode partir de uma prática individual/pessoal. A visão pessoal atua, portanto, no nível da observação e sinalização de alguns acontecimentos, situações ou fenômenos que interessam, concernem e preocupam, e frente os quais manifesta o seu desacordo” (Muntadas, 2011: 15).

A coleção de “subjetividades críticas” formada por Muntadas inclui grande variedade de estilos: diálogos imaginários, hipóteses a respeito da intenção do fotógrafo (e da publicação), ironias acerca estarem sob o título de “O melhor da vida”. Há desde comentários abstratos até textos ensaísticos, poéticos, filosóficos. Porém, muitas legendas acabam por continuar a ser tão explicativas quanto as legendas originais. Então, quando pede para espectador preencher o espaço em branco da legenda com outra legenda, Muntadas não mantém essa informação no nível da “explicação da imagem’?

Segundo Vilém Flusser, o texto como forma de explicação para a imagem é um modelo de criticismo da imagem que a humanidade tem praticado há 3500 anos. “Para isso a escrita linear foi inventada”. Em 1990, com a percepção de que “uma crítica da imagem estabelecida a partir da escrita linear não é suficientemente radical (…)”, ele viria a formular um novo modelo crítico, baseado nas imagens técnicas. Segundo suas palavras no texto Images of the New Media, a tecno-imaginação seria uma “crítica da crítica da imagem”, que implicava no deslocamento da busca de “objetividade” em favor de um modo inter-subjetivo de lidar com as imagens.

A função das imagens técnicas é a de emancipar a sociedade da necessidade de pensar conceitualmente. As imagens técnicas devem substituir a consciência histórica por consciência mágica de segunda ordem. E é nesse sentido que as imagens técnicas tendem a eliminar os textos. Com essa finalidade é que foram inventadas. os textos foram inventados, no segundo milênio a.C, a fim de desmagiciarem as imagens (embora seus inventores não tenham se dado conta disso). As fotografias foram inventadas, no século 19, a fim de remagiciarem os textos (embora seus inventores não tenham se dado conta disso). A invenção das imagens técnicas é comparável, pois, quando à sua importância histórica, à invenção da escrita. textos foram inventados no momento de crise das imagens, a fim de ultrapassar o perigo da idolatria. Imagens técnicas foram inventadas no momento de crise dos textos, a fim de ultrapassar o perigo da textolatria. (Flusser, 1983: 11)

Em On Subjectivity, Muntadas trabalha com imagens técnicas, mas não trabalha com imagens ou códigos digitais. Porém, seu gesto de alterar as legendas das imagens (suas “explicações”, produzidas em códigos alfabetos) aproximaria o trabalho do conceito de tecno-imaginacão, a crítica da imagem que Flusser anuncia surgir com as tecnologias digitais.

 

Co-produção – Processos colaborativos e redes de criação

On Subjectivity se estrutura sobre o princípio da rede de colaboradores. A lista de participantes do projeto de 1978, coincide com as listas de endereços que circulavam, nos anos 1970, nas redes de arte postal. Entre os brasileiros, participaram Walter Zanini, Regina Silveira, Cildo Meireles e Julio Plaza, entre outros.

A pesquisadora Cristina Freire aponta em Poéticas do Processo que o intercâmbio de trabalhos pela via postal era prática corrente entre os poetas desde os anos 50. Nas artes visuais, a adoção do correio como suporte torna-se comum nos anos 70, juntamente à experimentação de outros meios como o xerox, o vídeo e outras mídias que facilitam procedimentos de desmaterialização da arte. “É interessante observar como hoje a internet desempenha esse papel e muitos artistas tem projetos desenvolvidos especialmente para essa rede mundial” (Freire, 1999: 76).

Nesse período as publicações de artistas em forma de revistas artesanais eram abundantes e também foram distribuídas pelo correio, como forma de divulgação. Muitos foram os projetos híbridos, que articularam a arte postal com o livro de artista, uma espécie de coletânea de off-sets, xerox e cartões.

On Subjectivity foi precisamente um desses projetos híbridos, que articularam a arte postal ao livro de artista. Articulação, colaboração, comunicação e democratização são palavras-chave para o entendimento das atividades da arte postal, assim como o são para a compreensão do funcionamento das redes como sistemas relacionais, e também da concepção contemporânea de arquivo.

“A rede é uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e cuja visibilidade obedece a alguma regra de funcionamento” (Musso, 2004: 31). As fotografias apropriadas da compilação de fotojornalismo The Best of Life tornam-se nesse projeto os picos e nós da rede, isto é, os locais onde acontecem os laços entre as subjetividades críticas dos participantes. As fotografias são precisamente o ponto onde ocorre a interatividade no trabalho. No aspecto relacional dessa rede, dá-se a construção de uma memória coletiva a respeito da história americana e mundial. Isso se dá quando as imagens da revista Life são despidas de suas legendas, para serem re-interpretadas por subjetividades individuais – corrompendo as atitudes clássicas de emissão e recepção da mensagem. Nesse ponto, o trabalho favorece uma co-produção da memória.

Os arquivos de Muntadas devem ser vistos, portanto, sempre desde a perspectiva da mobilidade: não como local de armazenamento de informações, mas como processo dinâmico que se modifica com o tempo, como sugere Cecília Salles, em Redes da Criação, a respeito da memória criadora em ação. Nesse sentido, além de funcionar como redes, eles se aproximam das dinâmicas dos bancos de dados – coleções de itens que podem ser rapidamente buscados, alcançados, visualizados e navegados.

O diferencial fundamental do banco de dados digital que floresce na Internet, em relação aos arquivos analógicos é sua variabilidade e acessibilidade. O princípio da variabilidade é o que diferencia as “novas mídias” das “mídias tradicionais”, segundo o teórico Lev Manovich. “Páginas da web são documentos que podem ser sempre editados” (Monovich, 2007: 45).

Movida pelo princípio da reedição, a obra de Muntadas se afasta, portanto, de uma “ordem linear hierarquizada” própria aos arquivos analógicos e não obedece às suas funções tradicionais de regulação, indexação, classificação e controle de conhecimento e informação. Acionados pelo que Jacques Derrida define como “função de consignação”, os arquivos de Muntadas abandonam a metáfora da árvore e assumem a metáfora da rede, adotando seu sistema discursivo regulatório dinâmico, que promove relações mutáveis entre seus itens.

Com isso, mesmo tratando-se de uma obra analógica, On Subjectivity pode ser lida na chave na net art, considerado-se a identificação que a sua natureza aberta e inacabada tem em relação com a lógica antinarrativa da web.

 

Da arte postal à net art

A primeira experiência de Muntadas com net art se dá em 1994, logo depois do surgimento da internet. The File Room é um projeto idealizado especialmente para o meio digital e explorava as possibilidades que a internet oferecia como espaço público e de diálogo social, muito antes do estabelecimento das redes sociais. O projeto consistiu na formação de um arquivo digital sobre as formas de censura cultural que ocorrem em escala mundial. Estruturado como uma base de informação permanente e interativa, situada no espaço da rede, adota também a forma de uma instalação física e temporal. Sua vertente digital continua acessível em http://www.thefileroom.org e permite não apenas a consulta, mas também a postagem de novos casos relacionados à censura cultural, por parte do usuário. A instalação, por sua parte, recria a atmosfera do arquivo do século 19, em toda sua formalidade e imponência. O caráter secreto, inarticulável e inatingível desse arquivo físico só é rompido pela inserção em algumas gavetas de monitores navegáveis em recopilações do arquivo digital. Desde 2001, The File Room é dirigido pela National Coalition Against Censorship e passou de obra de arte a objeto de utilidade pública e defesa de direitos humanos.

Segundo a crítica e teórica de redes Josephine Bosma, “Net art é a produção artística que se baseia ou que se refere às culturas da internet”. No entanto, “um trabalho de net art pode existir fora da rede e nem sempre precisa incluir uma página na web” (Bosma, 2011: 24). Esse é o caso de On Subjectivity, que não tem a cultura da internet como base, mas tem a cultura da rede como origem e premissa, além de adotar um modus operandi próprio das redes digitais. A obra pode ser associada, portanto, ao campo relacional que consigna e inter-relaciona coleções de textos sobre fotografia.

Quando o artista extrai a legenda da imagem e promove a sua descontextualização, acaba por conceder a essa imagem uma condição semelhante às imagens que pescamos com a ferramenta Google Image Search, na internet. Despidas de contexto e apresentadas sem passado e sem futuro à rede de colaboradores do projeto, essas imagens ficam disponíveis para ganhar novos propósitos e significados e para serem recombinadas e re-situadas em outros lugares e temporalidades. Ao navegar em arquivos de fotojornalismo, Muntadas comporta-se então como um net artista que navega pelo Google Image Search e assume, como aponta a crítica e editora do site Rhizome.org, Joanne McNeil, o papel de curador. “Mas não na conotação redutiva contemporânea da palavra, como simples ato de seleção, mas como cuidado – ato intencional de preservação, garantindo a esses fragmentos uma existência que não ocorreria se não fossem visualizados” (McNeil, 2011: 42).

Associado às dinâmicas da net art, On Subjectivity apresenta a mesma vocação de explorar, colecionar, arquivar, indexar, manipular e reeditar materiais visuais produzidos pela cultura de massa. O trabalho vem demonstrar, portanto, como a geração da internet está desenvolvendo uma experiência estética que começou com as proposições participativas da arte conceitual dos anos 1960 e que mais tarde assumiram a forma de uma arte apropriacionista e de uma arte de pós-produção.

 

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NOTAS

[1] O livro de artista On Subjectivity tem 120 páginas e uma tiragem de 1000 exemplares.

[1] Segundo descrito em Arte y Archivo, de Anna Maria Guasch, esse modus do arquivo teria tido origem em meados do século 19, nas propostas do historiador Philipp Ernst Spieb para organizar os documentos secretos da Bavária, e de Natalis de Wailly para reorganizar os Archives du Royaume e da Biblothèque Impériale, da França (pg 16).

 

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PAULA ALZUGARAY é curadora independente, crítica de arte e jornalista especializada em artes visuais. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da USP. É diretora de redação da revista cultural seLecT e edita a seção semanal de artes visuais da revista Istoé.

ANTONI MUNTADAS é um artista catalão, radicado em Nova York desde 1971. Sua prática é multidisciplinar, com ênfase em instalações e media art. Participou de exposições importantes como a Bienal de Veneza e a Documenta 6 e X, de Kassel, e é professor de prática artística no Massachusets Institute od Technology [MIT].