04 | Entrecorte

A+ A-

Quanto vale 7 mil carvalhos em créditos de carbono?

Clique para ver a imagem maior

Sobre câmbios e ambiguidades entre arte, cultura e dinheiro

Reflexões sobre a pergunta “Quanto vale 7 mil carvalhos em créditos de carbono?”

Ivo Godoy 

Ainda criança aos 6 anos de idade, meu pai era dono de uma Agência Lotérica, na pequena cidade  de Ibiraçu, interior do estado do Espirito Santo. De vez em quando ele levava eu e meus irmãos para lá. Sempre ocupado atendendo os clientes, meu pai arrumava coisas pra gente se distrair, dava folhas de papel para desenhar e, de vez em quando cédulas de loto, na falta de papel. Certa vez, quando estávamos pedindo para ele comprar doces e balas pra gente, ele disse : – Pega essas cédulas de loteria e entrega pro moço do bar que ele vai lhes dar as balas. Por algum tempo pegamos este costume, trocávamos cédulas de loto, dessas com as lacunas numéricas vazias, que a princípio não valem nada e trocávamos por doces. Entendíamos aquele pedaço de papel como  dinheiro.

Comecei a escrever mensagens em cédulas de Lotomania em meados de 2006 quando ainda estava no curso de Artes da UFES (Universidade Federal do Espirito Santo).  A principio o que me levou a pensar essa forma de expressão foram as provocações conceituais dos poetas concretos, irmãos Campos, Décio Pignatari, e toda uma gama de influências que vinham nesse pacote: Malarmé, Maiakovski, dadaístas, etc. Os cúmplices eram meus professores Valdelino Didíco, Gisele Ribeiro, Ricardo Maurício Gonzaga e Rogério Câmara. Eles me ajudaram a olhar e entender a poesia concreta. Eles me instigaram a repensar o texto e o pensamento, como subversão formalista e inversão das lógicas da escrita ocidental.

Escrever sobre uma malha de 100 campos numéricos, onde pela regra, você pode preencher 50 números, para, no concurso acertar 20 ou 0 números e ganhar o premio máximo. A Lotomania passou a ser um suporte provocador em muitas questões, dentre elas o sistema de mercado da arte. A primeira frase que oficialmente joguei na loteria foi: “Eu tirei a sorte grande, pena que veio como moeda sem valor”. Ao lançar ela no sistema da loteria eu ativei uma dicotomia que a princípio me foi muito “cara”. Por um lado eu passava horas pensando no prêmio em dinheiro, o que faria com aquilo tudo, por outro pensava o que aquilo significava no campo da arte. Aquele ato de escrever mensagens nas cédulas me levava a conversar com as pessoas nas casas lotéricas. Riquíssimos depoimentos que explicavam “macetes” matemáticos (que nunca funcionam); datas de  – nascimento,  morte, casamento – de  pessoas queridas; placas de carro; código de barra de produtos; sonhos que envolviam números; etc. Em meio a essas conversas e outras reflexões eu pensava que ali no gesto de escrever “mensagens” para loteria, havia  um valor anterior ao de mercado, ao monetário, aquele gesto era carregado de ambiguidades e dicotomias.

Decidi em 2007 chamar os jogos de Axidiomas – uma sintaxe em grãos. “Um idioma axioma, um idioma em si, formado por fragmentos do cotidiano humano”, essa era a síntese do que seria. Fiz um livro-obra. Perguntei no jogo: “Quem valida Arte?”, refletindo juntamente  com um texto reflexivo, conceitos Kantianos e obras de arte como as Brillo Box de Warhol, e assim foram as reflexões que fiz ao longo de algumas páginas da monografia-livro-obra (disponível em: http://axidioma.com/).

Dentre as poucas vezes que executei os Axidiomas, todas eram provocadas por um lugar ou situação. Quando fui convidado a participar da seção entrecortes da Revista Carbono não pensei que seria diferente, num editorial que trata do tema “dinheiro”, pensei nos circuitos que os Axidiomas poderiam ativar ali. Propomos eu e a Revista, dividir os gastos com o valor das apostas em 50% cada, o que também valeria para uma possível premiação. Um contrato informal entre artista e revista, ambos apostando na proposta artística .

Carbono foi uma palavra que me instigou de maneira precisa, talvez pela coincidência de associar carbono e dinheiro ali na revista, o que me levou a relacionar o capital especulativo do jogo com a  especulação que envolve os Créditos de Carbono (Cerificados de emissão de carbono são dados a empresas que trocam os créditos por contrapartidas, dentre elas o reflorestamento).  Muito institivamente me lembrei dos 7 mil carvalhos (1981) trabalho do artista  Joseph Beuys na Documenta 7 de Kassel e ai surgiu a pergunta: “Quanto vale 7 mil carvalhos  em créditos de carbono?”.  A palavra “vale” foi empregada no  singular por se tratar de “uma” obra específica de Beuys, logo a ambiguidade de valor ambiental, de florestamento envolvendo os carvalhos , ou valor no circuito da arte, capital simbólico, custo de produção e outras especificidades que envolvem dinheiro ao trabalho.

A operação de perguntar para a loteria o quanto vale algo que não cabe a ela avaliar, pressupõe uma suspensão dos valores num campo das variáveis. Cria uma espécie de ruído de valores. Os Carvalhos para Beuys, ao mesmo tempo em que significavam reflorestar como escultura social, tratavam também de um gesto de desvincular um símbolo do qual o nazismo havia se apropriado. O carvalho fora representado na Cruz de Ferro, uma medalha de condecoração dos nazistas. Beuys levanta com este trabalho muitas questões adormecidas e isso gerou uma série de ocorrências que envolveram o trabalho dos 7 mil carvalhos apresentadas em Kassel. Uma dessas ocorrências aconteceu quando Beuys instalou 7000 pedras de basalto na Friedrichsplatz, representando o empilhamento de corpos que houvera ali no período da Guerra. A prefeitura ordenou que as pedras fossem removidas para um local “apropriado”[1].

Trinta anos passados daquela Documenta, o coletivo artístico alemão Jae Pas executa um gesto crítico envolvendo os carvalhos de Beuys e a Documenta de Kassel. Com o título “Who cut the Beuys oak?”[2], o coletivo removeu um dos carvalhos plantados por Beuys e em praça pública cortou a arvore em pedaços que eram vendidos em troca de dinheiro, no valor do bilhete de entrada na Documenta XII. Tratava-se de uma crítica direta à Saab – uma empresa subsidiária da General Motors, principal patrocinador da Documenta – indústria que “descobriu” no compromisso ecológico uma estratégia de confiabilidade da sua imagem. O crédito de carbono neste trabalho foi um dos alvos da critica. Sobre a especulação que beneficia uma grande indústria poluidora, que recebe certificados de emissão de carbono para continuar poluindo e não reduzir a produção e os lucros. O coletivo deflagra uma contradição da Documenta de Kassel, que apoia atitudes tão distintas como a de  Beuys e a da empresa Saab (General Motors), para isso o Jae Pas lançou mão da especulação monetária sob a escultura viva de Beuys.

Já há algum tempo vinha pensando em ativar a História da Arte nos Axidiomas, uma vez que eles marcam um registro muito preciso da data e hora que são jogados. (Vide os recibos da Loteria).

O gesto que reside na pergunta “Quanto vale 7 mil carvalhos em crédito de carbono?” é muito preciso na condição de nosso tempo. Em específico, nas relações deste trabalho à cidade do Rio de Janeiro. Uma cidade movida por um capital especulativo, nos setores  turístico, paisagístico, imobiliário, esportivo, histórico, político, religioso, enfim, todo setor dotado de capital simbólico. Não preciso nem dizer sobre os “mega” eventos, construções e superfaturamentos envolvendo a Copa e as Olimpíadas nos próximos anos. No processo de pesquisa descobri que o brasão da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro tem uma folha de carvalho representada no canto direito acima da calda de um dos dois golfinhos. Isso criava um vínculo forte com a questão dos carvalhos do Beuys. Dois vínculos: simbólico e especulativo. Decidi partir em busca de uma árvore de carvalho na cidade e lançar sobre elas as palavras contidas no jogo.

Acredito que neste momento o jogo, que envolvia a expectativa de prêmio em dinheiro, ganhava certo desvio, talvez por encontrar no percurso tantos engajamentos ideológicos, simbólicos, culturais, e tantas outras forças motivadoras ao ato de jogar. Um desvio de intenção: “jogar para ganhar dinheiro” passava, a cada nova relação estabelecida no processo de criação, para “jogar para fazer arte”.

Algumas vezes ao comentar sobre o trabalho as pessoas me perguntavam se  tratava de uma promessa que  havia feito ou algo assim. Pensei na gíria que ouço há muito tempo, a mandinga. Sempre associei essa palavra a uma espécie de superstição, algo pra dar sorte ou para “alguma coisa dar certo”. Descobri que a mandinga era um colar usado por africanos muçulmanos no período colonial. Eles escreviam um trecho do alcorão num pedaço de couro e depois de feita a inscrição o couro era dobrado e fechado costurando-se uma borda na outra, esse colar também ficou conhecido por outras etnias africanas como patuá. Isso significava para eles, proteção e também a cura por uma medicina mágica. A princípio não queria envolver questões étnicas e religiosas ao trabalho, já tinha muita informação. Porém fiquei surpreso com os encontros que o processo de criação estava me levando, eu nunca havia pensado, ou tratado de forma direta, uma questão étnica em meus trabalhos. Dei-me conta de que a etnia africana tem, na cultura brasileira e na historia colonial, uma forte relação de “especulados” pelas classes burguesas. Especulações de étnicas ligadas ao capital.   Assumi esse atravessamento ao trabalho, fiz 6 grandes cordões de couro, parecido com as dobraduras costuradas da mandinga, e inseri fragmentos da frase em cada uma juntamente com uma pedra para dar o contrapeso ao lançamento .

Após produzir os artefatos parti, em busca de algum carvalho na cidade, onde pudesse lançar os jogos e registrar em vídeo. Numa busca prévia procurei a  administração do Parque do Jardim Botânico por telefone, na esperança de por lá encontrar algum carvalho. Fui informado que lá  havia uma espécie  e que deveria seguir para a recepção aos visitantes para me informar sobre a localização dela no parque. Chegando ao local fui informado que a arvore não sobreviveu ao clima da cidade pelo fato de ser uma espécie do Norte Europeu e que dificilmente encontraria alguma na cidade. Logo a folha de carvalho representada no brasão da prefeitura virou um símbolo intrigante que aponta para outras pesquisas. Parecia-me uma especulação simbólica em torno do carvalho.

Uma vez entendida a dificuldade de encontrar a espécie específica da árvore na cidade do  Rio de Janeiro, eu e o artista plástico Rafael Corrêa, que me ajudou a registrar as ações de lançamento nas arvores, decidimos fazer uma deriva estética nos parques a procura de outras árvores que nos fossem interessantes de relacionar ao trabalho. É dessas derivas que nascem os encontros locativos da obra. Critérios de escolha muito específicos –  que amarravam as questões especulativas apontadas no inicio do processo – determinaram os locais onde seriam lançados os jogos, quanto às árvores, foram escolhidas pelo encontro, pela sua imagem e às vezes semelhança visual ao carvalho.

Em uma dessas derivas procurávamos o limite do parque do Jardim Botânico com a região do Horto, que está em processo de desapropriação pela prefeitura, especulações políticas e imobiliárias envolvidas ali. Encontramos um muro que divide o parque de uma casa humilde. Perto uma grande e bela arvore que nos instigou a lançar o jogo. A surpresa foi identificar a estátua de Ossanha, em meio ao verde das folhagens que, a olhos despercebidos fundia-se as arvores do parque. “OSSANHA – Guarda consigo os segredos místicos e curativos das folhas e plantas- escultor Tati Moreno”, dizia a placa ao pé da escultura de aproximadamente 4 ou 5 metros.  A entidade representada na escultura vestia roupas que me remetem a um negro de idade avançada, pensei em preto velho, mas ele parece mais um sacerdote mulçumano com um turbante forrando a coroa sob sua cabeça. (Sua vestimenta me enviou imediatamente à questão mulçumana dos mandingas). Com os olhos fechados ele segura uma espécie de rastilho ou garfo com um pássaro pousado sobre. Ele também usava um colar com uma folha, um patuá – uma mandinga – de folha.

Esse era o cenário que parecia culminar todas as questões do trabalho. A  princípio fiquei com muito receio de lançar ali o jogo, não sendo religioso embora, supersticioso, fiquei alguns minutos pensando naquela entidade. Respeito muito as religiões africanas, acredito que elas representam uma atitude de resistência diante de uma história colonial. Pensamos que seria um ponto crucial para completar a obra.

Decidimos jogar.

Foram 3 tentativas…

 


[1] Dália Rosenthal – Joseph Beuys: matter as a social agente disponível em:  http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1678-53202011000200008&script=sci_arttext

[2] 2007 – http://jaepas.de/index.php?id=39&L=1

 

***

 

IVO GODOY é artista formado pela Universidade Federal do Espirito Santo, busca nos meios tecnológicos um diálogo expressivo entre Arte/Homem/Máquina na sua pesquisa poética. Reside atualmente no Rio de Janeiro onde cursa mestrado na área de Processos Artísticos na UERJ. Apresentará em outubro de 2013 o resultado da pesquisa “Museu-Ecrã –  (Série vídeo-críticas)” no MAES Museu de Arte do Espirito Santo.
Veja mais em:
Todos os direitos reservados