05 | Entrecorte

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Digestão

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Digestão, um

 Cezar Migliorin

 

Logo depois de deixar Joana em casa, sentiu que um minúsculo pedaço de carne havia ficado entre os dentes, mais especificamente entre o frontal superior esquerdo e o seguinte, à esquerda. Tentou a língua e logo a unha, o que apenas piorou a situação, pois uma partícula da unha se juntou à carne, empurrando todos os dentes para o fundo da boca. Quando o sinal fechou, pegou seu maço de cigarros para poder pensar em outra coisa, usar a boca como lhe era de costume. Com o maço na mão, em vez de pegar um cigarro, tirou o plástico transparente que envolve o maço, esticou-o até sentir que a sua rigidez resistiria a sua nova função. Tentou introduzir o plástico como um fio-dental, este rapidamente rompeu-se, o sinal abriu e, dirigindo com apenas uma das mãos, escolheu um outro pedaço de plástico que pudesse remover aquele final de jantar com Joana.

Na calça de pregas bege, uma nódoa lhe chamou atenção, talvez tivesse ficado excitado demais com os beijos de Joana antes de deixa-la em casa; já com a carne entre os dentes. Engano seu, logo percebeu que sua baba escorria entre os dedos e pelo canto da boca, caindo no seu colo enquanto encharcava o plástico inútil.

Talvez a farmácia estivesse aberta, não suportaria andar mais quinze minutos de carro  até em casa com aquela pressão que tomava o corpo.  Estava babando, com o contorno da boca quase ferido pela fricção do plástico e da mão e os dentes, cada vez mais apertados, prontos para pular da boca. Provavelmente um pedaço de plástico se juntara à carne e à unha. Até para falar – fio-dental – na farmácia, ele teve dificuldades.

O pequeno espelho retrovisor ajudava. O primeiro pedaço de fio que colocou na boca era curto e logo desfiou; mais pressão. Agora era uma questão de tempo. Na ânsia de remover a carne, a unha e o plástico que o invadiram, tirou um longo, longuíssimo pedaço de fio do rolo. Em vez de apenas coloca-lo entre os dentes, deu uma volta inteira em torno do dente frontal e puxou com força. Mais força que o dente suportava. Amolecido, empurrou-o de volta ao lugar. O dente cairia a qualquer momento. A carne do jantar, que antes estava entre os dentes, se deslocara para dentro da gengiva exposta com o puxão.

Calma, calma, ele disse, repetiu para si mesmo. Tirar o fio daí e procurar um dentista, era a melhor coisa a fazer. A carne que ficasse onde estava.

A gengiva rapidamente cresceu muito. Com uma das mãos ele segurou o dente, com a outra puxou o fio-dental para fora, que acabou por esconder-se junto da gengiva. Enquanto ele puxava, uma mistura ensanguentada de carne, gengiva e fio desceu encobrindo o próprio dente. A calça bege foi ficando cada vez mais molhada, tomada pela baba grossa e avermelhada.

Ele começou a ter dificuldade de respirar. A gengiva saía do dente e encobria a boca. Quanto mais ele puxava o fio, agora indiferenciável do resto da boca, mais ia vendo aquela massa gosmenta, suas entranhas ocupando todo o rosto, todos os lugares.

Entre o terror e o prazer, viu seu corpo virar-se do avesso. Respirou o último ar que ainda lhe era possível respirar, tirou os sapatos com os próprios pés, e continuou puxando até o fim.

 

Digestão, dois

Manoel Ricardo de Lima

 

Na frente da casa de Joana, descalço, puxado até o fim e pelo avesso, todas as entranhas para fora, respirando com muita dificuldade, com um rastro de baba grossa e avermelhada pela rua, pela escadinha de cinco degraus que dá acesso à porta e pelo corrimão, entre o prazer e o terror, tenta tocar a campainha ou chamá-la. Aponta o dedo para o acionador e se dá conta que não tem mais impressões digitais e que é impossível recriar o modelo biométrico de qualquer pessoa por causa do padrão das veias que existem no corpo. Há fluxos de sangue ininterruptos na sua mão direita, na esquerda, nas pernas, nos pés, nas costas, na bunda. O dedo não tem impulso, nem equilíbrio, nem ponto fixo. E ele achava que tinha uma elevada tolerância para problemas de pele, de superfície; a essas coisas como secura, rugosidade, humidade ou formação de cicatrizes.

Enquanto olha distraído para o penduricalho de artérias que é a sua mão, que é todo o seu corpo, arrisca dizer algo. E nada. Com a língua ao contrário não consegue pronunciar nenhum som minimamente compreensível. Seu cérebro está exposto e sua cabeça por dentro não passa de uma cabeleira oleosa, suja e provavelmente deve cheirar mal. O que retém nos olhos esmigalhados, já que enxerga também para dentro, a partir de seu nariz, é que suas narinas estão dobradas ao meio, dois buracos enfiados compondo um desenho estranho, e o osso frontal com suas cartilagens aparece no reflexo do vidro da porta da casa de Joana. Não pode tocar em si mesmo, sente medo. E grunhe uma, duas, três vezes. Ela vai achar que é um barulho qualquer, noturno, algum animal ou a vida da cidade lá fora.

Desconfia se o que pensa é algo parecido com o que pensaria caso não estivesse às avessas, desconfia se ainda sabe pensar. Por um segundo imagina que pensou em algo como: gostaria de ver o próprio esqueleto. Seus 639 músculos percorrem o tempo mínimo que permanece ali, parado, sem saber direito o que fazer e escondem a sua carcaça. Os nervos motores, divididos em várias fibras, certamente ainda controlam as células. Está vivo, acha que está vivo. E tudo isso começou com um fiapo de carne, resto do jantar, entre os dentes da frente superior esquerdo e o seguinte, à esquerda. Depois, um pedaço do plástico que envolve o maço de cigarros. Por fim, uma certa impaciência e a incapacidade de sucção de sua língua para retirar aquilo. Língua que não articula mais uma palavra sequer.

Calma, calma, ele se diz outra vez. Sente algo flutuar dentro  de seu corpo, roçar sua parte interna, a sua pele, podem ser as pregas da calça bege ou do cu. A fivela do cinto, os botões da camisa, o pau duro demais com os beijos de Joana antes de deixá-la em casa já com a carne entre os dentes. E a carne continua exatamente onde estava, a gengiva inchada, nenhuma dor. Seu corpo agora sofre de eficiência.

 

***

CEZAR MIGLIORIN é pesquisador, professor e ensaísta. Membro do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF e Chefe do Departamento de Cinema e Vídeo. Coordenador do Laboratório Kumã de pesquisa e experimentação em imagem e som. Organizador do livro Ensaios no Real: o documentário brasileiro hoje. (Ed.Azougue, 2010). Coordenador da 8å Mostra de Cinema e Direitos Humanos da America do Sul. Doutor em Comunicação e Cinema pela UFRJ e Sorbonne Nouvelle, Paris 3.

MANOEL RICARDO DE LIMA é poeta e professor da Escola de Letras e membro do PPGMS, na UNIRIO. Publicou os livros de poemas Falas Inacabadas [com a artista visual Elida Tessler], Embrulho e Quando todos os acidentes acontecem; os ensaios Entre Percurso e Vanguarda – alguma poesia de P. Leminski e Fazer, Lugar – a poesia de Ruy Belo; e as narrativas As Mãos e Jogo de Varetas, entre outros. É coordenador editorial da Coleção Ruy Belo para a 7Letras, RJ, e da Coleção Móbile de mini-ensaios para a Lumme Editor, SP.

 

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