05 | Dossiê

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Onde a gravidade não tem vez

Onde a gravidade não tem vez
a vida no mundo microscópico e a detecção de campos magnéticos por bactérias

Ulysses G. C. Lins

 

O nosso senso de orientação e movimento está intimamente ligado à capacidade de percepção da gravidade. No mundo microscópico isso não ocorre. A influência da gravidade é nula na maioria dos casos e outras formas de orientação e navegação surgiram ao longo da evolução da vida. Dentre elas destaca-se a capacidade de um conjunto de bactérias de usar o campo magnético da Terra para navegação no fenômeno chamado magnetotaxia.

Percebemos o ambiente ao redor por meio de estímulos que são traduzidos pelos nossos sentidos através de complexas interações e processos. Assim, modulamos nossas respostas ao mundo e interagimos com ele. Luz, som, substâncias químicas e gravidade estão entre os tipos de estímulos a que respondemos diariamente. A maioria dos animais mantém uma determinada orientação em relação à gravidade da Terra. Se retirados de uma posição típica, tentam retornar a ela através de movimentos coordenados. Em vertebrados, a percepção da força gravitacional está em parte sob responsabilidade do sistema vestibular. A posição de nossa cabeça com relação à força gravitacional é importante para sabermos nossa posição relativa em cada momento e assim sabermos se estamos virados para cima, para baixo ou para o lado. É através desse sistema, com seus canais semicirculares e as máculas, que conseguimos estabelecer nosso equilibro e percebemos mudanças de direção. O sistema vestibular está localizado no ouvido interno nos humanos e é intimamente associado ao nosso sentido de audição. Quando nosso corpo muda de posição ou mesmo inicia um movimento, todo o sistema vestibular trabalha para detectar as variações de posição relativa (inclinação e movimento) através da tradução dessas variações em estímulos nervosos que são interpretados pelo cérebro como deslocamento. Essa detecção só é possível por causa da inércia que pode ser entendida como a resistência que os objetos têm em mudar de direção e velocidade. Todos estamos familiarizados com os efeitos da inércia e sabemos, por experiência, que os corpos em movimento têm a tendência a continuar na mesma direção e velocidade, toda vez em que estamos no interior de um veículo que freia bruscamente.

Nos microrganismos, as interações com o ambiente são tão importantes quanto para nós, mas há uma série de limitações definidas pela realidade física que esses pequenos seres enfrentam. Em dimensões microscópicas, no meio aquoso, a inércia como a conhecemos possui pouca influência no movimento e a viscosidade passa a ser o fator determinante. Isso permite que o movimento de nado bacteriano, por exemplo, seja executado de maneira diferente daquilo que o bom senso diria se a inércia prevalecesse. Ao rodar o flagelo, uma determinada célula bacteriana imediatamente inicia o seu movimento e para que o mesmo movimento cesse, basta que o flagelo pare de rodar e a bactéria não continua seu movimento, ou seja, o término do deslocamento é instantâneo. Não há a tendência de continuidade de movimento observada na inércia em escala macroscópica. O mesmo vale para mudanças de direção. Ainda no ambiente microscópico, as formas de comunicação entre as bactérias bem como sua interação por ambiente não se dá por som, por exemplo. As ondas sonoras não tem efeito sobre as células bacterianas. Toda a evolução da comunicação e o consequente desenvolvimento de mecanismos de interação microbiana se deu por outros estímulos como a luz e substâncias químicas das mais variadas naturezas. Podemos dizer que, apesar de serem incapazes de perceber ondas sonoras como nós, as bactérias são muito eficientes na comunicação com o seu ambiente e com outras células, sejam elas da mesma espécie ou não. Os estímulos químicos são utilizados na comunicação celular para que o movimento de cada célula seja otimizado para o deslocamento na direção de nutrientes concomitantemente com o afastamento de regiões não ótimas para o desenvolvimento celular, incluindo o escape de possíveis predadores ou substâncias nocivas.

Os fenômenos de resposta comportamental observados em células bacterianas a estímulos direcionais são conhecidos como taxias, sendo a quimiotaxia o seu tipo mais comum. Nesse caso, através da resposta química, encontramos bactérias que nadam a favor ou contra as mais variadas substâncias incluindo o oxigênio. Em alguns casos, o comportamento está associado à luz e obtenção de energia, sendo o fenômeno conhecido como fototaxia. Há um grupo de microrganismos peculiar que é capaz de responder a campos magnéticos e, no caso, a taxia é chamada de magnetotaxia. As bactérias magnetotáticas são capazes de responder ao estímulo magnético por que produzem no seu interior pequenas partículas magnéticas chamadas de magnetossomos. Esses magnetossomos são organizados em cadeia nas células e permitem que haja uma orientação do corpo celular quando um campo magnético é aplicado que, por sua vez, com o auxílio da rotação dos flagelos, faz com que as células nadem numa determinada direção definida pelas linhas do campo magnético aplicado. No meio ambiente, acredita-se que as bactérias magnetotáticas utilizem o campo magnético da Terra para navegar na água ao longo de gradientes químicos de oxigênio e enxofre presentes nos sedimentos onde elas existem. Essas bactérias necessitam de concentrações baixas de oxigênio para sobreviverem e crescerem bem. Através da utilização do geomagnetismo, as bactérias magnetotáticas reduziram o problema tridimensional de nadar para o fundo dos sedimentos, onde as concentrações de oxigênio são mais baixas, para um problema unidimensional, pois elas nadam ao longo das linhas do campo geomagnético em direção às regiões para baixo nos sedimentos e coluna d´água. Resumidamente, achar o “em cima” e o “em baixo” é possível nesse caso sem usar a gravidade.

Micrografia eletrônica de bactérias magnetotáticas. Pode-se observar os magnetossomos que são as estruturas escuras retangulares.

Uma característica marcante dos magnetossomos é o seu mecanismo de síntese pelas bactérias. A produção bacteriana de magnetossomos é controlada geneticamente pelas bactérias magnetotáticas. Cada magnetossomo é envolvido por uma membrana onde se localizam proteínas que em conjunto com outras moléculas da célula são produzidas por genes específicos das bactérias. A membrana que circunda o magnetossomo define uma região na célula onde um cristal magnético é produzido. Através desses genes, cada bactéria magnetotática é capaz de controlar o tamanho, a forma e a pureza química dos cristais produzidos que podem ser do óxido de ferro magnetita (Fe3O4) ou do sulfeto de ferro magnético greigita (Fe3S4). Os magnetossomos são efetivamente pequenas bússolas que detectam o campo geomagnético que, por sua vez, é usado como sinal para o posicionamento das bactérias magnetotáticas no ambiente aquático. No caso de terem seu microambiente perturbado por oscilações naturais, as bactérias magnetotáticas poderiam usar suas bússolas para se reorientar e navegar para um local mais apropriado. Não se sabe exatamente como a magnetotaxia evoluiu nas bactérias, mas acredita-se que devido ao controle genético dos magnetossomos, sua importância para as bactérias seja grande e antiga, uma vez que encontramos evidências da presença de magnetossomos em amostras de milhões de anos. Nesse caso chamamos essas partículas de magnetofósseis.

 

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ULYSSES G. C. LINS, Biólogo, PhD, é Professor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e pesquisador do Laboratório de Biologia Celular e Magnetotaxia do Departamento de Microbiologia Geral da UFRJ.

 

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