06 | Dossiê

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Guerra, Técnica, Espaço e Poder

GUERRA, TÉCNICA, ESPAÇO E PODER

Licio Monteiro

Quando Yves Lacoste publicou seu livro-manifesto, A geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra (1976), passou a ser recorrente uma associação mais explícita entre geografia e guerra. Em tom de denúncia e revelação, Lacoste buscava chamar atenção para a importância do saber geográfico como um saber estratégico e, ao mesmo tempo, instrumentalizado para a guerra. Se o objetivo era causar impacto no meio acadêmico, podemos dizer que Lacoste foi bem sucedido – o que trouxe reações como a indiferença, o ataque e o constrangimento entre os amigos geógrafos, mas também o reconhecimento acadêmico daqueles que procuravam também uma visão política menos ingênua da geografia.
A proposição de Lacoste foi fortemente marcada por sua experiência como consultor da guerrilha vietnamita em 1971, durante a guerra do Vietnã. Avaliando os deslizamentos e inundações causados pelo bombardeio norte-americano dos diques do rio Vermelho, que afetaram a população civil vietnamita, Lacoste comprovou que a escolha dos alvos obedeceu a um raciocínio geográfico: as bombas lançadas atingiam determinados pontos da estrutura geomorfológica da bacia do rio Vermelho justamente para causar um efeito intensificado e prolongado dos danos.

Apesar do impacto do título de Lacoste, uma compreensão menos taxativa pondera que a geografia, além de não ser o único conhecimento instrumentalizado para a guerra, teve desenvolvimentos em diversos momentos direcionados para muitas outras finalidades além da guerra. Mesmo a postura dos geógrafos em relação à guerra poderia ser diferenciada entre uma geografia acadêmica war-minded, que via a guerra como uma legítima competição entre os Estados e prevalecia antes da II Guerra Mundial, e um campo peace-minded que buscava promover a cooperação internacional, e viria a predominar após 1945 (Mamadouh, 2005). Era comum o engajamento direto de geógrafos tanto nas conferências internacionais como auxiliares dos chanceleres e presidentes – como foi o caso da participação de Isaiah Bowman na Conferência de Paris, em 1919 – quanto na elaboração de conhecimentos estratégicos para uso direto na guerra – como foi o caso de 129 geógrafos que trabalharam no Office for Strategic Services, sob o comando de Richard Hartshorne durante a II Guerra Mundial (Mamadouh, 2005, p.33). Essa divisão proposta por Mamadouh é controversa, uma vez que muitas ações belicosas são justificadas por discursos de paz.

No mundo contemporâneo, os limites entre guerra e não-guerra se tornam mais fluidos. A dificuldade de definir situações claras de guerra coloca em relevo outros termos, a geografia da guerra cede lugar às geografias militares, que embora estejam em todos os lugares, são frequentemente “sutis, obscuras, escondidas, ou não identificadas” (2005, p.719) ou à geografia da segurança ou da securitização (Bernazzoli e Flint, 2009), definida pelos “papéis superpostos das forças armadas e de outras agências na incorporação do securitismo [em analogia ao militarismo] em diferentes arenas da sociedade em variados contextos geográficos” (2009, p.450).

Diversos estudos buscaram estabelecer uma aproximação entre geografia e guerra, seja tomando a guerra como objeto de estudo geográfico, seja mobilizando conhecimentos para esforços de guerra. Nosso caminho, no entanto, segue o trajeto inverso ao proposto por Lacoste. Se por um lado a geografia, como saber científico, em suas versões mais ou menos comprometidas, serviu – e ainda serve, vez ou outra – para fazer a guerra, no sentido de constituir um saber instrumentalizado para as ações e as justificativas da guerras, por outro lado, as guerras, de diferentes maneiras, “fazem geografia”, isto é, alteram o espaço habitado, redefinem os territórios e as fronteiras, estabelecem novas concepções sobre o espaço. É nesse sentido que traçamos a linha de continuidade entre guerra, técnica, espaço e poder, tendo como exemplo a formação das fronteiras dos Estados modernos e sua relação com a guerra.

Guerra e política

Carl von Clausewitz popularizou a ideia da existência de um continuum entre guerra e política ao caracterizar a guerra como a “continuação da relação política com intervenção de outros meios”. Desde a difusão da obra Da Guerra no século XIX, e, particularmente, de sua frase mais célebre, diversos pensadores fazem referência à frase de Clausewitz para relacionar guerra e política, desfazendo ou invertendo o vínculo originalmente estabelecido.

Carl Schmitt é um deles, quando diz que a guerra é um pressuposto da existência do político: “a guerra não é, absolutamente, fim e objetivo, sequer conteúdo da política, porém é o pressuposto sempre presente como possibilidade real, a determinar o agir e o pensar humanos de modo peculiar, efetuando assim um comportamento especificamente político” (Schmitt 1982, p.60). A luta militar propriamente dita tem suas regras próprias, mas, em seu conjunto, pressupõe que a decisão política acerca de quem é o inimigo já tenha sido tomada. A guerra é determinante na relação política justamente por seu caráter excepcional, “pois somente no combate real apresenta-se a consequência extrema do agrupamento político de amigo e inimigo. A partir desta possibilidade extrema é que a vida das pessoas adquire uma tensão especificamente política” (Schmitt 1982, p.61).
A abordagem de Michel Foucault, por sua vez, assume a continuidade entre guerra e política, mas inverte a ordem de Clausewitz. Sua hipótese é a de que

se o poder é mesmo, em si, emprego e manifestação de uma relação de força (…) não se deve analisá-lo antes e acima de tudo em termos de combate, de enfrentamento ou de guerra? (…) O poder é a guerra, é a guerra continuada por outros meios. E neste momento, inverteríamos a proposição de Clausewitz e diríamos que a política é a guerra continuada por outros meios (Foucault 2002, p.22).

As consequências diretas desta hipótese são três: 1) as relações de poder têm como ponto de ancoragem uma certa relação de força estabelecida em dado momento na guerra e pela guerra; 2) as lutas políticas devem ser interpretadas como as continuações da guerra; e 3) a decisão final só pode vir da guerra, de uma prova de força em que as armas deverão ser os juízes (Foucault 2002, p.22-23).

O historiador John Keegan buscou circunscrever a fórmula de Clausewitz a um momento e a um lugar específico da história mundial que o general alemão conhecia, isto é, o moderno sistema interestatal europeu. O pensamento de Clausewitz estaria incompleto, pois implica “a existência de Estados, de interesses de Estado e de cálculos racionais sobre como eles podem ser atingidos. Contudo, a guerra precede o Estado, a diplomacia e a estratégia por vários milênios” (2006, p.18).

Fronts de guerra e fronteiras políticas

Front é um termo militar que designa a linha de frente da guerra, o lugar e o momento em que os inimigos estão tête-à-tête, na iminência da batalha. Sua relação com o conceito de fronteira está inscrita na própria etimologia, que indica uma relação forte e original entre ‘front’ e ‘fronteira’. Mais do que a raiz etimológica comum, podemos perceber uma proximidade nas formas geográficas assumidas pelos fronts de guerra e a fronteira política. Segundo Foucher, “muitas fronteiras de hoje em dia foram ontem fronts. O inverso é igualmente verdade” (1991, p.38).

A relação entre front de guerra e fronteira política pode ser tomada numa analogia com a relação entre guerra e política. Assumindo a observação de Keegan, retomemos a formação dos Estados modernos e do sistema interestatal. De fato, a trajetória histórica dos Estados ocidentais e suas relações com os outros demonstra modos específicos de conceber guerra e paz, além da própria fronteira como uma fina linha de defesa e de diferenciação (Guild e Bigo, 2010). A partir da inversão de Foucault, a fronteira política seria um prosseguimento do front de guerra por outros meios, o que vai ao encontro da ideia fronteira como uma cicatriz – de guerra. Carl Schmitt, no entanto, nos colocaria outra hipótese: a existência de uma fronteira política só se justifica na eventualidade de que se torne um front de guerra. Fora disso, pode ser considerada fronteira econômica, cultural, religiosa, etc., mas não propriamente política. O fim da possibilidade da guerra seria o fim de uma fronteira política, no sentido moderno.

A partir do encontro entre guerra e política incluímos a mediação do espaço e da técnica. Toda mudança técnica é uma mudança na relação entre os elementos humanos e não-humanos, isso vemos também na guerra. As técnicas de guerra impõem novas relações com o espaço, resultando em novas configurações políticas geradas na e pela guerra. Seria esse o caso justamente do Estado moderno, como uma configuração político-territorial que traz em sua gênese a marca da guerra. Não de uma guerra ou outra especificamente, mas da maneira como as tecnologias de guerra alteraram as possibilidades do exercício do poder político sobre um território delimitado por fronteiras. No processo de formação dos estados modernos europeus, as formas de guerra e as estruturas de poder evoluíram de forma correlacionada tendo como resultado a consolidação de territórios e fronteiras estatais. A convergência entre os fronts de guerra e as fronteiras políticas na Europa pode ser explorada através da maneira como a guerra e a preparação para a guerra desenharam os limites políticos dos Estados nacionais europeus.

É bastante difundida a ideia de que o uso da pólvora ocasionou uma transformação radical na maneira de fazer a guerra. A mudança técnica ocorrida com o uso da pólvora nas guerras e a constituição dos Estados modernos são processos correlatos, mas para explicá-los é necessário incluir na análise a mudança que a pólvora ocasionou na dimensão espacial da guerra e do poder político. Por exemplo, o processo de desencastelamento comandado pelos reis para efetivar o monopólio dos meios de coerção num amplo território só foi possível com o advento tecnológico da pólvora, pois “o poderio dos castelos excedia em muito a força dos engenhos de assédio, uma verdade (…) que fora válida desde a construção de Jericó” (Keegan, 2006: 203). A associação entre pólvora e Estado moderno não foi um processo linear nem imediato, mas uma trajetória cheia de meandros, de idas e vindas que antecederam o momento em que se pode identificar com mais clareza essa associação.

As distâncias no campo de batalha

As mudanças técnicas no aperfeiçoamento das armas de projétil e dos dispositivos de defesa modificaram a escala e a organização espacial das batalhas no plano tático. A evolução técnica das armas permitiu que a distância entre o agressor e o alvo se tornasse cada vez maior. Até mesmo uma arma sem projétil como o piquete extraía sua vantagem da distância (3 metros) que permitia ferir o cavaleiro. Essa distância chegava a 100 metros no caso das balestras, a 200 metros, com o arco longo inglês, e a 250 metros com a balestra aperfeiçoada no século XIV. O mosquete, primeira arma de fogo pequena o suficiente para ser carregada pela infantaria, podia ferir um indivíduo a 180 metros, mas os tiros não eram muito precisos, só tinham efeito quando a carga era desferida contra uma massa de combatentes.

A crescente fragilidade da cavalaria medieval frente à emergência de novas formas de guerra ficou evidente na batalha de Legnano (1176), quando os cavaleiros foram derrotados por forças concentradas de piqueteiros (McNeill, 1988: 72). Entre os séculos XI e XIII, a eficácia dos balestreiros nas batalhas foi um fator de erosão da antiga forma de guerra baseada na cavalaria. Mas ainda faltava uma coordenação na batalha para evitar que piqueteiros e balestreiros ficassem numa posição vulnerável, uma vez que o intervalo entre os disparos ainda era grande.

No final do século XV, um novo sistema de guerra se desenvolveu na Itália (McNeill, 1988, p. 85). As guerras italianas no século XVI, com o desenvolvimento das armas de fogo e ampliação do papel da infantaria e da artilharia, com piqueteiros, mosqueteiros e uma nova formação tática, o tercio español. A partir de 1525, um cavaleiro a pé poderia lutar de igual para igual com um cavaleiro em seu cavalo.

As armas de fogo surgiram em 1326, mas até meados do séc. XV as catapultas ainda eram mais eficientes. A artilharia evoluiu com a adoção da forma esférica da bala de canhão em vez de uso da pedra, tornando os tiros mais velozes e mais fortes. Nos anos 1465-1477, ocorreu a diminuição do tamanho e a introdução das balas de ferro. A pólvora em grãos facilitou a ignição mais rápida (McNeill 1988, pp. 96-97). Desde 1450, prevaleceram os canhões de bronze; a partir de 1543, a Inglaterra começou a fundir canhões de ferro, novidade que só chega à França na década de 1660. O uso intensivo do metal dificultou que os italianos mantivessem a primazia na fabricação das armas, pois precisavam importar os metais do norte da Europa (McNeill 1988, p. 89).

Apesar da vantagem do canhão nas guerras de sítio, era preciso encontrar soluções adequadas para a dependência dos metais (McNeill 1988, pp. 94-95) e para a mobilidade das armas e das matérias-primas. A adoção das rodas e do cavalo para transportar o canhão, a absorção do retrocesso, a rápida transição entre posição de translado e disparo e o tamanho 2,5 m de longitude finalizaram o modelo que permaneceu até 1840. A distância do tiro dos canhões até o século XVI era limitada: maior que 90 metros, para proteger a artilharia, menor que 270 metros para ser efetivo (Parker 1995, p. 103).

A utilização das armas de fogo implicou uma mudança nos dispositivos de defesa. Entre 1450 e 1550, as fortificações mudaram sua arquitetura para se defender das novas armas. As novas fortificações adotaram o modelo de trace italienne: terra pouco compactada para absorver o impacto dos tiros, fosso para ampliar a distância dos agressores, bastião para permitir o contra-ataque. Uma vez modificado o traçado das fortificações, as defesas se tornavam quase intransponíveis, pequenos avanços poderiam levar meses ou anos (Parker 2005, p. 103). As novas fortificações, no entanto, eram bem mais caras: somente Estados com capacidade de arcar com os custos da construção poderiam adotá-las.

A centralização dos Estados e as altas despesas da guerra

A mudança no campo de batalha alterou a organização espacial do poder político, num primeiro momento a favor das cidades-Estado italianas, entre os séculos XII e XIV, e, posteriormente, contra as cidades-Estado a favor dos Estados mais extensos e centralizados, entre os séculos XV e XVI. Nesse “primeiro momento”, a ampliação do papel dos piqueteiros e balestreiros levou a êxitos militares que mudaram a correlação de forças entre as cidades-Estado e os demais poderes baseados na cavalaria, principalmente o Sacro Império e sua organização espacial fragmentada.

Já entre os séculos XV e XVI, o desenvolvimento das armas de fogo estabeleceu um novo padrão tecnológico. As defesas das cidades-Estado italianas não conseguiram conter a interferência de outros centros de poder na Península Itálica. Em 1494, a fortaleza de Nápoles na fronteira sucumbiu em oito horas, quando em ocasião anterior havia resistido durante sete anos (Keegan 2006, p. 408). “Na Europa, a principal consequência desse novo armamento foi impedir o crescimento das cidades-Estado italianas e reduzir outros pequenos reinos a proporções insignificantes” (McNeill 1988, p. 98). A mudança ocasionada no plano tático mais uma vez levou a mudanças na organização espacial do poder político, dessa vez no sentido contrário das cidades-Estado italianas.

Com a adoção do modelo de trace italienne, os custos da guerra aumentaram. Os espanhóis, vitoriosos na Itália, tiveram que se endividar para guerrear na Holanda. A Espanha não era auto-suficiente, precisava do dinheiro dos banqueiros para se armar. Por um lado a vitória espanhola sobre as cidades-Estado italianas demonstrou que a guerra assumia uma nova escala, cujos custos não podiam ser bancados pelas cidades-Estados, mas sim por Estados fortes com capacidade centralizada de arrecadação de impostos. Por outro lado, sua derrota frente à federação holandesa demonstrou que os Estados não podiam ser fortes sem o capital dos banqueiros, pois a arrecadação de impostos era um mecanismo limitado de ampliação dos gastos militares. “No século XVI, até as mais poderosas estruturas de mandato europeias chagaram a depender do mercado internacional de dinheiro e crédito para a organização militar e outros empreendimentos importantes” (McNeill 1988, p. 127).

Entre os séculos XIV e XVII, a administração burocrático-comercial se difundiu da Itália para a Holanda, França e Espanha. No século XVII, chegou à Alemanha, Suécia, Inglaterra e Rússia (McNeill 1988, p. 130). Charles Tilly afirma que a combinação entre capital e coerção deu aos Estados nacionais uma vantagem decisiva em relação às demais formas políticas existentes na Europa (cidades-Estado, Impérios, federações urbanas, etc.) (1990, p. 90-91). Os Estados nacionais “triunfaram na Europa porque os estados mais potentes – França e Espanha antes de todos os outros – adotaram formas de guerra que temporariamente esmagaram os seus vizinhos, e cujo suporte gerou como produtos secundários a centralização, a diferenciação e a autonomia do aparelho estatal” (1990, p. 262).

O que aparecia inicialmente como mera mudança no plano tático das batalhas (as armas de fogo e as novas fortificações, a “revolução militar” segundo Geoffrey Parker, no séc. XV) passou a representar um novo desafio para as unidades políticas, que diz respeito, por um lado, à extensão territorial e à centralização do poder político e, por outro lado, à capacidade de financiamento da guerra, com exércitos profissionais bem treinados e com grandes contingentes (elementos destacados pela “revolução militar” localizada por Michael Roberts entre 1560-1660).

Deslocar a guerra, construir fronteiras

Charles Tilly (1990) descreve o processo de concentração da violência na esfera estatal. Os meios de coerção do Estado foram construídos negando-os à população civil. O poder armado centralizado pelo Estado enfrentou o poder de nobres, cavalheiros, bandidos, mafiosi, etc., que ainda detinham o uso privado da força. Os processos de interdição desse uso privado foram concomitantes ao deslocamento da guerra e da defesa para as fronteiras. A estatização da guerra correspondeu a um processo concomitante de apagamento das guerras cotidianas ou privadas. “Cada vez mais as guerras (…) tende[ram] a não mais existir, de certo modo, senão nas fronteiras, nos limites exteriores das grandes unidades estatais, como uma relação de violência efetiva ou ameaçadora entre Estados” (Foucault 2002, p. 55). Nesse processo, constituiu-se também o aparato militar estatal definido para atuar na guerra. Foram derrubados os muros que cercavam castelos e cidades com diferentes graus de autonomia no interior dos reinos. O governo centralizado era sustentado por um sistema fiscal no qual, como no caso francês, “os canhões realizavam, se necessário, a coleta de impostos de vassalos renitentes” (Keegan 2006, p. 406). O conceito weberiano de Estado como o detentor do uso legítimo da força no interior de um território passa a fazer sentido, definindo da mesma forma o caráter territorial da soberania estatal.

O procedimento padrão descrito por Tilly considera a seguinte lógica: “todo aquele que controlava os meios substanciais de coerção, tentava garantir uma área segura dentro da qual poderia desfrutar dos lucros da coerção, e mais uma zona tampão fortificada para proteger a área segura” (1990, p. 70). Essa lógica serve para pensar a relação entre coerção e sistema fiscal baseado em taxas sobre riquezas imóveis, principalmente se focarmos a análise nas guerras terrestres dentro do continente europeu. O exemplo citado por Tilly era a França de Luís XIV, que apresenta o modelo mais bem acabado de formação de um Estado territorial pela consolidação de territórios contíguos através de fortificações localizadas nas fronteiras. Mas o mecanismo da zona-tampão, válido para pensar a formação dos Estados territoriais no continente europeu, não foi o único modelo de expansão e consolidação dos poderes estatais.

No permanente processo de mudanças nas formas de guerra a partir do século XV, a França obteve seu destaque no último quartel do século XVII, período em que consolidou um novo tipo de fronteira militar: a política de “portas abertas aos países vizinhos” deu lugar à “política de barreira” (Sahlins 1989, p. 68), conduzida pelo engenheiro militar Sebastien La Prestre de Vauban. Sua idéia foi “abandonar as fortalezas e cidades mais avançadas, renunciando aos postos avançados mais distantes em benefício de um espaço mais fechado” (Sahlins 1989, p. 68). Vauban aconselhava ao rei “pensar um pouco mais sobre enquadrar seu campo” e criticava a “confusão de fortalezas amigas e inimigas misturadas juntas”. A consolidação desse espaço fechado implicava expurgar os enclaves no interior da França. A soberania territorial garantia não só a fronteira militar, mas também a livre circulação entre os franceses (Sahlins 1989, p. 69).

A passagem do modelo de soberania jurisdicional dos Estados de Antigo Regime para o modelo de soberania territorial correspondeu a um processo de cerca de duzentos anos, desde meados do séc. XVII e finais do séc. XIX, com idas e vindas e conflitos abertos entre as grandes potências europeias. Nesse processo, a cartografia moderna foi um importante instrumento de poder na delimitação dos territórios nacionais (Raffestin 1993, p. 145). No século XVII, a cartografia militar se consolidou como atividade sistemática dos engenheiros reais, não só pelas necessidades logísticas e táticas, mas também para reconhecer as zonas fronteiriças em que se precisava assegurar os direitos do rei (Revel 1989, p. 147). No século XVIII, o mapa da França de Cassini possibilitou pela primeira vez que um exército estivesse “equipado com uma carta topográfica precisa do território que ele tinha a missão de defender” (Guerlac 2001, p. 107).

Guerras na Europa, conquistas europeias

Os processos de formação dos Estados modernos e do sistema interestatal estiveram relacionados a intensas e contínuas modificações nas formas de guerra, apesar de não existir um consenso entre os autores no que diz respeito à periodização, à localização e aos principais elementos que constituíram a “revolução militar” dos tempos modernos. As periodizações da “revolução militar” demonstram a dificuldade em definir que elementos, momentos e lugares foram significativos nas mudanças do warfare ocidental desde o século XIV. Independentemente dos marcos temporais escolhidos para definir a cronologia das mudanças técnicas da guerra e suas implicações políticas, o vínculo entre as mudanças ocorridas na organização espacial das formas de guerra e dos poderes políticos pode ser claramente verificado na descrição aqui feita.

Embora tenha sido uma narrativa restrita ao espaço político da Europa Ocidental, considerando principalmente a dinâmica do espaço terrestre e continental, sem levar em conta a guerra marítima e suas implicações, as consequências das guerras e da formação dos Estados modernos dentro da Europa estão intimamente relacionadas aos processos de conquista europeias nos demais continentes. Arrighi demonstra que a conexão estabelecida entre a competição intraeuropeia e a expansão global da conquista europeia gerou um círculo virtuoso em que “as técnicas que se haviam desenvolvido na luta dentro da Europa foram usadas para subjugar territórios e comunidades extra-europeus; riqueza e poder provenientes da subjugação desses territórios e comunidades foram usados na luta dentro da Europa” (Arrighi 1994, p. 41). É o círculo virtuoso/ vicioso entre “capitalismo, industrialismo e militarismo” (2007: 274), ideia desenvolvida a partir do apontamento Adam Smith de que “a grande despesa da guerra moderna dá vantagem militar às nações ricas sobre as pobres” (Arrighi 2007, pp. 80 e 105). Esse continuum, proposto por Smith, entre pólvora, guerra moderna e grande despesa é uma parte relevante da explicação sobre a vitória europeia sobre os povos não-europeus.

 

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LICIO CAETANO DO REGO MONTEIRO é geógrafo, doutor em Geografia (UFRJ) e pesquisador do Grupo Retis/UFRJ. Tem como principais temas de pesquisa: segurança internacional, geopolítica e fronteiras. Trabalhou como professor substituto no Colégio Pedro II (2011-2012) e na UERJ (2013). Desde 2012 atua como pesquisador na Pesquisa sobre Segurança Pública nas Fronteiras (SENASP/NECVU/RETIS).

 

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