03 | Dossiê

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A Onça e a Memória

A onça e a memória

 

Felipe Süssekind

 

1.

Dois vaqueiros passaram o dia todo trabalhando numa fazenda que ficava numa região próxima ao rio Paraguai, no Pantanal sul. A fazenda ainda era nova, e não tinha nenhuma casa construída. No final da tarde, eles pararam de trabalhar, acenderam o fogo para cozinhar e armaram um pequeno barraco de lona, onde colocaram suas redes de dormir. Enquanto montavam o acampamento, começaram a ouvir uma espécie de som grave vindo da direção de um corixo (um braço de rio) próximo, e o mais velho deles, que era um caçador experiente, identificou imediatamente o esturro da onça-pintada.

Durante todo o tempo em que preparavam sua comida, eles ouviram o barulho da onça vindo do outro lado do rio, e quando anoiteceu o som mudou de direção e se tornou mais próximo. O vaqueiro mais velho tinha apenas um antigo revólver 22. O mais jovem, que estava desarmado, resolveu improvisar uma zagaia (uma espécie de lança usada na caça), amarrando um facão que tinha levado a um pedaço de pau.

Depois do jantar, eles alimentaram a fogueira do lado de fora do barraco com bastante lenha, para se assegurar que a onça não ia se aproximar, e foram se deitar. O velho caçador assegurou ao jovem que ela não ia atacar se eles ficassem quietos e não mexessem com ela. Depois disso, ouviram-na rondando o lugar até tarde, mas estavam tão cansados do trabalho que acabaram dormindo.

Quando acordaram, o sol já estava saindo. Foi aí que perceberam que a onça tinha vindo até o acampamento durante a noite. Ela tinha passado ao lado das redes em que estavam dormindo e chegou a remexer na lenha que sobrou da fogueira. O jovem vaqueiro comentou aliviado: “bem que o senhor falou que ela não mexe com a gente”, e o caçador mais velho comentou que ela não estava com fome, e que ainda bem que nenhum deles roncava, porque a onça é atraída pelo ronco.

 

O caçador da história era Seu Inácio, que foi quem me narrou o caso. Eu estava na fazenda Santa Sofia, localizada na bacia do rio Miranda, no Mato Grosso do Sul, para acompanhar as atividades de um projeto de pesquisa e conservação de onças-pintadas[1], e já tinha ouvido falar nele. Seu Inácio tinha sido capataz de uma fazenda vizinha, e era um exemplo do tipo de caçador mais tradicional no Pantanal, um vaqueiro que tocava a fazenda do patrão e tinha se especializado na caça, criando seus próprios cães para perseguir as onças que atacassem a criação. Como era um bom caçador e tinha cães de qualidade, costumava ser procurado também por outros fazendeiros da região que estivessem tendo problemas com predadores. Na época em que o projeto de pesquisa sobre as onças se estabeleceu na região, em 2007, ele já tinha ido trabalhar como capataz em outra parte do Pantanal. Conheci-o em setembro de 2008, quando fez uma visita à fazenda Santa Sofia.

Algumas semanas depois desse primeiro encontro, visitei a fazenda para onde Seu Inácio havia se mudado, no Pantanal do Nabileque. Ele queria me mostrar restos de alguns bezerros mortos pela onça, e fomos dar uma volta de cavalo. Depois de mais ou menos uma hora de cavalgada, apontou três ossadas diferentes espalhadas num trecho de cem metros de campo, acompanhando a vegetação fechada de um capão. Ele contou que tinha levado os cachorros naquelas ‘carniças’, mas que a onça tinha escapado atravessando o rio Paraguai logo depois de comer cada um dos bezerros.

As onças são caçadoras de tocaia, que observam sua presa sem se deixarem ver, e isso traz uma dimensão específica para a experiência de quem divide o espaço com elas, uma sensação particular que marca a paisagem, que confere ao lugar uma qualidade própria. Na história de seu Inácio, no início deste texto, ele e o outro vaqueiro entram em uma relação predador-presa com a onça, um jogo de espreita, de espera, de ver quem observa e quem é observado. De fato, eles não chegam a vê-la em nenhum momento. A presença dela é percebida, primeiro, a partir dos sons, e depois a partir dos rastros que deixa em volta do local onde dormiam; é uma presença fantasmagórica, reconstituída através de indícios.

 

2.

Indagado sobre como tinha aprendido a caçar, Seu Inácio explicou que aprendeu com o avô, que matava onça na zagaia. Ele narrou como ajudava o avô, e a história era muito semelhante a outras que eu já tinha ouvido na região. O tema, que se repetiu em pelo menos três outras entrevistas minhas, envolvia um narrador que abre uma picada para preparar o terreno onde acontece a luta entre o zagaieiro e a onça.

Um bom exemplo é o depoimento de um vaqueiro antigo, já aposentado, que entrevistei na cidade de Miranda, o qual reproduzo a seguir:

E o senhor já viu caçada na zagaia?

Vi só uma vez. Foi aqui mesmo, no Nabileque, mas era um poconeano. Eu esqueci o nome dele, chamavam ele muito de ‘gato’. Era baixinho, um pouco mais baixo que eu, mas era troncudinho, assim; tinha muita força. Cachorro tava acuando a onça, e ele falou: “Vai limpando aí pra mim, vai roçando”. Eu era bem mais novo, e ele falava: “vai roçando aí, meu filho, não tenha medo não, eu estou aqui firme”. E eu com a foice cortando, e ele falava: “corta bem baixinho, bem rentinho, vai limpando tudo”. E a onça lá, os cachorros trabalhando ela. De vez em quando ela dava um bufo, e eu com um medo danado, mas fui roçando.

Ele falou: “Pode sair da frente, que agora ela vem”. E aí ele mandou o cachorro mestre. O cachorro dava aquela avançada, e depois corria pro lado dele. E foi a hora que ela veio em cima dele. Só que ele firmou a zagaia nela, e quando ele empurrou, assim… parece que ela mesma se ferra. Eu sei que ela deu uma ‘gatanhada’ ali. Ele empurrou e o bicho caiu de lombo, e ele deu um salto pra lá, seguro no cabo da zagaia, deu aquele salto. Mas pegou mesmo no pé do pescoço, bem no sangrador. Foi uma só. O bicho esperneando ali, não fez mais nada. De certo alcançou o coração logo, porque aquilo corta dos dois lados e tem ponta, a zagaia. Eu falei: “eu não tento pegar na zagaia, não”.

O papel dos zagaieiros, que eram contratados pelos proprietários rurais para desonçar determinadas regiões a serem ocupadas por fazendas, foi explorado por Guimarães Rosa no conto “Meu tio o Iauaretê” (1961). O conto se desenrola em uma atmosfera tensa, uma espécie de jogo complexo entre presa e predador que envolve o visitante branco e o onceiro. Aquele que dormir primeiro, morre, o que nos remete de novo à nossa história inicial. Não por acaso, o personagem é um bugre, mestiço de pai branco e mãe índia; a zagaia, essa lança rústica de cabo de madeira e ponta de ferro, remete diretamente a uma herança indígena.

Em muitos casos, entretanto, o elemento indígena é ocultado ou mesmo visto de forma negativa no universo das fazendas pantaneiras. Um exemplo disso é o depoimento da cozinheira de uma fazenda em que estive. Ela era filha de uma índia terena, mas não se identificava como índia, e relatou que o pai, um vaqueiro de Miranda, não deixou que a língua indígena fosse ensinada dentro de casa. Um antigo funcionário dessa mesma fazenda, já aposentado, também era filho de uma terena e de pai gaúcho, e tinha sido criado numa aldeia guarani antes de ir trabalhar como empreiteiro e capataz de comitiva. Ele sabia falar guarani, mas não se lembrava de nenhuma palavra da língua terena.

Outro exemplo interessante para articular o tema dos zagaieiros com o da mestiçagem é o de Seu Celestino, um conhecido caçador que viveu na região do Pantanal do Miranda, filho de uma índia Bororo com um homem branco de Cuiabá. Ele já havia falecido quando comecei a pesquisa, mas tive a oportunidade de fazer uma entrevista com seu genro, para quem perguntei:

É verdade que nos tempos antigos o pessoal matava onça na zagaia?

Matava. Meu sogro chegou aqui na fazenda Miranda Estância, na época, só pra matar. Veio com outro caçador, só pra matar onça. Ele matou duzentos e oitenta onças. Quando acuava no chão, ele pegava na zagaia. Quando subia, atirava.

E aonde foi que ele aprendeu?

Ele aprendeu com o sogro dele, muito tempo atrás, quando ele era solteiro ainda. O sogro dele, diz que tinha um ditado, assim, que para casar com a filha dele tinha que pegar uma onça na zagaia. (risos) Ele gostava da filha dele, e aí teve que encarar o velho e pegar uma onça na zagaia. (Ent. 2008)

A partir de um extenso trabalho bibliográfico sobre o grupo indígena Guató, que antigamente habitava o alto rio Paraguai e o São Lourenço, Oliveira (1996) afirma, de forma semelhante que, para esses índios, a caçada de onça “[f]az parte também de uma espécie de rito de passagem dos jovens (…), pois cada onça caçada poderia dar direito a uma esposa.” (1996: 109). O autor afirma ainda, a esse respeito, que “[p]ara os homens, quanto mais onças caçadas, maior o seu status de caçador” (idem).

Os Guató são conhecidos por terem sido exímios caçadores de onças. Sasha Siemel, um caçador lituano que ficou famoso nos EUA com as narrativas de suas caçadas, relata em seu livro autobiográfico Tigrero! (1953) o aprendizado do manejo da zagaia com um índio chamado Joaquim Guató.  Pereira da Cunha (1949), militar brasileiro que acompanhou Theodore Roosevelt em caçadas no Pantanal em 1913, descreve como um casal desses índios era capaz de enfrentar a onça apenas com a zagaia e com flechas, usando o artifício de imitar o esturro do felino para atraí-lo.

É importante ressaltar, entretanto, que essas duas referências aos zagaieiros são feitas por autores ligados a um tipo de caçada muito presente na história pantaneira, os “safáris” que atraíam visitantes ricos à região na primeira metade do século XX. O desenvolvimento das armas de fogo e a intensificação dos métodos de manejo de gado, nessa época, amplificaram a eliminação de onças e tornaram o processo cada vez mais sistemático, levando à extinção da espécie em muitas áreas do Pantanal.

A legislação de caça é regulamentada no Brasil desde 1967, quando a atividade foi declarada proibida para qualquer espécie da fauna silvestre nativa, e foi modificada pela última vez em 1988, estabelecendo punições mais severas para os caçadores. Na prática, no entanto, não há até hoje uma política efetiva do governo voltada para o manejo e a conservação dos animais silvestres, e muitos proprietários rurais pantaneiros continuam a reivindicar o direito de abater os animais que ataquem o gado. Isso faz com que a caçada tradicional seja apontada por especialistas como a principal ameaça para a conservação da população da onça pantaneira atualmente.

O encontro entre caçador e onça evocado pelo tema dos zagaieiros remete, por outro lado, a um tipo de caça artesanal, rústico, ligado ao passado indígena dessa região. Minha intenção aqui é tomar essa memória como uma pista para discutir alguns aspectos do encontro entre biólogos e caçadores locais, especificamente em relação ao caso ao projeto de conservação da onça-pintada que acompanhei. O traço indígena reaparece adiante em algumas situações envolvendo maus entendidos ou problemas ligados a uma espécie de “choque cultural” presente nesse encontro.

 

3.

A primeira das situações a que me refiro aconteceu na fazenda Santa Sofia. Cheguei à fazenda, em abril de 2008, com o intuito de acompanhar a captura de uma onça-pintada. Depois de capturada, a onça ia receber um colar equipado de sistema de rádio e GPS, e passaria a ser monitorada pelos pesquisadores, interessados em estudar seus movimentos e hábitos alimentares. A equipe envolvida na atividade de captura era composta por seis pessoas: o biólogo que coordenava o projeto, dois biólogos de campo, dois veterinários, e um guia de campo. Este último, seu Mariano, era um antigo morador da região com experiência como caçador, e era o principal responsável pelos cuidados com os cães onceiros envolvidos na captura.

Seu Mariano caçava onças em uma fazenda da região do Pantanal do Miranda até o final dos anos 1980. Quando a fazenda começou a explorar o turismo ecológico, ele passou a trabalhar como guia, e depois estabeleceu uma parceria com o biólogo que coordenava o projeto na Santa Sofia. A caçada tradicional, com cães farejadores, tem sido um dos métodos mais eficazes utilizado por biólogos desde os primeiros estudos sobre o tema desenvolvidos no Pantanal, no final dos anos 1970 (Schaller 2007). No caso da captura para a pesquisa científica, a bala da espingarda é substituída pelo dardo anestésico da arma de ar comprimido, e o objetivo é estudar e conservar, e não eliminar os animais. Ao envolver a utilização de cães de caça e a assimilação de conhecimentos nativos, é interessante, neste caso, como uma tradição ligada à eliminação das onças pode ser redefinida como algo ligado à sua preservação.

Uma onça havia sido perseguida no dia anterior a minha chegada na Santa Sofia, sendo acuada pelos cães algumas vezes, mas ela não tinha subido, e no final havia escapado, deixando dois cachorros mortos e outros dois feridos durante a perseguição. As tentativas de colocar as coleiras de rádio nas onças pela equipe do projeto já se estendiam há dois meses, mas nenhuma havia sido capturada até então, o que trazia uma tensão muito grande para os responsáveis. Seu Mariano estava muito chateado com os últimos acontecimentos. Refletindo sobre o assunto, ele observou que as onças tinham se afastado porque era época da cheia, e a maior parte do gado tinha sido retirado da fazenda. “Elas vão onde está o gado”, comentou.

Ele atribuía os problemas ocorridos nas capturas também ao período da quaresma, em que estávamos, e é esse o detalhe da história que quero chamar atenção aqui. Seu Mariano me explicou que é costume dos antigos não caçar, além de não comer carne vermelha nessa época do ano. Afirmou que, se alguém sai para caçar na quaresma nada dá certo, e que na sexta-feira santa os mais velhos nem acendem fogo, preparando toda a comida daquele dia na véspera. As evidências apresentadas por ele de que não se devia caçar incluíam os problemas com os cães e também o mau funcionamento das duas armas de ar-comprimido que seriam usadas para anestesiar as onças, as quais tinham dado problema ao mesmo tempo. Ele comentou que uma delas havia inclusive disparado acidentalmente no laboratório, quebrando o vidro da janela, mas que não insistia nesse tema com os biólogos porque eles eram da cidade e não acreditavam nessas coisas.

Essas considerações do caçador a respeito da quaresma podem ser relacionadas a um tema muito amplo proveniente da literatura sobre os povos indígenas da Amazônia e do Brasil Central, que é o tema do azar na caça. O tema foi abordado por Mauro Almeida (2007) em relação aos povos ribeirinhos da Amazônia, onde há, assim como no Pantanal, uma mistura de elementos indígenas e católicos. Na Amazônia, o azar na caça é designado genericamente pelo termo panema. Almeida descreve panema como um conceito abstrato, uma força “como a gravidade”, algo que pode ser experimentado e sentido no corpo, e que é um “componente generalizado da ontologia de caçadores da planície amazônica” (2007: 9). O conceito parece se aplicar bem ao caso em questão:

Não se trata propriamente de infelicidade ocasional, má sorte, azar, mas de uma incapacidade de ação, cujas causas podem ser reconhecidas, evitadas e para as quais existem processos apropriados. (…) [O caçador] acredita que ele próprio ou um dos instrumentos de que se utiliza, a linha, o anzol, a carabina, estejam ‘epanemados’. (Almeida 2007: 8)

O argumento de Seu Mariano de que os biólogos não acreditam nessas coisas, no caso analisado aqui, aponta um contraste entre duas formas de apreensão do mundo e da vida animal em particular. A adesão a esses diferentes modos de entender (ou acreditar) apareceria ainda em outras situações ligadas ao contato entre cientistas e pantaneiros, que dizem respeito a certos mal-entendidos que observei durante o trabalho de campo.

Um primeiro exemplo é o caso relatado por um dos biólogos de campo do projeto. Era comum que os cavalos da fazenda fossem encontrados pela manhã com uma espécie de trança na crina, o que deixava alguns vaqueiros bastante ressabiados, pois consideravam que aquelas tranças eram obra do saci. O biólogo me explicou de forma convincente que as tranças eram fruto da ação dos pequenos morcegos vampiros que se embolavam na crina dos animais, mas esta explicação não parecia deixar os vaqueiros da fazenda menos preocupados.

“Eu não deixo criança andar meio-dia” – dizia Dona Lita, esposa do capataz da fazenda. O perigo era que as crianças fossem levadas pelo saci louro, criatura que os adultos não vêem, mas que reconhecem por um piado agudo que não é de nenhum pássaro. O biólogo que coordenava a pesquisa sobre as onças, ao ouvir essa história, disse, em tom de brincadeira, que ia “colocar coleira nesse saci”. Vanderlei, outro funcionário da fazenda que escutava a conversa, respondeu à provocação afirmando que ele estava “igual o cara que o saci deixou amarrado no campo”. Quando questionado a respeito dessa descrença do biólogo, Vanderlei me disse que não se deve duvidar dessas coisas, e comentou que “a pessoa que é estudada, que tem estudo, é mais pela ciência. Só que tem muitas coisas que na cidade não tem, você não vê. Essas coisas anormais assim não acontecem na cidade. Você só vê onde é sossegado, onde é tranqüilo” (ent. 2008)

Um dos campeiros da fazenda, Raul, citou em entrevista uma criatura chamada Maozão, um ser sobrenatural sobre a qual eu já havia lido na etnografia de Banducci (2007), pesquisador que trabalhou no Pantanal da Nhecolândia. O campeiro definiu-o como um “pai do mato”, um “protetor”, que surge quando alguém quer abrir uma clareira na floresta ou então numa caça desmedida, quando o caçador quer levar mais porcos do que pode comer. Seres desse tipo podiam ser encontrados, de acordo o relato do jovem vaqueiro, principalmente em certos capões como o aguaçuzá, um tipo de mato onde, segundo ele, os bichos e o gado bagual se abrigam quando são perseguidos. Raul contou ainda a seguinte história:

Diz que há muito tempo, a bisavó do meu pai foi pega a laço. Ela se perdeu, aí ficou quase um ano assim, e a turma procurando. Mas aí um dia, saíram cedo e viram que num capão, tinha um gado parado. A turma só com cavalo bom mesmo, de pegar bem pego. E ela tava sentada, bem quebrando coco no coxo. Era ela, a bisavó do meu pai. Ficou selvagem, bagual duma vez! Mas diz que corre duro! O cavalo suou pra dar nela. Só um cara que alcançou, quase entrando no capão. Jogou laço, cerrou nela e puxou, mas ela vinha de unha e pé. Aí jogaram outro laço, e juntou todinho o pessoal e pegou ela. Aí trataram, levaram na igreja, tudo, e ela voltou ao normal.

Bagual” é o termo que designa o gado selvagem pantaneiro, hoje em dia muito raro ou mesmo ausente nesta região do Pantanal. O bagual pode ser apontado ora como índice de atraso, ora como símbolo da autenticidade da pecuária pantaneira. A doma do gado selvagem, ou “bagualhação”, faz parte das tradições locais, e representava um desafio e uma prova de coragem para os vaqueiros. Na narrativa, a menina “corre duro” e é “pega no aço”, como o gado selvagem. O interessante aqui é ele dizer que a criança ficou “bagual de uma vez”, estendendo um termo usado para o gado a um ser humano.

Os casos que acabo de citar eram, em sua maior parte, temas de brincadeiras durante o período em que estive na fazenda. Minha intenção é levar esses casos a sério, como elementos de uma diferença constitutiva das relações entre pantaneiros e cientistas. Eu poderia dizer que eles pertenciam a culturas diferentes, mas neste caso cairia na armadilha de pressupor que ambos compartilham uma mesma natureza, da qual cada um possui uma visão relativa. O problema deste argumento é que eu estaria escolhendo um lado, na medida em que compartilho a “crença” na natureza ocidental moderna como uma realidade objetivamente acessível pela ciência, e que, como os cientistas, não ‘acredito’ na existência do saci, nem do maozão, como criaturas que podem ser encontradas na mata. O desafio que se coloca, neste ponto, é o de se tratar esse encontro de modo a dissolver a assimetria inicial e tratar os dois lados no mesmo plano.

 

4.

Procurei expor ao longo deste artigo uma série de aspectos do que seria uma herança ou memória indígena que se faz presente no Pantanal. Essa dimensão da memória aparece no tema dos zagaieiros ligada a um tipo de conhecimento específico proveniente da caça, a um engajamento entre caçador e onça situado numa relação de predação. Nos temas do azar na caça e na história do Maozão, essa reminiscência surge ligada a uma economia ontológica em que o domínio moral não é algo exclusivamente humano.  O traço indígena aparece, por fim, na reversibilidade entre bicho e gente, manso e brabo, evocada pela história da menina selvagem.

A figura do Maozão pode ser aproximada do tema do Caipora analisado por Almeida (2007). Caipora é o protetor ou dono dos animais com o qual os seringueiros da Amazônia interagem. Almeida argumenta, a partir dos aspectos de reciprocidade envolvidos na relação com esses seres, que “Caiporas são partes de redes”, e que essas redes envolvem “conexões não hierarquizadas de pessoas, animais, instrumentos de caça, partes da floresta e partes da casa” (2007: 12). Assim como o conceito de panema, o Caipora está inserido no que Almeida chama de uma “economia ontológica da caça” (2007), a partir da qual “pessoas, animais, instrumentos e seres da floresta” são conectados numa mesma trama.

O contraste entre pensamento científico ocidental e pensamento indígena remete ao célebre tema de Lévi-Strauss do pensamento selvagem. O contraste neste caso é entre um conhecimento científico marcado pelos ideais de objetividade e um pensamento regido pela lógica do sensível. Há uma inversão da importância dada às qualidades sensíveis, como cor, textura, cheiro, etc, em relação à ênfase nas qualidades ditas “primárias” com os quais o pensamento civilizado, ou científico, trabalha.

Mauro Almeida propõe, de forma mais radical, que “o confronto que se anuncia no horizonte não é epistemológico, mas sim ontológico” (Idem), e procura caracterizar uma ontologia animista como alternativa para se pensar o processo da vida, o desdobramento criativo dos organismos no mundo, humanos e não humanos. Nesse sentido, o traço indígena surge não como uma herança, uma sobrevivência, no sentido de algo que não é mais, mas sim como um índice, um rastro, e nesse sentido um vir a ser ou devir indígena (nos termos de Deleuze e Guattari).

Ao pensarmos em um contraste entre a onça como objeto do conhecimento científico e a onça como objeto de um conhecimento local pantaneiro, vemos que a própria ideia de que ambos falam da mesma onça é suspeita, na medida em que a palavra “objeto” está ligada a uma ontologia naturalista que tende a reduzir a onça um recurso, algo que pode ser manejável, uma coisa. As relações entre sujeitos e objetos, no entanto, tornam-se mais complexas se pensarmos nos termos da antropologia simétrica formulada por Bruno Latour (1994), sugerida pela referência de Almeida à noção de “rede” (2007: Op. Cit). A redução da onça a um objeto, neste caso, diria respeito a um movimento específico que remete ao fluxo do campo (ou do laboratório, onde a pesquisa é realizada) ao artigo científico, com a produção de dados estatísticos, gráficos, dados mensuráveis, a partir do que é observado empiricamente. Mas, como demonstra Latour, este é apenas um dos lados da ciência; o que acontece em campo é uma produção incessante de híbridos, de misturas que só vão ser purificadas neste movimento de dentro para fora.

Nas práticas analisadas aqui, o campo pode ser caracterizado, nesse sentido, como lugar do engajamento intersubjetivo, pessoal, perceptivo, onde objetos e sujeitos não estão previamente separados. Um lugar onde onças, gado, cães e outros animais podem ser tomados como agentes e não como objetos passivos, e onde diferentes ontologias podem entrar em composição, o que aponta para uma espécie de contrafluxo animista ao processo de objetificação presente no conhecimento científico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Mauro W. B. 2007. “Caipora e outros conflitos ontológicos” (mimeo). Conferência Quartas Indomáveis, São Carlos. Disponível em:

http://mwba.files.wordpress.com/2010/06/2008-almeida-caipora-e-outros-conflitos-ontologicos-_sao-carlos–rev-_2010-02.pdf. Acesso em 06/2013.

BANDUCCI JR., Álvaro. 2007. A NATUREZA DO PANTANEIRO – Relações sociais e representação de mundo entre vaqueiros do Pantanal. Dissertação em Antropologia Social, USP, 1995.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. 1997 (1980). “Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível.” In: Mil platôs – Vol. 4. São Paulo: Editora 34. (pp. 11-115)

GARCIA, Uirá, 2012. “O funeral do caçador: caça e perigo na Amazônia”. Anuário Antropológico, 2011/II: 33-50

LATOUR, Bruno. (1994) Jamais Fomos Modernos – Ensaios de Antropologia Simétrica. São Paulo: Editora 34. 2005.

LÉVI-STRAUSS, Claude. 1976. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional

OLIVEIRA, Jorge Eremites de. 1996. Guató: argonautas do pantanal. Porto Alegre: EDIPUCRS

PEREIRA DA CUNHA, Comandante H. 1949 (1922). Viagens e caçadas em Mato Grosso. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves.

SCHALLER, George B. 2007. A naturalist and other beasts: tales from a life in thefield. San Francisco: Sierra Club Books.

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SÜSSEKIND, Felipe. 2010. O rastro da onça: etnografia de um projeto de conservação em fazendas de gado do Pantanal. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. In: Mana, v.2, n.2. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1996. pp. 115-143

 


[1] Em pesquisa de campo para um trabalho de doutorado em antropologia pelo Museu Nacional, UFRJ (Süssekind 2010). Optei aqui por alterar utilizar nomes fictícios para as pessoas citadas e também para as fazendas.

 

***

FELIPE SÜSSEKIND é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional, UFRJ (2010). Possui mestrado em História Social da Cultura pela PUC-Rio (2000) e graduação em Belas Artes pela UFRJ (1997). Desenvolve atualmente projeto de pós-doutorado em Filosofia na PUC-Rio. Fez pesquisa de campo sobre projetos de conservação da onça-pintada no Pantanal do Mato Grosso do Sul. Seu trabalho na região gerou também um documentário, Onceiros (2012), que pode ser assistido no link: https://vimeo.com/45760818.

 

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