02 | Dossiê

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Quem somos? Nós e trilhões de bactérias

Quem somos? Nós e trilhões de bactérias

 

Marcelo Bozza e Daniel Mucida

 

“…aquilo que ele procurava estava diante de si, e mesmo
que se tratasse do passado, era um passado que mudava
à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o
passado do viajante muda de acordo com o itinerário
realizado…” 

Ítalo Calvino- As cidades invisíveis.

 

 

A vida na Terra é caracterizada pela presença ancestral, contínua e massiva de bactérias nos mais variados habitats do planeta. O nosso corpo é um desses habitats e abriga mais bactérias do que células codificadas pelo nosso genoma. O longo convívio e a coevolução de seres multicelulares com a microbiota trouxe e traz benefícios incalculáveis. Estudos recentes demonstram um papel central da microbiota na manutenção da saúde e o seu desbalanço na gênese de diversas patologias. 

 

Os seres vivos da Terra tem como ancestral comum uma célula pequena, com poucas estruturas internas, que viveu há cerca de 3 bilhões de anos. Fósseis de bactérias primitivas datam deste período e por cerca de 1 bilhão de anos os procariotos, seres unicelulares sem núcleo definido, como as bactérias, foram as formas de vida dominantes e quase exclusivas no planeta.

Ilustração de Vicente B. T. Bozza.

Estes seres vivos afetaram profundamente algumas das características mais marcantes de nosso planeta, incluindo o aumento crescente na tensão de O2 atmosférico, o que permitiu o surgimento de seres vivos dependentes do oxigênio para a respiração celular. Apesar da grande simplicidade estrutural, ainda hoje as bactérias são os seres vivos mais abundantes no planeta, assim como os maiores geradores de oxigênio. Na verdade, se considerarmos vírus como seres vivos, os bacteriófagos (vírus de bactéria) são ainda mais abundantes (aproximadamente 1031 partículas, ou 10 vezes mais que as bactérias). A grande versatilidade das bactérias quanto a obtenção de energia de diferentes fontes e a capacidade de viver em condições extremas de temperatura, salinidade e acidez permitem a sua existência nos mais variados habitats.

Os primeiros seres eucariotos unicelulares evoluíram dos procariotos há mais de 2 bilhões de anos e apresentavam estruturas celulares mais complexas, incluindo um núcleo verdadeiro e organelas, e desde o princípio estiveram rodeados por um mundo dominado por bactérias. A contínua convivência de eucariotos e bactérias afetou profundamente a vida na Terra. A base desta convivência envolveu, e ainda envolve, importantes aspectos de reconhecimento, comunicação, adesão e sinalização celulares. As bactérias constituem fonte nutricional e são responsáveis por diversas reações metabólicas essenciais para diversos seres vivos, incluindo outras bactérias e seres eucariotos. Um dos aspectos mais curiosos deste convívio entre bactérias e seres eucariotos foi o surgimento da organela mitocôndria a partir de bactérias que viviam em simbiose no interior das células eucarióticas. A mitocôndria é a organela responsável pela geração de energia em células eucarióticas. Ao longo de um complexo processo de coevolução estas bactérias que infectavam células eucarióticas ancestrais perderam algumas das características que as tornavam autônomas e tornaram-se parte da maquinaria celular. De forma similar o cloroplasto, responsável pela fotossíntese, também se originou de bactérias simbiontes. Estas duas organelas exemplificam quão essencial as bactérias foram para o surgimentos de organismos complexos, já que em ambos a respiração e a fotossíntese se originaram de bactérias.

Os eucariotos unicelulares por sua vez deram origem aos seres vivos multicelulares como animais e plantas há cerca de 1 bilhão de anos. O surgimento de organismos multicelulares está diretamente associado à especializações celulares em termos morfológicos e funcionais, e a conectividade entre as diferentes células do organismo. As células passaram a ter funções únicas na economia do organismo e passaram a se organizar em tecidos mais e mais especializados. Os aspectos envolvidos nesta transição de seres unicelulares para seres multicelulares são controversos, entretanto a capacidade predatória e de formação de colônias provavelmente tiveram um importante papel na evolução dos animais. De fato, o reconhecimento de bactérias por algumas espécies de eucariotos unicelulares leva a formação de colônias, sugerindo um papel do reconhecimento bacteriano como contribuinte na geração da multicelularidade.

Os seres multicelulares tem células epiteliais que recobrem o organismo, integrando, delimitando e definindo o corpo, separando-o do ambiente e permitindo sua interação com este ambiente. As células e tecidos dos seres vivos multicelulares se tornaram nichos para agentes infecciosos como vírus, bactérias, protozoários e fungos. As infecções ocorrem basicamente em dois ambientes do corpo de seres multicelulares: no exterior ou no interior de células. Dentre as especializações celulares, seres multicelulares primitivos como esponjas já apresentam células especializadas na defesa contra agentes infecciosos, na retirada de células senescentes ou mortas e no reparo de tecidos danificados. Estas células com aspecto amebóide e capacidade fagocítica constituem o sistema imune destes seres primitivos e são os ancestrais dos macrófagos encontrados nos vertebrados. Portanto, o sistema imune tem um papel único no controle do bem-estar das células dos organismos multicelulares e no convívio destes seres vivos com os mais diversos agentes infecciosos. Ao longo da filogenia, de invertebrados aos mamíferos, há uma intensa especialização das células e tecidos do sistema imune. A partir dos vertebrados mandibulados, no período de surgimento dos tubarões, há o desenvolvimento de um sistema imune adaptativo, caracterizado pela presença de linfócitos capazes de reconhecimento antigênico, que vem se adicionar ao sistema imune inato já presente desde os invertebrados. A evolução do sistema imune foi influenciada pelo contínuo contato com agentes infecciosos incluído a microbiota e com elementos da dieta. O desenvolvimento da mandíbula permitiu a ingestão de substâncias mais complexas e muitos cientistas associam isso ao surgimento do sistema imune adaptativo.

Os seres vivos com um tubo digestivo apresentam uma grande superfície epitelial, de certa forma protegida das contínuas variações do ambiente externo. De invertebrados aos seres humanos a superfície epitelial do tubo digestivo é colonizada por bactérias, fungos e vírus, sendo a soma total destes microrganismos denominada de microbiota intestinal. As bactérias são de diferentes gêneros, classes, famílias e espécies. É importante ressaltar que a grande maioria das espécies bacterianas que compõem a microbiota intestinal não é encontrada em outros habitats. Ou seja, para cada espécie animal que entra em extinção, um número desconhecido de espécies bacterianas que coevoluiu de maneira dependente das interações únicas nos nichos do hospedeiro também desaparece. Esta interdependência também se estende aos bacteriófagos, apesar de muito pouco ter sido descrito sobre os bacteriófagos que infectam as bactérias do trato intestinal.

Nos seres humanos a mucosa intestinal tem uma superfície de cerca de 300 metros quadrados e forma a maior superfície do corpo exposta ao ambiente externo. O intestino absorve aproximadamente 100 gramas de proteínas da dieta a cada dia e é o habitat de um número estimado em 100 trilhões de bactérias comensais. O número de bactérias, apenas em nosso trato digestivo, corresponde a 10 vezes o número de células do corpo humano. Tanto a microbiota quanto a dieta tiveram um importante papel na evolução humana em geral e no sistema imune em particular. Grande parte da intermediação com a microbiota e com a dieta é realizada pelo sistema imune. Os linfócitos, especialmente aqueles presentes nas áreas de mucosas, são componentes essenciais do sistema imune neste convívio com a microbiota intestinal e no manuseio das substâncias ingeridas diariamente na dieta. O sistema imune do intestino tem mais linfócitos do que nas demais partes do corpo somadas. O papel essencial da microbiota na maturação do sistema imune é demonstrado em estudos com animais livres de germes, que apresentam um sistema imune subdesenvolvido. Entretanto, não apenas o número de bactérias mas também a composição da comunidade bacteriana influencia as respostas imunes. Algumas classes de bactérias inibem enquanto outras induzem a ativação de células inflamatórias. São estimadas cerca de 500 espécies de bactérias que colonizam nosso trato intestinal, sendo que cada pessoa hospeda ao redor de 150 espécies. Isto significa que existe uma grande diversidade, entre pessoas, das classes e espécies de bactéria presentes no intestino de cada um.

As comunidades bacterianas do intestino desempenham importantes papéis no que tange aspectos nutricionais, respondendo a alterações da dieta tanto em uma escala de tempo diária quanto evolutiva. Por um lado as comunidades microbianas permitem que o hospedeiro utilize algumas macromoléculas que o sistema digestivo não teria a capacidade de metabolizar e, por outro lado, estas comunidades bacterianas são dramaticamente afetadas pelo tipo de dieta. Estudos utilizando camundongos livres de germes, e portanto sem uma microbiota intestinal, demonstram o papel fundamental das bactérias intestinais no metabolismo nutricional. Animais sem microbiota necessitam 1/3 a mais de alimento para ter a mesma massa corpórea que um animal convencional. Uma ação importante das bactérias da microbiota diz respeito a competição pelos habitats e nutrientes no intestino, dificultando a colonização pelas bactérias causadoras de doenças.

A possibilidade de sequenciamento em larga escala tem permitido responder questões antes inimagináveis. De fato, até recentemente os estudos de caracterização da composição da microbiota humana baseavam-se no isolamento e cultivo bacteriano. Uma vez que muitas das bactérias do trato intestinal não eram e ainda não são bem caracterizadas, o requerimento para seu crescimento em cultura também é desconhecido. De fato, muitas das bactérias presentes na microbiota não podem ser cultivadas, o que dificultou por muitos anos o estudo de suas funções. Com o sequenciamento em larga escala passou a ser possível a identificação das espécies bacterianas da microbiota sem essa necessidade de isolamento e cultivo.

No momento do parto o intestino do bebê, antes estéril, começa a ser colonizado pelas bactérias presentes na vagina. Durante os 3 anos primeiros de vida ocorre um aumento da diversidade das comunidades microbianas até se estabilizarem. Diversos fatores interferem com a colonização nestes primeiros anos de vida. O aleitamento materno, uso de antibióticos ou o tipo de parto interferem com a constituição e função da microbiota. Entretanto, o quanto estas alterações na fase inicial da vida irão interferir com as características da microbiota na fase adulta não está bem estabelecido. Recém-nascidos de cesariana apresentam um processo de colonização mais lento, por exemplo. O uso indiscriminado de antibióticos nos primeiros anos de vida também foi recentemente ligado a distúrbios metabólicos e ao ganho exagerado de peso.

Diversos fatores influenciam a constituição da microbiota humana. Como mencionado, a dieta é um fator determinante. Em países como os Estados Unidos uma grande proporção de indivíduos tem em seu intestino bactérias adaptadas às dietas ricas em gordura e proteína. Algumas populações rurais da África e da Amazônia tem um predomínio de bactérias intestinais com enzimas envolvidas na digestão de carboidratos complexos. Diversos estudos vem demonstrando a participação da microbiota em fenômenos como desnutrição, obesidade e diabete. Considerando o grande número de crianças desnutridas no planeta e as conseqüências desastrosas quanto a taxa de mortalidade e outras seqüelas que incluem déficits de desenvolvimento neuronal, a compreensão do papel da microbiota em diversas condições nutricionais é fundamental para o desenvolvimento de terapias que possam modular a quantidade e o tipo de bactéria presentes em nosso trato intestinal. Além disso, a perda do balanço entre as bactérias intestinais também está ligada a distúrbios do sistema imune, desde o desenvolvimento de doenças inflamatórias intestinais, como a doença de Crohn e colite ulcerativa, até doenças autoimunes como artrite e esclerose múltipla. Pesquisas caracterizando o papel de cada grupo de bactéria para a manutenção de um organismo saudável podem resultar em melhoras drásticas no modo atual de prevenir e tratar diversas enfermidades. É possível que o “transplante” de bactérias venha a ser cada vez mais utilizado, associado ou não a outras terapias, para o resgate de uma microbiota saudável. Portanto, apesar de serem vistas como inimigas do nosso corpo, cada dia mais estudos estão descobrindo que bactérias que causam doenças são exceções, e na verdade podemos utilizar as bactérias da microbiota para a prevenção e cura de inúmeras doenças.

 

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MARCELO T. BOZZA, MD, PhD, é Professor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e pesquisador do Laboratório de Inflamação e Imunidade do Departamento de Imunologia da UFRJ.

DANIEL MUCIDA, PhD, é Professor Assistente da The Rockefeller University, Nova York, e pesquisador do Laboratory of Mucosal Immunology da mesma instituição.

 

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