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Carbono entrevista Sidarta Ribeiro

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O biólogo Sidarta Ribeiro já se descreveu como um ‘neurofreudiano’[1], por ter alcançado em suas pesquisas resultados que corroboravam insights centenários do pai da psicanálise. Em seu artigo, “Sonho, memória e o reencontro de Freud com o cérebro”, publicado em 2003, ele se esforça em diminuir o fosso que se formou entre a psicanálise e as ciências exatas. Atualmente professor titular e diretor do Instituto do Cérebro (ICe-UFRN), Sidarta foi um dos artífices do projeto de repatriação de capital humano que está na origem da instituição. Na entrevista abaixo, conversamos com o neurocientista sobre o sono, o sonho e a memória, alguns dos temas estudados nas linhas de pesquisa que mantém em Natal. Os desenhos de Santiago Ramón y Cajal, médico e histologista espanhol considerado o ‘pai’ da moderna neurociência ilustram a entrevista. Realizados numa época em que não se dispunha dos microscópios eletrônicos atuais, as imagens de Cajal impressionam pela precisão e beleza, e são usadas até hoje no ensino da neurociência.

 

Carbono: Todos os animais dormem? Todos eles sonham?

Sidarta Ribeiro: Com a ressalva de que não conhecemos a fisiologia da maior parte das espécies, podemos dizer que todos os animais conhecidos apresentam algum tipo de quiescência periódica. O sonho é algo evolutivamente muito mais recente, provavelmente só está presente em mamíferos e talvez algumas aves.

 

Podemos falar numa origem do sono, ou seja, localizar no tempo um momento em que os animais passaram a dormir?

A evolução do sono está intimamente ligada ao fato de que a Terra orbita em torno do Sol, criando dia e noite. Existe sono em invertebrados como as moscas, o que sugere uma origem bastante remota, talvez tão antiga quanto a existência de organismos multicelulares, há 1.7 bilhão de anos atrás.

 

Sabemos que embaixo d’água, a diferença entre dia e noite é mais sutil. Houve algum impacto no regime de sono durante o período carbonífero, quando a vida animal conquistou definitivamente a superfície terrestre?

Essa ideia procede para os vertebrados, pois nos peixes e anfíbios o sono como período claramente delimitado entre dia e noite não é nem de longe tão evidente. Ou seja, o sono pode ser algo muito antigo em vertebrados, que refluiu nos primeiros vertebrados e recrudesceu com força na conquista do ambiente terrestre que os primeiros répteis (Antracossauros) realizaram.

 

Para a neurociência, existe mais de um tipo de sono? O que caracteriza cada um deles?

Em humanos existem os seguintes subtipos de sono, conforme abaixo: 1) De ondas alfa (8-13 Hz) para ondas teta (4-7 Hz). Refere-se à transição do cérebro de vigília para o sono. O sujeito perde tônus muscular e diminui a consciência do ambiente externo. Alucinações hipnagógicas; 2) Fusos de sono (12-16 Hz) e complexos K. A atividade muscular diminui. A consciência do ambiente externo desaparece. Ocupa 45-55% do tempo total de sono em adultos; 3) Ondas delta (0,5-4 Hz). Conhecido como sono profundo ou slow-wave sleep (SWS). Os distúrbios do sono são evidenciados: enurese, sonambulismo e falar dormindo; 4) REM (do inglês rapid-eye-movement, movimento rápido dos olhos): Ondas alfa (8-12 Hz) e beta (12-30 Hz). Atonia muscular, mas incluem os movimentos oculares rápidos. Sonhos mais vívidos ocorrem. Ocupa 20-25% de tempo total de sono em adultos. Geralmente ocorre cerca de 4 ou 5 vezes durante uma noite normal. Além desses estados, existe o sonho lúcido que parece ser um estágio intermediário entre REM e vigília, caracterizado por um aumento de ritmo alfa occipital e talvez ritmo gama frontal. Nesse caso o sonhador sabe que sonha e pode controlar o sonhos parcial ou totalmente.

 

Sonhos premonitórios são um tema importante na história da humanidade. Como você vê esta relação entre o sonho e o futuro?

Acredito que os sonhos evoluíram como uma forma de simular futuros possíveis com base no passado lembrado, configurando um oráculo probabilístico. Nas palavras de Jung, “o sonho prepara o sonhador para o dia seguinte”. No mundo natural, os problemas dos animais são sempre os mesmos: não morrer, matar algo para comer e procriar. São, digamos assim, os imperativos darwinistas. Nesse mundo duríssimo em que cada dia é uma batalha e os grandes problemas são sempre os mesmos, os sonhos devem ter evoluído como uma função adicional do sono, permitindo simular comportamentos antes de testá-los na vida real. Para o Homo sapiens contemporâneo de classe média os imperativos darwinistas parecem não existir durante boa parte da vida. Em vez de 3 grandes problemas, cada pessoa tem milhares de pequenos problemas. Em consequência o sonho se transforma numa colcha de retalhos de difícil interpretação. Mas basta colocar a pessoa diante dos imperativos darwinistas e o sonho se adequa. Soldados na guerra sonham com matar, não morrer, sexo e amor. Pessoas atacadas por animais selvagens sonham repetidamente com tais ataques. Os sonhos só são misteriosos quando os problemas não são de dimensão letal.

 

Como você atualmente encara os escritos de Freud e Jung a respeito dos sonhos?

Freud deixou uma obra vasta que cada vez mais retorna à neurociência como programa de pesquisa. Jung escreveu de modo menos palatável para a ciência, mas sua contribuição sobre o inconsciente coletivo começa a fazer sentido à luz do estudo de comportamentos inatos. Existem vários elementos da teoria freudiana que encontram base biológica: 1) Supressão (repressão) de memórias envolvendo modulação positiva do pré-frontal em coerência com modulação negativa de hipocampo (memórias episódicas) e amígdala (valência emocional das memórias); 2) Traumas na infância gerando modificações comportamentais por alteração epigenética da expressão gênica; 3) Restos diurnos têm correlato eletrofisiológico e molecular; 4) A noção de que o desejo é o motor do sonho se apoia no fato de que lesões das vias dopaminérgicas mesocorticolímbicas, oriundas no núcleo tegmentar ventral, abolem completamente o sonho sem alterar o sono REM. A teoria jungiana está mais longe da biologia nesse momento, mas o inconsciente coletivo provavelmente tem uma base biológica muito sólida, relacionada aos instintos.

 

Na sua pesquisa, como você relaciona as informações que resultam de instrumentos como o EEG[2] com os relatos dos sonhadores?

Buscamos comparar períodos de sono com períodos de vigília, procurando a repetição de padrões de atividade elétrica que possam ser relacionados a determinadas vivência oníricas.

 

A memória se relaciona com o sonho? O que se sabe a respeito dos mecanismos de arquivamento e esquecimento de memórias?

O sono reverbera, processa, consolida, deleta e restrutura memórias. O sonho é algo de mais alta ordem, articulando memórias complexas na forma de enredos oníricos, verdadeiras simulações do ambiente e do sonhador.

 

Podemos dizer que o conteúdo dos sonhos é iminentemente visual?

Principalmente visual, às vezes auditivo, raramente táctil, gustatório, olfativo ou vestibular.

 

Qual a relação da criatividade e do insight com o sono, o sonho e a memória?

O sono favorece a ocorrência de insights em experimentos feitos em laboratório. O sonho provavelmente tem um papel importante nisso, a julgar pelo relato de cientistas e artistas que se valeram de seus sonhos para criar. Mas essa relação ainda está por ser objetivamente investigada.

 

Quais são suas atuais linhas de pesquisa e que desafios elas têm colocado recentemente?

Em humanos, temos pesquisado a influência da motivação e do contexto comportamental na gênese de repertórios oníricos. Também estamos estudando a utilização de relatos oníricos para fazer diagnósticos diferenciais de psicose. Em ratos, temos pesquisado de que as ondas teta do hipocampo afetam a cognição durante a vigília e o sono REM. Em macacos estamos estudando os limites da simbolização vocal. Através de modelos computacionais alimentados com dados neurofisiológicos reais, temos tentado entender os mecanismos ativados durante o sono responsáveis pelo processamento de memórias.

 

 

 

 


[1] Em entrevista publicada na Revista Trip #126 Edição Sono. Trip Editora: São Paulo, julho 2006.

[2] A Eletroencefalografia (EEG) é o estudo do registro gráfico das correntes elétricas desenvolvidas no cérebro, realizado através de eletrodos aplicados no couro cabeludo, na superfície encefálica, ou até mesmo dentro da substância encefálica.

 

 

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SIDARTA RIBEIRO é doutor em comportamento animal pela Universidade Rockefeller, com pós-doutorado em neurofisiologia pela Universidade Duke. Atualmente, é professor titular de neurociências e diretor do Instituto do Cérebro da UFRN. Trabalha atualmente nos seguintes temas: sono, sonho e memória; plasticidade neuronal; comunicação vocal; competência simbólica em animais não-humanos e neuroeducação.

 

Entrevista realizada por Pedro Urano e Marina Fraga em junho de 2013.

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