03 | Entrecorte

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Drežnica

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No frame-espaço da memória

Anna Azevedo

 

 

The footage now at our disposal is so great and rich a store that no one can say, ‘These are its limits’. And one would have to be extremely foolish to say, ‘These arte the limits of its uses’-  either in content or method. Artists who have worked with these materials  have surprised us so often with what we thought was familiar and worn that we may be sure that, as long as artists continue to work in this form, there is no end to its newness.
Jay Leda

 

O  cinema, por suas características orgânicas e possibilidades de  transitar pelo tempo e o espaço como nenhuma outra arte, é território fértil para se pensar memória. Nas últimas décadas, evocar os temas memória e cinema nos leva a pensar, quase por reflexo, em um filme montado com fragmentos de películas antigas. É que eles estão na moda. Sobretudo filmes construídos com imagens encontradas ao acaso, uma técnica batizada de found footage. Uma espécie de coqueluche que encontra respaldo na própria intensificação das pesquisas relacionadas à memória. Estas imagens encontradas são essencialmente filmes  realizados por amadores, muitas vezes contendo a intimidade dos lares, encontrados em arquivos privados, nos mercados das pulgas, ou simplesmente abandonados por aí por pessoas que, hoje, com o desaparecimento dos projetores e a primazia dos meios digitais, não têm mais como assistir aos rolinhos de Super 8, 8mm, 9,5mm, 16mm…

São registros que, em uma curva ou outra do tempo (da História) se desgarraram do seu “lugar de origem”, enveredando por caminhos outros, perdendo seu contexto original, despersonalizando sujeitos, órfãos e, portanto, suscetíveis a serem adotados, recebendo versões narrativas infinitas. Em resumo, ganhando um status de “imagens de memórias tornadas imagens desmemoriadas, mas jamais imagens sem memória”, como define a Professora de Cinema da PUC-RJ, Andrea França.

Mas, o que é a memória e como ela se manifesta? Para o sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-1945)  “a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada”.

Fica claro, neste conceito, que a memória é uma convocação do presente e, muito longe de ser um estado puro, chega à nossa consciência modificada pelo tempo, pelo espaço, pelas demandas subjetivas e coletivas, ou melhor: nossas em conexão com a coletividade.

Com Halbwachs, o conceito de memória como fruto de uma vivência estritamente individual, privada e independente do meio social foi ampliado para a idéia de memória como produto do homem em conexão com o meio. Uma reconstrução em fluxo constante de contato com o ambiente social.

O conceito de memória aprimorado por Halbwachs é importante para o estudo de certas narrativas cinematográficas feitas com imagens do tipo  “arquivo”. Nos ajuda a compreender a sensação de pertencimento, por parte do público, e que emerge destas películas. De estranho pertencimento àquele período que não vivemos, àquele lugar no qual jamais estivemos, àquela história que não é nossa… Nostalgia?

O historiador alemão Andreas Huyssen identifica os anos 80 como o estopim desta onda mnemônica, fomentada, sobretudo, pelos processos recentes de revisão histórica que o mundo passou, com ênfase na América Latina, na África do Sul, na Alemanha e no Centro/Leste Europeu. O que une estes espaços? Questões urgentes de construção de identidade nacional. Ou reconstrução a partir, muitas vezes, de ruínas, fragmentos, do que sobrou de guerras, divisões, ditaduras…

Mas apesar da aura de contemporaneidade da produção cinematográfica alicerçada em imagens encontradas (found footage), esta técnica é tão antiga quanto o próprio cinema, utilizada pioneiramente no fim do século 19 e em seguida apropriada pelas vanguardas, como no filme russo “A queda da dinastia Romanov”, de Esther Schub (1927), no qual a diretora monta de forma crítica um perfil do czar Nicolai II, resignificando imagens outrora enaltecedoras do regime.

Para o pesquisador Antonio Weirinchter, pouca importância foi dada a este tipo de obra. Somente em 1967 foi publicado o primeiro livro sobre a técnica de filmes de compilação: “Films beget films – A study of the compilation film”, do historiador e cineasta Jay Leda. O termo found footage, porém, só surgiu na década de 80. E, a partir do uso de tal dispositivo, o universo cinematográfico se abre para uma série de apropriações desses celulóides encontrados, se desdobrando em campos como o ensaio, a experimentação, os filmes educativos…

E é inevitável: filmes encontrados de famílias, lugares, eventos, aos olhos de hoje, deixam pelo caminho rastros. Ruínas, pistas, sinais: são estes elementos que dão forma à História. Às estórias. Comportando-se de forma muito próxima à narrativa policial, a narrativa mnemônica embarca rumo ao pretérito, ao encontro de rastros que darão forma, preencherão um vazio do presente. Pois lembrar – recordemos –  é verbo que se conjugada a partir de questões do hoje. Tais filmes levam o público a assisti-los como se tivessem uma lupa na altura dos olhos,  procurando aqui e ali, frame a frame –  e muito além do filme resignificado pelo diretor – identificar e reconstruir tais fragmentos, ruínas, a partir de uma percepção coletiva de memória.

 

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ANNA AZEVEDO é artista visual, cineasta e mestranda em Comunicação Social pela PUC-RJ, aonde pesquisa Cinema e memória.

 

“Drežnica” é o lugar onde a neve encontra o mar. Os dias são repletos de estrelas e as noites cobertas de sol. Mas somente ao não ver conseguimos percebê-la. Um filme experimental construído com imagens amadoras de Super 8 dos anos 70. Uma lírica jornada através das imagens e sensações reveladas pela memória e pelos sonhos de pessoas que não enxergam.

Drežnica
direção, produção e roteiro – Anna Azevedo
Hy Brazil Filmes
Edição – Eva Randolph
Edição de Som – Rodrigo Maia and Eva Randolph
www.hybrazilfilmes.com

 

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