03 | Entrecorte

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SonambulismoS

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Real, Irreal e Rivotril

 

Botika

 

Acordo deitado na minha cama, cheio de sono e preguiça de levantar pra mijar no meio da madrugada, tendo que atravessar um corredor frio até chegar no banheiro e, enfim, mirar o jato no vaso; mas meu corpo pesa sobre ele mesmo, estatelado num colchão que mal sinto debaixo de mim. Ainda mantenho meus olhos fechados, por um motivo estranho. Não tenho coragem de mover as pálpebras. Sinto os cilhos superiores se agarrando aos cilhos inferiores, formando um nó trançado. Vem medo. Medo igualzinho ao medo que sentia na infância. Medo de criança. Forço os olhos, esmagado-os que nem ovo de codorna na palma da mão. Olhos abertos. Eu deitado. Quarto escuro.

Me sento na cama e tento ficar calmo pra respirar. Começo a respirar. Agora sim minhas costelas afagam meus pulmões. Estou tranquilo. E necessito mijar. Levanto devagar. Ando até a porta do quarto. Olho pra cama e lá estou eu mesmo, dormindo na minha própria cama, bem ali, na minha frente. Algo horripilante, ver a si mesmo dormindo. Não consigo compreender. Eu tremelico desumanamente, com o corpo levemente suspenso no ar. Me desespero sendo uma impossibilidade dentro de uma atmosfera irreconhecível. Minhas mãos não conseguem abrir a maçaneta.

Acordo com um tranco que vem de fora pra dentro. Pulo sentado na cama. Lembro que estive em pé, me observando enquanto dormia, um segundo atrás. Quase acredito em alguma solução espírita, que minha alma deveria estar vagando fora do corpo. Não me convenço. Nunca fui disso. Por isso mesmo descubro um neurologista para contar meu caso. Prefiro driblar psiquiatras. O neurologista bate com o martelinho nos meus joelhos. Tenho reflexos de gente que tem reflexo. Está tudo bem com o resto também. Só que ainda durmo, acordo e me vejo na cama dormindo. Morro de medo. São como pesadelos ao vivo, vividos.

O neurologista explica que não é alma saindo do corpo, coisa que eu já sabia. É o cérebro que, adentrando o sono, desce uma escadaria extensa. Lá no degrau mais profundo dos subterrâneos é onde os sonhos surgem com maior intensidade. Depois, o cérebro vai subindo a escada de volta, até os sonhos se tornarem mais leves, esparsos e, então, acordarmos. No meu caso, e caso de muitos outros também, uma parte do querido cérebro sobe a escada correndo. A outra fica lá embaixo, sonhando. Sendo assim, posso observar meus sonhos com um pedaço lúcido de mim. São dois olhos vesgos tentando mirar o mesmo ponto. Conseguindo manter a calma, é possível surfar na na espuma do inconsciente, coisa que eu não sou capaz.

Afim de me ajudar a usufruir de noites mais tranquilas, essas onde se recompõem energias gastas durante o dia, enquanto a máquina do cérebro acelera sua pesada motocicleta, o neurologista me receita Rivotril, remedinho que trás uma calma supimpa e extra-curricular. Levo o tratamento com rigor. Passo a conseguir domar o esquema. Escolho se vou ou não passar pela complexa experiência vigília-onírica. Termino o tratamento. Durmo bem. Não como anjo. Só anjos dormem como anjos.

4 sonhos 

Uma casa grande me chama a atenção no meio do nada. Vermelha e branca, suas paredes são milhares de janelas, umas sobre as outras. Numa das janelas está Tunga, meu amigo. Ele me chama lá de cima. Acena para que eu entre por uma das janelas abertas ali embaixo. Eu entro, animado por estar numa casa tão bonita e estranha. Subo e cumprimento Tunga, que me convida a sentar numa poltrona confortável, de couro marrom velho. Tunga e eu falamos numa língua desconhecida. Tudo é perfeitamente entendido. Falamos rindo, o tempo todo. Somos quase desenho animado. Tunga liga uma televisão. Da televisão sai som de rádio, sem imagem. Ouvimos um pouco de alguma música indecifrável. Na tela desligada da televisão, começa a transbordar água no chão, até molhar nossos pés. Continuamos rindo de tudo aquilo. Da tela, agora, transbordam peixes. A casa começa a ficar encharcada. Tudo molhado. Água e diferentes peixes saindo por todos os cantos, gavetas, lustres, frestas, fechaduras… Eu e Tunga gargalhando da situação aquática. A coisa fica mais complicada. Entupida. Eu corro pra fora da casa, todo molhado. Lá de fora, olho pra casa, que está viva, pulsante. Todas as janelas se abrem, espirrando água e peixes, principalmente peixes-espada, em todas as direções. Numa das janelas, Tunga aparece gargalhando e se divertindo com a tsunami. Nos olhamos e, sempre risonhos, nos despedimos, com a sensação de ter sido uma ótima tarde para todos.

Ando na rua com o sol amarelo estrondoso. Tudo é extremamente iluminado. Há mais vida do que nunca. Tudo funciona. As pessoas vivem muito bem e há fluxo contínuo de vida. De repente nubla. Eu paro pra observar, estranhando, prevendo algum desastre. Sinto o princípio de um medo que pode se tornar assolador. Sinto que tem alguma coisa muito errada prestes a acontecer. Nubla mais, até que o tempo fecha trazendo escuridão total. Cai um temporal. Tudo para de funcionar. A rua agora é cenário de contínuos acidentes. Todos estão desesperados, gritando e correndo sem rumo. É o fim do mundo chegando de surpresa. Não há tempo para salvação, nem para pensar em como morrer melhor. Tudo vai acabar em pouco tempo. É uma grande tristeza. Não deu tempo de realizar nem um décimo da minhas vontades. Ligo para meu pai, que parece estar bem longe de onde me encontro. Ao telefone choramos, conversando sobre os grande amor  e respeito que temos um pelo outro, e por tantas outras pessoas queridas. Sabemos que logo logo tudo não existirá. De certa forma nos conformamos e aceitamos o fim. O mundo acaba.

Estou indo para uma festa. Não sei de quem é a festa. Olho no espelho do elevador. Ajeito um pouco minha roupa e pronto. Agora estou legal. Do elevador começo a ouvir música e barulho de gente conversando alto. Chego no andar da festa. Abro a porta e entro. Não conheço ninguém. Passeio pelo apartamento. Tomo um drinque. Não me divirto muito. Até que vejo Antonia Pellegrino passando perto de mim. Ela não me percebe. Começo a me sentir mal, muito enjoado. Penso que podia ser pior. Seu marido, Francisco Bosco, poderia estar lá. Tudo fica mais sem graça do que já estava antes. Escorrego por entre os corpos dos desconhecidos para conseguir sair da festa. Não pertenço aquele lugar. Consigo sair!! Rapidamente o mal estar acaba. Vou embora com imensa felicidade. A festa lá em cima continua por ela mesma. Não faço parte de lá.

Sentados em duas cadeiras, frente a frente, eu e Ericson Pires estamos gargalhando com a maior felicidade que é possível nascer de dentro de nós. A gente se olha e gargalha, ininterruptamente, por horas e horas a fio. Choramos de rir, descabelados, cheios de amor. Ericson começa a morder, carinhosamente, minha cabeça. Nós não paramos em nenhum momento de gargalhar.

 

***

 

BOTIKA é músico, escritor e cineasta. Publicou os livros Uma Autobiografia de Lucas Frizzo e Búfalo, tem trabalhos com artistas plásticos como Tunga e Thiago Rocha Pitta. Escreveu e dirigiu o curta metragem Trailer, O Filme, e agora está finalizando seu segundo curta Como Assim?. Integrou a banda Os Outros e agora prepara seu primeiro disco solo, Picolé da Cabeça.

 

A Interpretação dos Sonhos do Pajé – de Botika e Guga Ferraz
Gravado no estúdio Garimpo
Produção: Emiliano 7
Voz e Guitarra: Botika
Voz e Cello: Nana Carneiro da Cunha
Bateria: Flávia Belchior
Baixo e Guitarra: Emiliano 7
A música faz parte do repertório da peça Aplique de Carne.

 

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