03 | Dossiê

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Um Transporte de Inteligência: Pisca Vox

Inconsciente Mecânico – de Otavio Schipper e Sergio Krakowski. Instalação Sonora, dimensões variáveis, 2011.

Um Transporte de Inteligência: Pisca Vox

 

 

Lilian Zaremba

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Será fato – ou terei sonhado isso? – que, por meio da eletricidade, o mundo da matéria se transformou num grande nervo, vibrando por milhares de milhas num ponto suspenso do tempo? Melhor, o globo redondo é uma vasta cabeça, um cérebro, instinto com inteligência! Ou, diríamos, um pensamento, nada mais que um pensamento…
Nathaniel Hawthorne, The House of the Seven Gables

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Entre todas as ousadias esta mais radical transformava noite em dia com um simples movimento: acender a luz. Desta ideia um tanto singela e na sombra de imensa revolução interferindo no tempo natural e seu relógio biológico, a eletricidade passou a epicentro da vida moderna. A sociedade científica do século 18 ateou verdadeira euforia elétrica entusiasmando filósofos, religiosos, aristocratas, aventureiros amadores, abrindo espaço às máquinas curiosas – ainda que algumas delas não apresentassem nenhuma função. Na guinada do século 18 para o 19 davam forma a gestação híbrida da radiofonia oferecida num conjunto de modelos tecno-científicos. Aceitando esta cadeia como sequência pontifica-se: no princípio era o telégrafo.

Uma invenção quebrava os limites do espaço e tempo sugerindo a escritores como Hawthorne o fim da substância como significado de presença material, tornando evidente a comunicação sem fios relacionada à transferência de pensamentos, telepatia, ocultismo e contatos espíritas balizados  por cientistas proeminentes em busca por aparato que gravasse as sensações e percepções do corpo humano como discurso traduzível em termos matemáticos. Na genealogia do rádio o principal ramo dessas experimentações partiu do fotógrafo Samuel F.B. Morse, ao defender no Congresso americano em 1838, a necessidade de verbas para seu projeto “…uma nova e útil máquina e sistema de sinais para transmitir inteligência entre pontos distantes”.

A parcial falta de domínio sobre seu próprio invento, levaria Morse a descrever o processo de transmissão de mensagens como transporte de “inteligência” creditando ao divino tudo explicar.

 

Pisca Vox

 

…Em 1870 instalou-se um novo cabo entre a Inglaterra e a França, o qual Napoleão III usou para enviar uma mensagem de parabéns à Rainha Vitória. Horas mais tarde, um pescador francês recolheu o mesmo em seu barco, identificando-o como a cauda de um monstro marinho ou uma nova espécie de alga marinha dourada e cortou dela um pedaço para levar para casa.
Neal Stephenson, Mother Earth Mother Board

 

Este “mundo do telégrafo” começa atrelado a fios e cabos transatlânticos embora o próprio Morse sugerisse ultrapassar este obstáculo técnico e financeiro dando partida a noção de uma comunicação sem fios, lançando mão da condutibilidade elétrica da água e dos raios solares. Com este modelo que agradaria aos ecologistas do século 21, conseguiu transmitir mensagem de uma margem a outra em rio da Pensilvânia.

Embora possa parecer pouco, estava ali no significado daquele desenho inicial de linguagem a posterior aventura da comunicação radiofônica, onde se aplicaria lembrar Nietzsche: “… o significado da linguagem reside no fato de que nela o homem funda seu próprio mundo perto de outro…”

Assim a sensação de estar perto de outro mundo, observando inteligências, quando na presença deste Inconsciente Mecânico construído por Otavio Schipper.
um toque. uma corrente. um sistema.

Aparelhos de telégrafo colocados sobre mesas estão interligados por áudios, correntes e impulsos  elétricos equacionando informação ritmada por elementos táteis, eletrônicos, mecânicos, analógicos e digitais. Composição diversa sinaliza tempos auditivos amplificados nas pernas longas ou  curtas destas mesas – alturas determinantes: nossos olhos transformados em caixas de ressonância.
um piscar. outra corrente. outro sistema.

Paisagem sonora visível, apenas ecoa o maquinário original… o telégrafo de Morse precisaria ao menos de um dedo para ser acionado, e ali não existe nenhum. Neste novo mecanismo proposto por Schipper o telégrafo representa o que não representa, escapa da História para transportar inteligência própria, outra mensagem no ar articulado.

Acima dos telégrafos paira o reflexo de um filamento de lâmpada que vibra. Suspensa, esta lâmpada pisca como uma voz convertendo nossos olhos: pisca em contraponto aos bips quebrando a seu modo os limites, transformando espaço em tempo. Mas se o piscar voluntário de nossa pálpebra ocorre na velocidade de ondas produzidas a cada 300 ou 400 milésimos de segundo, nesta paisagem fracionada o que nos escapa? Qual olhar captura o lugar entre uma e outra piscadela?

A arte nesta instalação de Otavio Schipper – assim como a música criada por Sergio Krakowski – nos parece sugerir a sentença mágica capaz de elucidar a questão: o não visto é diferente do invisível.
Pode ser um telégrafo ou a cauda de uma sereia…basta piscar.

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LILIAN ZAREMBA é artista visual, radioasta, roteirista e pesquisadora universitária.

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