04 | Dossiê

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Dinheiro, cérebro e comportamento

Dinheiro, cérebro e comportamento

Patricia Bado e Tiago Soares Bortolini

 

Muito antes de haver moedas em papel como conhecemos atualmente, ou mesmo de plástico como os cartões de crédito, populações humanas lidavam basicamente com trocas de bens. No começo, era uma simples troca de um produto pelo outro (ex. excesso de carne da caça pelo excesso de frutas colhidas) e as trocas eram feitas sem que houvesse uma equivalência de valor entre as mercadorias, dependendo fortemente da necessidade de cada indivíduo. Porém, esse sistema era bastante complicado e, após algumas modificações no sistema econômico, passando pela utilização de “moeda-mercadoria” (ex. sal, pele e conchas), aparecem as primeiras moedas parecidas com as que temos atualmente.  O dinheiro passa a ser então uma forma de uniformizar os valores e transações, de modo que diferentes mercadorias e serviços possuam uma mesma base de comparação.

Atualmente, o dinheiro é necessário para o cotidiano e adquiriu um papel fundamental para a sobrevivência do indivíduo, equiparando-se a comportamentos básicos de sobrevivência como comer e beber, uma vez que ele é intermediário para essas funções. Os comportamentos básicos de sobrevivência como alimentação, interação social e sexo possuem os seus substratos biológicos descritos em diversas espécies, envolvendo circuitos cerebrais relacionados a sua busca e manutenção. Esses circuitos constituem um sistema neurofisiológico de reforço que utiliza neurotransmissores (moléculas de comunicação entre os neurônios) que contribuem para uma sensação de prazer e motivação. Esse sistema cerebral de reforço é muito importante, uma vez que ele incentiva a busca de determinados comportamentos necessários para o organismo. Portanto, uma vez que diversas recompensas podem ser obtidas através do dinheiro, é possível compreender a motivação para o ganho financeiro, chegando ao ponto de, em alguns casos, a busca financeira se tornar um fim em si mesma.

A partir das evidências apresentadas acima, surge a seguinte pergunta: o dinheiro pode ser equiparado – ao nível neural – com outras recompensas humanas como comida, sexo e interação social?

 

Múltiplos tipos de recompensa

Diversos estudos de neurociência e neuroimagem demonstraram que os mecanismos cerebrais de recompensa envolvem diversas regiões corticais (mais superficiais) e subcorticais (mais profundas), que abrigam os chamados “neurônios dopaminérgicos”, que disparam em resposta a estímulos ou expectativas de prazer. Esse mesmo circuito cerebral é engajado por recompensas alimentares, sexuais, sociais e financeiras e a sua disfunção está associada a comportamentos excessivos como o abuso de drogas e vícios comportamentais.

 

O sistema de recompensa cerebral
Os mecanismos cerebrais de recompensa envolvem regiões percorridas pelos neurônios dopaminérgicos da área tegmental ventral e por suas projeções para o núcleo accumbens, para a amigdala e para o córtex pré-frontal.
Adaptado do site do NIH, por Gary Wand.

 

Um conceito que se faz necessário ao nos referirmos à recompensa monetária é a diferença entre recompensas primárias e secundárias. De uma maneira geral, recompensas primárias possuem uma relação direta com a sobrevivência do organismo e da espécie (ex. comida e sexo), enquanto as recompensas secundárias possuem seu valor condicionado àquele das recompensas primárias, sendo intermediárias às recompensas primárias (ex. dinheiro). Um estudo recente, publicado esse ano na revista Neuroscience and Biobehavioral Reviews, investigou a representação de recompensas primárias e secundárias através de uma análise de 87 estudos de neuroimagem, no cérebro de 1452 indivíduos. Esse estudo demonstrou uma sobreposição de regiões cerebrais engajadas por diferentes tipos de recompensa. Além disso, foi demonstrado, assim como em estudos anteriores, que recompensas secundárias, como a monetária, são representadas na porção mais anterior do córtex pré-frontal, uma região que surgiu mais recentemente na escala evolutiva.

 

 

Adaptado de Sescousse e colaboradores, 2013.

 

Acredita-se que a porção mais anterior do córtex pré-frontal seja envolvida em aspectos abstratos do comportamento humano, por exemplo a imaginação de situações hipotéticas. De fato, a nossa capacidade de atribuir valores financeiros a determinadas mercadorias e bens de consumo exige justamente uma grande capacidade de abstração. Nesse sentido, o desenvolvimento dessa região cerebral provavelmente foi essencial para o surgimento e desenvolvimento do comportamento econômico.

 

Jogos econômicos e comportamento social

Uma vez que o comportamento econômico permeia nossas atividades e interações diárias, ele também pode ser utilizado como modelo para o estudo do comportamento social. Para isso, são utilizados comumente jogos econômicos, nos quais uma pessoa deve tomar decisões financeiras em relação a outra(s), permitindo uma maior compreensão sobre a tomada de decisão. Através de uma perspectiva da neurociência, essa área de conhecimento recebeu o nome de neuroeconomia, focada principalmente no estudo do comportamento humano e circuitos neurais relacionados a decisões econômicas. Por exemplo, seria equivalente, em termos neurais, ganhar R$10 para você mesmo ou decidir que essa mesma quantia seja distribuída para uma instituição de caridade? Apesar de serem operações distintas em termos de motivações e desfechos, é possível que elas compartilhem bases neurais similares?

Em um estudo pioneiro sobre a circuitaria cerebral relacionada à doação monetária, participantes receberam um valor em dinheiro e deveriam decidir doar ou não determinadas quantias para ONGs enquanto a sua atividade cerebral era registrada através de ressonância magnética funcional. Os pesquisadores descobriram que, ao doar uma parte do dinheiro para ONGs representando causas com as quais os participantes simpatizavam, as áreas cerebrais relacionadas às recompensas descritas anteriormente, assim como regiões vinculadas ao apego social, foram ativadas. Ou seja, ao realizar doações, os participantes apresentaram ativação cerebral nas regiões do sistema de recompensa semelhante àquela exibida quando ganharam um valor em dinheiro para si. Dessa forma, ficou evidenciada uma base neural relacionada à sensação prazerosa que doações e atos de caridade geralmente nos proporcionam. Ao que tudo indica, fazer o bem realmente nos faz sentir bem!

 

 

Além disso, pesquisadores utilizam muitas vezes situações criadas em laboratório para compreender melhor por que as pessoas agem de forma cooperativa quando aparentemente elas teriam mais benefícios pessoais se agissem egoisticamente. Por exemplo, no “jogo da confiança”, ocorre uma interação entre dois participantes, anônimos ou não. Aos participantes, o jogo é explicado da seguinte forma: uma quantia em dinheiro é dada ao jogador A, que deve decidir repassar ou não parte do seu montante para o jogador B, sendo que, no momento do repasse financeiro, a quantia inicial será multiplicada por um fator, por exemplo, 3. Dessa forma, o jogador B irá receber 3 vezes o valor que lhe foi repassado e nesse momento deverá decidir se irá devolver alguma parte do valor total ao jogador A. É importante lembrar que tanto o jogador A quanto o jogador B não precisam repassar obrigatoriamente qualquer quantia, podendo reter todo o valor para si.

 

Jogo da Confiança
O jogador A recebe uma determinada quantia em dinheiro e pode optar por confiar, transferindo essa quantia para o jogador B. Ao confiar e transferir a quantia, o valor inicial é multiplicado por um fator (ex. 3) e o jogador B (agora possuindo um montante de R$30) deve decidir se devolverá uma parte da quantia para o jogador A.

 

Diante desse cenário, podemos elaborar diferentes hipóteses e predições quanto à resposta comportamental de cada jogador. Uma das propostas oferecidas pelos economistas é de que os seres humanos, em situações como a do jogo da confiança, agiriam de forma “racional”, tendendo a maximizar seus ganhos. Racional nesse caso quer dizer que, dado as oportunidades percebidas, os indivíduos decidiriam por aquelas que lhes trariam mais ganhos para si. De acordo com a “proposta racional”, a predição comportamental para o jogo descrito anteriormente é a de que o jogador A não iria repassar nenhuma quantia para o jogador B e que esse último não iria devolver nenhum valor de volta para A, caso recebesse qualquer quantia. No entanto, diversos trabalhos empíricos demonstram que, ao contrário, ambos os jogadores tendem a repassar pelo menos uma parte da quantia recebida, comportando-se de forma “irracional” (considerando a ideia de racionalidade da proposta anterior).

Em um estudo realizado por Frank Krueger e publicado em 2007 na revista PNAS, dois participantes jogaram um “jogo da confiança” não anônimo em duas ressonâncias magnéticas ao mesmo tempo. Os pesquisadores observaram que alguns participantes cooperavam de maneira condicional (ou seja, somente quando os valores eram favoráveis), enquanto outros participantes cooperavam de maneira incondicional.  Enquanto a cooperação condicional é estratégica e está relacionada a regiões cerebrais de recompensa, a cooperação incondicional parece ser relacionada a um vínculo interpessoal e está relacionada com regiões cerebrais de apego.

Cooperação
No estudo descrito acima, os participantes que cooperaram de maneira condicional apresentaram atividade na VTA, relacionada a recompensas. Por outro lado, os participantes que cooperaram de maneira incondicional apresentaram maior atividade na área septal, envolvida com apego social em diversas espécies.
Adaptado de Krueger e colaboradores, PNAS, 2007.

 

Contribuições da psicologia social

A neurociência tem investigado o comportamento econômico mais recentemente, com os avanços das técnicas de neuroimagem. Porém, uma outra área conhecida como “psicologia social experimental” estuda esses comportamentos financeiros há mais tempo e descreveu fenômenos muito interessantes. Por exemplo, os indivíduos possuem um efeito conhecido como aversão à perdas (“loss aversion”). Essa aversão se refere ao fato de nos sentirmos bem ao ganharmos uma determinada quantia, mas nos sentirmos muito mal ao perdemos essa mesma quantia, fazendo com que consideremos fortemente as perdas monetárias em uma tomada de decisão. Essa aversão varia entre os indivíduos e, geralmente, aqueles mais impulsivos possuem menor aversão à perda e se arriscam mais em certas decisões econômicas. Traçando um paralelo desses estudos com a neurociência, foi demonstrado que durante uma perda monetária, as regiões cerebrais relacionadas à recompensa apresentam uma desativação proporcional à magnitude do valor perdido.

Um estudo interessante publicado na revista Science em 2007, investigou essa sensibilidade à perda e ganho monetário. Os indivíduos deveriam decidir se queriam aceitar ou rejeitar jogos que ofereciam chance de 50-50% de ganhar ou perder uma determinada quantia em dinheiro. Na figura abaixo, é possível observar que o mesmo circuito cerebral, constituído por regiões de projeções dopaminérgicas, é ativado tanto para ganhos potenciais (amarelo-vermelho, à direita), quanto é desativado durante a representação de perdas potenciais (azul, à esquerda).

 

 

Modificado de Tom e colaboradores, Science, 2007.

 

Considerações finais

O dinheiro pode ser interpretado como uma categoria de recompensa mapeada de maneira consistente no cérebro das pessoas, e com grande sobreposição com a representação de outros comportamentos prazerosos. Dessa forma, a recompensa monetária é uma adaptação cultural que “se aproveita” da base biológica, muitas vezes para uma busca desenfreada.

Porém, apesar das mesmas regiões estarem envolvidas em todos os indivíduos, é importante ressaltar que existem diversas diferenças individuais em relação ao comportamento financeiro e social. Esse fato está relacionado não somente à arquitetura cerebral, mas também a fatores como personalidade e sistema de valores. Uma vez que as recompensas possuem uma grande sobreposição neural, o desafio atual da neurociência é justamente adquirir uma maior compreensão sobre diferenças de representação cerebral de recompensas específicas em diferentes indivíduos, considerando a ampla variedade individual.

 

Mais informações sobre a psicologia do dinheiro podem ser encontrados no curso “A Beginner’s Guide to Irrational Behavior”, na segunda semana do curso voltada para a psicologia do dinheiro. O acesso é gratuito.

 

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PATRICIA BADO é biomédica e mestranda em neurociência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR).

TIAGO SOARES BORTOLINI é biólogo e doutorando em neurociência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR).

 

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