06 | Entrecorte

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Paris está em chamas?*

Txell Sabartés e Lalo García

 

Viajar a Paris é sempre estimulante. Afora as questões comerciais que a etiquetaram como a cidade da luz, do amor e da moda, Paris é, sem dúvida, um referente cultural e político, para o mundo em geral e para a Europa em particular.
Um paraíso onde se pode alimentar o corpo e a alma com os melhores manjares. La “grandeur de la France” tem seu lado bonito, mas, como toda moeda, possui também outra faceta. O império francês é poderoso e o seu papel na ordem mundial é de grande alcance. Nesta viagem tivemos a oportunidade de vê-lo e vivê-lo.

Tudo começou em uma refeição com Plàcid Garcia-Planas, um amigo jornalista a quem queríamos falar sobre um projeto baseado em seus textos. Enquanto comíamos, falamos desse assunto e de outros tantos. Em seguida, já tomando café, Plàcid nos falou da Eurosatory, uma das feiras de armamentos mais importantes do mundo, que acontece em Paris a cada dois anos. Ele havia estado na última edição e, fascinado pela primeira experiência, decidiu voltar na seguinte. Como repórter de guerra acostumado a ver esse material em ação, a ele parece igualmente relevante informar sobre o comércio de armas, um elo importante na cadeia da guerra. O antes e o depois. Seu retrato da feira e seu relato sobre as suculentas curiosidades que ela oferece nos seduziram. Apesar de sua magnitude, é um evento raramente coberto pelos meios massivos; portanto, desconhecido da população. Definitivamente tínhamos que ir.

A feira não é aberta ao público; somente profissionais do setor e jornalistas estão autorizados a entrar. Não somos nem uma coisa nem outra, mas como profissionais de criação audiovisual, estamos certamente mais próximos da segunda atuação do que da primeira. Tínhamos dois meses para conseguir uma credencial de imprensa. Conseguimos obtê-la graças a um amigo jornalista, colaborador habitual do diário digital “El Plural”. Para nossa surpresa, ninguém nos pediu para descrever nossa carreira de comunicadores e, sem maiores dificuldades, obtivemos a credencial. Já estávamos com um pé dentro da feira.

Chegamos ao aeroporto Charles de Gaulle – muito próximo do Parc des Exposicions, onde se celebra a Eurosatory –, no domingo anterior à inauguração oficial. Como era possível fazer o credenciamento já naquele dia, fomos diretamente à feira, antes de nos instalarmos na cidade. Passamos por alguns controles de segurança e finalmente entramos. Os pavilhões estavam vazios. Havia somente algumas pessoas trabalhando, ajustando os últimos detalhes e terminando a montagem dos estandes. Depois de uma caminhada interminável, conseguimos o primeiro passe de imprensa para o show de demonstrações ao vivo, uma espécie de ensaio geral, que veríamos mais tarde, ao longo da semana. Até o dia seguinte não poderíamos apreciar a exuberância de Eurosatory, mas esse contato inicial já nos deixou com um estranho sabor na boca. Finalmente chegamos ao nosso apartamento. Por fim estávamos em Paris.

O espaço onde acontece a feira é gigantesco e o mapa/guia se torna indispensável para poder se movimentar sem se perder na imensidão. Os pavilhões internos estão agrupados por países (embora algumas marcas poderosas extrapolem os limites de nacionalidade). Nos estandes, são exibidos produtos “pequenos”, desde balas de todos os calibres até mísseis e “drones”, passando por granadas, jalecos à prova de balas, roupas de camuflagem, simuladores, óculos de sol, galões bordados, robôs… Um sem fim de artigos e materiais que a maioria dos mortais jamais viu na vida real. Nos pavilhões externos, encontra-se a maquinaria pesada (tanques, mísseis gigantes, veículos encouraçados, um caminhão-padaria de campanha…) e estandes de luxo, nos quais a champanhe corre como água – em alguns deles, há “privés” onde só entram os VIPs mais importantes.

Para finalizar, numa zona afastada, à qual se chega somente de trenzinho – como de um parque infantil –, está o cenário das demonstrações ao vivo. Em três sets diferenciados, figurantes caracterizados de guerreiros e especialistas do setor atuam e mostram suas últimas novidades em ação: pelotões antiprotestos dissolvendo uma manifestação urbana; soldados e médicos enfrentando um ataque químico; e militares atacando um povo do Oriente Médio. As camuflagens já não são verde-selva, como na época da guerra do Vietnã; agora elas são marrons e beges, as cores do deserto, onde se desenvolvem atualmente a maioria dos conflitos. Um show megafônico, com megatelas de vídeo e trilha sonora ad hoc, delicia o público, situado em uma arquibancada estofada em vermelho e coberta com uma tenda para proteger executivos e militares das inclemências do tempo.

Agora sim, estávamos em plena imersão, mergulhando no mundo da guerra, um mundo desconhecido, que vemos somente no cinema, e do qual conhecemos apenas as consequências, pelos meios que nos inundam diariamente com sangue e morte. Mas o comércio de armas segue sendo um tabu, e estávamos no seu epicentro. A primeira sensação é de irrealidade, de incredulidade, de surpresa. Você se sente estranho nesse ambiente, mas pouco a pouco vai se acostumando e, como que hipnotizado por uma serpente, começa a se mover com normalidade. Ele seduz e envolve, como tudo aquilo que é proibido.

É possível fazer todo tipo de diatribes sobre as pessoas que nos rodeavam, e todas valem. Quem são elas? De que forma estão relacionadas a esse negócio? A presença de parte do público é óbvia: representantes de ministérios de defesa, militares, delegações governamentais, mas e o resto? Quem são os milhares de civis que chegam de todo o mundo para passear por lá? Intermediários, espiões, mercenários, agentes comerciais… E outros profissionais que nem sabemos como nomear. É fascinante ver a naturalidade com que se relacionam e se informam das últimas novidades e o entusiasmo com o qual provam os protótipos de tipos variados de fuzis – como crianças em um parque de diversões, um parque mórbido e macabro. Por lá, os estranhos éramos nós. Armados com câmera, tripé e gravador de som – um autêntico perigo para essa fauna. Quem somos nós para questionar o negócio? Aqueles que abordávamos nos olhavam de forma desconfiada, perguntavam para quem trabalhávamos, o que fazíamos lá, de onde vínhamos. Curiosamente, ao dizer-lhes algo tão vago como “estamos fazendo uma reportagem sobre a feira”, parecia que relaxavam. Alguns nos rechaçavam e nos proibiam de gravar; outros, como que perdoando nossa existência e nos controlando de relance, nos permitiam entrar em seu feudo e gravar por três ou quatro minutos as representações exclusivas montadas para seus clientes. Uns poucos eram corretíssimos e, com hora marcada, nos facilitavam um interlocutor amável; outros, mais raros, topavam com espontaneidade, enquanto alguns, aos quais ninguém dava atenção, posavam diante da câmera e, fascinados pelo interesse que despertaram, contavam suas histórias. Não seria estranho se acabássemos fichados em um banco de dados do serviço de inteligência de algum país obcecado pelo terrorismo.

Para os cidadãos, como nós, alheios a esse mercado, o bombardeio de sensações, surpresas e contradições é impressionante. Como acontece em qualquer feira comercial, na Eurosatory são apresentadas as novas tendências e inovações da indústria. Uma indústria que move trilhões de dólares e que, para surpreender e impressionar seus clientes, utiliza todas as técnicas de marketing e merchandising disponíveis. É inevitável acumular catálogos luxuosos, folhetos e flyers com informações sobre produtos de todos os tipos: munição ecológica que respeita o meio ambiente depois da batalha, aluguéis de terrenos e espaços aéreos para provas militares, tecnologia sofisticada para captação de imagens por infravermelho, simuladores de tiro… Mas, sem dúvida, o mais fascinante são os souvenirs: um caramelo envolto em papel negro com o slogan “bem-vindo ao inferno”, impresso em branco; um holograma-postal que ilustra o lançamento de um míssil em três etapas; um pato de borracha camuflado, para o banho das crianças; um chaveiro com uma pistola; um paninho de camurça para limpar os óculos – estampado com um combatente; a ponta de cobre de um míssil… Um sem fim de anúncios dos quais é impossível se desprender e que se convertem, de forma irremediável, em objetos de uma estranha coleção. Um arsenal que passa sem suspeitas nem proibições pelos aparelhos de raio-x dos aeroportos.

Chama atenção a quantidade de marcas do mundo civil que participam da indústria da guerra. Algumas conhecidíssimas, fabricantes de reputação mundial; outras, meras provedoras de matéria-prima. Todas minimizam sua responsabilidade no fato de integrar essa indústria – e, todas elas, se afastando de suas possíveis contradições morais, se amparam dizendo que, inevitavelmente, alguém teria que cobrir esse nicho de mercado. “Se não fizermos, outros o farão”.

O fim da feira estava próximo, e na área de saída encontramos um homem armado com uma bandeira pacifista, cantando “Give Peace a Chance”, de John Lennon.

Um ser solitário, a única voz dissonante que pedia paz no festival da guerra, às portas da grande cidade cosmopolita que se ufana de estar no topo da cultura mundial. Uma única pessoa frente aos 53 mil visitantes do mercado das armas. Um mercado obscuro, cínico e hipócrita, no qual ninguém fala de guerra, morte, repressão, opressão ou invasão, mas sim de conflito, vítimas colaterais, proteção, liberação e democratização.

Após cinco dias de feira, acabamos fisicamente esgotados e moralmente derrotados pela realidade. Disfrutar de Paris foi quase impossível. Havia deixado de ser uma festa.

No voo de regresso a Barcelona, apenas 20 minutos depois de decolar, disparou-se o alarme de um possível ataque químico. O piloto deu meia-volta, e aterrissamos emergencialmente no Charles de Gaulle. Ao longo da pista, caminhões de bombeiros, ambulâncias e a proteção civil. Sem que desembarcássemos, uma patrulha de especialistas com detectores de gás entrou no avião para uma inspeção imediata. Em poucos minutos descobriram a arma de destruição massiva: uma fruta oriental que havia fermentado na bagagem de mão de uma passageira; o fedor dela havia se propagado pelos dutos de ventilação.

Em breve começa uma nova edição de Eurosatory, nas imediações da cidade da luz, da moda e do amor. Eles vão realizá-la novamente. Do contrário, outros o fariam? Welcome to the real world.

Barcelona, abril de 2014.

* Título do romance homônimo de Larry Collins e Dominique Lapierre, 1964.

Tradução: Ricardo Romanoff

 

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TXELL SABARTÉS é produtora, nascida em Barcelona em 1968. Depois de um período inicial trabalhando com fotografia, começou em 1991 sua carreira profissional na indústria cinematográfica. Em 1997, fundou a Voodoo Productions, uma produtora que originalmente combinava produções próprias – curtas, audiovisuais, videoclipes etc. – com serviços especializados para empresas internacionais – entre os quais, comerciais, longas-metragens e peças de televisão. www.voodooproductions.net

LALO GARCÍA é diretor, nascido em Madri em 1959. Sua carreira como diretor começou no início dos anos 1990. Trabalhou com programas de ficção e documentários para os canais TVE, Canal + e TeleMadrid. Também dirigiu comerciais e criou audiovisuais para exposições e museus. “7,5 steps”, seu primeiro longa-metragem, recebeu dois prêmios no Festival de Cinema de Málaga, voltado para a produção cinematográfica espanhola. www.lalogarcia.es

 

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